Não era, de todo, esperado que a bola que embrulhava uma época grandiosa, fechando-a com um bonito laçarote, lhe chegasse pelo ar, na área, em Roma, pedindo um salto de trampolim. Um quê esticada demais, obriga-o a pular em corrida, com balanço, projetando-se com tanta força que o corpo se inclina para trás, descompensado pelo esforço de cabeceamento desengonçado.
Acerta na bola com a têmpora, o salto mais atabalhoado fica, mas, à beira da pequena área, é a maneira estranha que o homem de metro e setenta centímetros inventa para a desviar de Edwin Van der Sar e fazê-la, suavemente, entrar junto ao poste, do outro lado da baliza.
Ao aterrar, o pé direito é o primeiro a plantar-se na relva, o tornozelo dobra-se ao máximo e o encontro de forças descalça-lhe a chuteira.
É um sinal.
O universo está a dispensar a necessidade de ter proteção e pitons nesse membro, classifica-o de mero acessório, como se reconhecesse que existem, apenas, para servir de apoio às mil e uma maravilhas fabricadas, em série, pelo outro pé, o esquerdo, faca fria em manteiga quente que só precisa de um ponto de equilíbrio para fatiar adversários, evitar desarmes, rematar e acabar jogadas que o próprio começa.
Lionel Messi acaba de marcar na final da Liga dos Campeões, em 2009, com a cabeça que mal usa para tocar na bola. A gravidade devolve-o ao campo; pega na bota descalçada, beija-a, aponta-a em direção ao público e, quem ali entrasse, de repente, sem nunca ter visto um jogo de bola, poderia interpretar o gesto como uma chamada de atenção - "olha, ele está a mostrar que é incrível".
Mas é, simplesmente, um rapaz de 22 anos a evidenciar aquilo que não precisa; a dispensar, metaforicamente, o pé direito para tocar na bola.
Messi, nesse ano, marca nove golos na competição e envolve-se, ao todo, em 14. É a atração de todas as atenções na época do primeiro deslumbramento com o Barcelona de Pep Guardiola, que desvenda o futebol carrossel, fiel à doutrina de dar maior quilometragem à bola a rolar sozinha em vez de alguém a correr com ela. É o ressuscitar confirmado do jogo posicional - e quem o injeta de vida é um pequeno e genial argentino.
Ainda se movimento mais colado à direita, como extremo com pé trocado que vai para dentro e chuta, mas diferente de tudo o resto, desde a primeira receção de bola até ao último toque que dá na jogada. Messi ainda não é tatuado, a barba ainda não finta a lâmina de barbear, o cabelo está à tigela.
É o primeiro Messi.
Recebe a bola, arranca, abstém-se de grandes truques para enganar e ultrapassa gente com simulações de corpo, um pé esquerdo com cola e pára-arranca constantes. É novo, está abastado de energia no corpo, farta-se de correr e centraliza a maior parte das ações nos raides individuais. Ele contra o mundo, com o mundo a perder, sistematicamente, e já não só às vezes, como quando, duas épocas antes, desmontara o Getafe.
Este é o Messi que dribla, bate e quase humilha adversários partindo longe da baliza, com o objetivo de chegar perto da área e rematar, em jeito. Com o tempo, tornar-se-á um processo fácil.
Ainda é o Messi a quem ninguém tira a bola porque ele não quer, pré-Messi a fingir que é avançado, antes do Messi mais atual, que deambula por onde lhe apetece e isola companheiros com passes que lhes indicam para onde se devem desmarcar.
Este Lionel Messi marca 38 golos e faz 17 assistências em 2008/09, a temporada do primeiro golo que bate de livre direto e dos cinco títulos para o Barcelona - os que havia disponíveis para conquistar. É o mais vistoso e exuberante jogador da equipa com Xavi, Iniesta, Busquets, Henry e Eto’o que ganha o campeonato, a Taça e a Liga dos Campeões, cuja cereja pontífice do domínio até nem serão os títulos, mas o 2-6 ditatorial que impõe ao Real Madrid, no Santiago Bernabéu.
Juntam-lhes a Supertaça de Espanha, no arranque da temporada seguinte, e o Mundial de Clubes, em dezembro de 2009, onde o argentino marca um par de golos já galardoado, pela primeira vez, com a maior distinção individual num jogo em que nada se consegue sozinho.
“Quero dedicar o prémio aos meus companheiros, fico feliz por ser o primeiro canterano do Barça que o consegue. Quero agradecer à minha gente e partilhar esta felicidade com eles”, discursa, tímido, ao receber a Bola de Ouro.
É o confirmar de uma evidência e a France Football em quantifica o que é qualificável: Messi recebe 473 pontos contra os 233 de Cristiano Ronaldo, a maior diferença até então de uma distinção criada em 1956.
O argentino ganha ao vencedor do ano anterior, votado como sendo superior ao português que, mais ou menos nesta altura, começa a mudar. Na verdade, a primeira Bola de Ouro aparece na vida de Messi semelhante à forma como surgiu na de Cristiano Ronaldo: ambos eram homens de linha, a partirem de uma ala, fintavam espetacularmente muitas pernas e corpos até à área, mas, em vez de passarem a bola, marcavam eles os golos, muitos, uma catrefada de golos.
Eram, sempre o foram, dissonantes no estilo.
Cristiano, um portento atlético, mito humano de incontáveis horas e esforços extra para treinar os músculos do corpo e a relação com a bola, driblador cheio de artifícios e fintas malabaristas, atómico no remate à baliza.
Lionel, o pequeno alquimista do pé esquerdo, menos diversificado no uso da sua anatomia (o pé direito e a cabeça), mais gracioso, capaz de ser inventar, desenvolver e finalizar ele próprio a jogada.
Este ano derruba a primeira peça do dominó que dá início à mais prolongada hegemonia bipartida na história do futebol.
O argentino ganha a primeira de quatro Bolas de Ouro seguidas, série em que o português só não é o seu vice uma vez (2010), coisa que acontece, inversamente, nas quatro que Cristiano venceria esta década. Luka Modric intrometeu-se, em 2018, na disputa quase privada que ainda os tem, já bem trintões, a verem quem dá mais.
Em 2009, com Messi nos seus 22 e Ronaldo com 24, estão frescos, rápidos a recuperar e ainda não existem como o contraposto obrigatório do outro. A primeira Bola de Ouro de Lionel dá o sinal de arranque para televisões, empresas, jornais, marketing e as próprias entidades do futebol puxarem pela rivalidade na opinião pública.
Entramos na era da comparação, em que discussões se geram na presunção de não ser permitido gostar de ambos e ter preferência por um deles. É uma guerrilha que nunca os ouvimos a incentivar. Sempre admitiram, isso sim, que puxam platonicamente um pelo outro, esticando os limites de golos e números, mas jamais se antagonizaram com palavras.
“É um jogador que pagaria para ver jogar. Somos muito diferentes, mas ele é inacreditável, muito especial”, opinava Messi, antes da final da Liga dos Campeões, em 2009, sobre Ronaldo, que, uns meses depois, retribuía: “Ele é o favorito. Ganhou a Champions e a liga. Porque não ele? Se ganhar a Bola de Ouro, será merecido”.
Lionel Messi ganhou-a e o mundo nunca mais foi o mesmo, porque aí começou outro mundo.