Futebol internacional

Há homens que precisam de coroa para ser realeza. A outros basta a forma como pisam o relvado. Podem não ser reis mas somos seus súbditos

Bruno Vieira Amaral explica como Espanha, “que tinha passado décadas a tentar arrombar a porta do castelo, descobriu com Iniesta que bastava bater à porta, pedir licença, agitar o estandarte e comportar-se como se o castelo nunca tivesse tido outro dono”. A camisola 8 do Barça nunca mais será igual: Iniesta anunciou esta sexta-feira o adeus ao seu clube de sempre

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D. Andrés Iniesta: rei sem coroa

Vai adiantada a segunda parte de Dom Quixote quando o fiel Sancho Pança vê concretizado o desejo de ser governador de uma ilha, Barataria. O que à primeira vista lhe parece o maior bem do mundo logo se revela uma carga de trabalhos. No final do seu breve governo, Sancho comemora a libertação: “Eu não nasci para ser governador, nem para defender ilhas nem cidades dos inimigos que quiserem acometê-las. Melhor me entendo a arar e cavar, a podar e a mergulhar sarmentos de vide, que a dar leis ou a defender províncias e reinos. Bem está S. Pedro em Roma: quero dizer, que bem está cada um no ofício para que foi nascido. Melhor me quadra uma foice na mão que um ceptro de governador”.

Na carreira do Ilustrisímo Senõr D. Andrés Iniesta Luján, manchego como as personagens de Cervantes, não faltam comendas, insígnias, títulos coletivos, golos históricos, o reconhecimento dos pares, a admiração dos adversários. Se lhe falta alguma coisa é a Bola de Ouro, injustiça que lhe valeu um inédito pedido de desculpas da France Football. Se a falta de uma Bola de Ouro na folha de serviços de um jogador que conquistou tudo é uma injustiça, a ausência de Iniesta na lista de vencedores da Bola de Ouro é um crime. Porém, um crime com atenuantes. Iniesta nasceu, cresceu e viveu em campo com o ar inconspícuo de lateral-direito. Ao contrário de outros jogadores que procuram emoldurar cada pincelada, mesmo as banais, para expor no Louvre, que vêm acompanhados de fanfarra e foguetório, Iniesta comportou-se com a modéstia de um frade de ordem mendicante, sempre disponível para apagar os vestígios da sua genialidade, generoso na distribuição e moderado nos apetites, não desejando para si mais que o justo quinhão dos despojos.

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Acoplaram-no a Xavi, como se fossem um só, o tiki e o taka, diminuindo assim as virtudes de cada um, e ele não se queixou. A ética de colónia de formigas, de falanstério futebolístico, do Barça de Guardiola, teve nele o seu exemplo acabado e discreto. Enquanto Xavi tinha acessos puigdemontanos de soberba catalã, com declarações inflamadas de sindicalista, Iniesta guardava a eloquência para os seus diálogos íntimos com a bola. Nas disputas entre os galos do balneário da seleção espanhola, com merengues de um lado e culés do outro, manteve-se como fiel da balança, o único consenso nacional de uma nação fragmentada. Contribuiu, com altruísmo evangélico, para a narrativa do “espírito de liderança” de Messi, coisa que até hoje nunca ninguém viu. Personificou a transformação do futebol áspero da “roja”, que mais do que um estilo de futebol era um estado mental repleto de furia, ganas, ilusión e entradas a pés juntos, numa arte de veludo, com porte, distinção e senõrio. Com Iniesta, o futebol espanhol passou dos urros de guerra para o bel canto, dos campos de batalha para os palácios, do açougue para a mesa, da faca nos dentes para os talheres de prata. Espanha, que tinha passado décadas a tentar arrombar a porta do castelo, descobriu com Iniesta que bastava bater à porta, pedir licença, agitar o estandarte e comportar-se como se o castelo nunca tivesse tido outro dono. E sempre sem assomos de vaidade ou sobranceria, sem ameaças de mudar de reino para que lhe dessem coroa e manto.

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O longo duopólio Messi-Ronaldo, com todas as discussões sectárias e aborrecidas, remeteu para segundo plano uma geração de secundários de talento superior, de Yaya Touré a David Silva, de Luka Modric a Toni Kroos, de Andrea Pirlo a Xavi. Iniesta é o representante máximo dessa trupe heteróclita porque, mesmo em segundo plano, roubava a cena. E, roubando, fazia-o com arte, como se estivesse a dar. Espalhando beleza pelos relvados não para educar os bárbaros, mas para que todos, sem distinção, pudessem apreciá-la. Talvez não seja errado dizer que foi precisamente por estar à sombra dos feitos estratosféricos daqueles dois que Iniesta prosperou. Como se a sombra fosse a sua casa e, exposto ao “sol das luzes da ribalta”, corresse o risco de estiolar. Se era o que mais merecia uma Bola de Ouro, era também o que menos dela precisava pois, tal como Sancho se entendia melhor com o arado que a dar leis e a defender províncias, também Iniesta se entendia melhor a cuidar discretamente dos campos por onde passeava. Tal como a Sancho Pança pesava o cetro de governador, a ele poderia ter-lhe pesado esse símbolo que a outros serve de farol. Há homens que precisam de coroa para se saber que são realeza. A outros basta-lhes a forma como pisam o relvado. Podem não ser reis, mas nós somos seus súbditos.

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