Futebol internacional

Argélia. O país onde os protestos nasceram nos estádios de futebol

Argelinos em festa, no centro de Argel, após a vitória sobre a Nigéria que lhes deu o passaporte para a final da CAN
Argelinos em festa, no centro de Argel, após a vitória sobre a Nigéria que lhes deu o passaporte para a final da CAN
Ramzi Boudina / Reuters

Os argelinos estão nas ruas há 22 semanas em protesto contra quem os governa. Se esta sexta-feira vencerem a Taça das Nações Africanas, as manifestações vão ganhar ainda mais força, vaticina ao Expresso um argelino

Margarida Mota

Jornalista

Esta sexta-feira é dia cheio na Argélia. Ao final do dia, a seleção nacional de futebol disputa a final da Taça das Nações Africanas (CAN). Antes disso, como vem acontecendo desde 22 de fevereiro, é tempo de... “sexta-feirar” (“vendredire”, em francês).

“É assim que os argelinos chamam às manifestações de cada sexta-feira”, pacíficas e em clima de festa, com que exigem o fim do regime, diz ao Expresso o politólogo Raúl Braga Pires, autor do Blogue Maghreb/Machrek. “Projeta-se um dia em que a polícia irá facilitar a vida aos manifestantes para, ao final do dia, poderem todos ir ver o jogo em harmonia.”

É possível que muitos argelinos optem por ficar nas ruas o dia todo. Afinal, protestar e celebrar o golo são manifestações que, neste país do Norte de África, partilham o mesmo espaço.

“Não podemos separar o ‘Hirak’ (movimento popular de protesto) do futebol. O ‘Hirak’ começou dentro dos estádios, em toda a Argélia”, diz ao Expresso o argelino Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar. “Nos últimos anos, os adeptos de futebol têm usado os estádios como locais de manifestações políticas entoando cânticos contra o regime.”

No Egito, onde decorre a CAN, um argelino foi detido, deportado —- e rapidamente condenado a um ano de prisão — após a vitória da Argélia sobre o Quénia, na fase de grupos. O seu “crime” foi mostrar uma tarja que tinha inscrito um dos slogans mais populares das manifestações no seu país: “yetnehaw gaa”, que Raúl Braga Pires traduz por “Demitam-se pá!”.

“Um único herói, o povo”, lê-se neste grafíti numa parede de Argel
NurPhoto

“Há um vasto reportório de canções que refletem o descontentamento popular e a oposição ao regime”, acrescenta Bouandel, comentador da televisão Al-Jazeera. “Falam sobre corrupção, mudança de regime, falam de uma nova Argélia.”

São cantadas a plenos pulmões especialmente por jovens desempregados que se sentem socialmente marginalizados, sem oportunidades para singrar na vida e vergados a um sentimento de humilhação (“hogra”) — e que só encontram voz em eventos desportivos.

Um exemplo desses cânticos é “La Casa del Mouradia” (nome do bairro onde fica o palácio presidencial argelino) que nasceu em 2018 nas hostes da claque de um clube da capital — a União Desportiva da Medina de Argel (USMA) — e que é hoje um dos hinos dos manifestantes antiregime.

Diz o primeiro verso: “É madrugada e o sono não vem / Eu consumo em pequenas doses / Qual o motivo? / Quem devo culpar? / Estamos cansados desta vida”. A seguir descreve, um a um, os mandatos de Bouteflika da perspetiva das dificuldades criadas para o povo.

“Antes, os cânticos estavam confinados aos estádios”, diz o professor argelino. “Quando o muro do medo foi derrubado, as pessoas levaram o espírito dessas canções para as ruas, um pouco por todo o país.”

A bandeira da Argélia sempre presente, ora protestem contra o governo ora celebrem as vitórias desportivas
RYAD KRAMDI

Os argelinos perderam o medo após surgirem rumores de que, aos 82 anos, o Presidente Abdelaziz Bouteflika, que vive confinado a uma cadeira de rodas, iria candidatar-se a um quinto mandato. As ruas encheram-se de contestação e Bouteflika foi forçado a sair de cena para todo o sempre.

Os manifestantes subiram então a fasquia das exigências e passaram a pedir o afastamento dos restantes rostos do regime e a transferência do poder para mãos civis.

“Os argelinos sentem que o ‘Hirak’ libertou o país, incluindo o futebol. A nomeação de Djamel Belmadi para selecionador [em agosto passado] resultou de uma exigência popular. Os resultados da equipa de futebol são uma vitória para o ‘Hirak’.”

A final da CAN — entre a Argélia (que venceu o torneio em 1990) e o Senegal (que nunca ganhou) — começa às 20 horas de Portugal Continental, no Estádio Internacional do Cairo. Em Argel, o regime até pode estar convencido de que uma vitória irá anestesiar o povo e leva-lo, por momentos, a esquecer a política. Mas nas redes sociais, o discurso é outro... “Uma vitória da Argélia adicionará força aos protestos”, diz Bouandel. “Nas redes sociais, a mensagem é: sim, será fantástico vencer a CAN, será um grande feito, mas não nos esqueçamos de que isto é só futebol. A maior conquista é o estabelecimento de um regime que proteja o povo."

Para o ‘Hirak’, os festejos em torno de uma possível vitória na CAN serão usados para passar recados às autoridades do país. Nas ruas, serão realçadas “a ‘competência’ e a ‘juventude’ — numa referência ao treinador Belmadi, que tem 43 anos — como chaves de qualquer sucesso”, conclui o argelino. “Os argelinos dirão: Se conseguirmos aplicar à política o que aconteceu no futebol — políticos jovens e competentes que amam o seu país e estão dispostos a lutar por ele — então o céu é o limite.”

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