Futebol internacional

Ronaldinho Gaúcho, os 40 anos de um anjo caído

Ronaldinho Gaúcho, os 40 anos de um anjo caído
Claudio Villa

Será numa prisão paraguaia que Ronaldinho Gaúcho vai chegar ao número redondo dos 40 anos. Ele que foi provavelmente o melhor jogador da primeira década do novo século, ele que foi duas vezes o melhor do mundo, ele que marcou alguns dos golos e fez alguns dos dribles mais icónicos da história moderna do futebol. E ele que fora de campo desbaratou a magia que dentro dele espalhava

Quando se abre o Google e se escreve "Ronaldinho Gaúcho" na barra de busca, os resultados automáticos que nos são sugeridos - e que normalmente nos levam para as procuras mais comuns - podem assustar. Um dos primeiros é "Ronaldinho Gaúcho morreu".

Ronaldinho Gaúcho não morreu, descansem pessoas que recorrem ao Google para saber dos empreendimentos atuais do brasileiro. Mas talvez nenhum de nós estivesse à espera que Ronaldinho de Assis Moreira, o homem que nos ensinou que é possível jogar à bola sempre com um sorriso no rosto, festejasse o seu 40.º aniversário numa esconsa prisão no Paraguai, rodeado de pessoas que ele mal conhecerá, criminosos sortidos, gente que terá roubado e matado, enquanto o único crime de sangue do rapaz nascido em Porto Alegre a 21 de março de 1980 terá sido aquele assassínio em massa no Santiago Bernabéu, em 2005, quando dizimou o Real Madrid, obrigando até os normalmente tão fleumáticos adeptos da capital a aplaudir de pé o massacre da sua própria equipa.

Mas vamos ao início de tudo, quando Ronaldinho não era só mais um detido no complexo penitenciário da Polícia Nacional do Paraguai em Assunção, mas sim um miúdo de 7 anos que começa a jogar nas camadas jovens do Grémio, na altura ainda dentro do rectângulo do futsal. Naquele espaço pequeno, o miúdo franzino aprimorou a técnica, enquanto olhava de baixo para cima para o irmão Roberto, então já sénior na equipa principal do Grémio. "Tive a sorte de ter o meu maior ídolo dentro de casa", disse em entrevista ao "Super Esportes", do Brasil.

Roberto Assis, que viria a jogar no Sporting e Estrela da Amadora (clube em que, ao contrário do mito, Ronaldinho nunca treinou), era mais que um ídolo. Quase 10 anos mais velho que o pequeno Ronaldo, passou a ser uma figura paternal depois da morte de João, o pai de ambos, quando o mais novo tinha apenas oito anos. Antigo segurança do parque de estacionamento do estádio do Grémio, foi João que disse a Ronaldinho que o futebol podia ser jogado com alegria, podia ser algo bonito e divertido.

"O papai é quem dizia para você usar e abusar da sua criatividade em campo; era ele quem dizia para você fazer o jogo bonito - para você apenas brincar com a bola", escreveu Ronaldinho na carta para o seu eu jovem, para o "The Players' Tribune".

Em 1998, com apenas 17 anos, estreia-se como profissional no Grémio, mas bem antes disso Ronaldinho já tinha traçado aquilo que mais queria. Ele queria fazer aquilo que Romário fez no Mundial de 1994, que o Brasil foi aos Estados Unidos ganhar. O sonho da Seleção apareceu em 1999, tinha o miúdo do Rio Grande do Sul apenas 19 anos. Ele chegou "quietinho, magrinho, com aqueles dentinhos para fora, com cabelinho curtinho, parecia um gurizinho", recordaria anos mais tarde Ronaldo, o outro, o Fenómeno, à Globo.

Convocado para a Copa América, Ronaldinho chegaria à concentração um dia depois de todos os outros, porque antes da Seleção era preciso jogar a final do Campeonato Gaúcho, frente ao rival Internacional. Tal como recordaria na carta escrita para o "The Players' Tribune", quando se juntou aos colegas só se falava daquele jogo e daquele miúdo, do golo da vitória e de como ele tinha feito gato-sapato de Dunga, o capitão da equipa que o fez querer ser jogador da canarinha.

Logo no primeiro jogo, frente à frágil Venezuela, saltou do banco, fez um chapéu a um adversário, passou por outro e rematou para o golo. O festejo foi o de um "guruzinho": louco, eufórico, feliz, como era o seu futebol.

Rapidamente se percebeu que o futebol de Ronaldinho era demasiado para o Rio Grande do Sul e para o Brasil. Sem o aval do Grémio, que para lá das vitórias vendia camisolas como nunca às custas do novo prodígio, Ronaldinho assina um pré-contrato com o Paris Saint-Germain, em 2001. O caso vai parar a tribunal e o brasileiro fica seis meses sem jogar antes de se estrear no verão desse ano pela equipa francesa.

Ronaldinho levou alguns meses a tornar-se titular absoluto, numa primeira época que ficou ainda marcada por alguns desencontros com o treinador Luis Fernández, que acusava-o daquilo que muitos outros treinadores viriam a acusar: Ronaldinho gostava da noite e raramente cumpria as datas de regresso a Paris após as férias no Brasil.

O PSG não era, por essa altura, o PSG de hoje: não havia milhões do Médio Oriente, não havia um craque em cada posição, não havia ambição, não havia títulos grandes. Era Ronaldinho sozinho contra todos, nos tempos do domínio do Lyon na Ligue 1. Ronaldinho está escondido numa liga interessante mas não de topo.

Até que o Mundial de 2002 o revela definitivamente para o Mundo. Fazendo uma temível linha de ataque com Ronaldo e Rivaldo, ele era o 'R' mais novo. Nos quartos de final, frente à Inglaterra e com o Brasil a perder desde cedo, fez o passe para o empate de Rivaldo. Depois ele próprio colocou o Brasil na frente, com um livre direto a quase 40 metros que toda a gente esperava que fosse um cruzamento e que surpreendeu um demasiado adiantado David Seaman. E mesmo que tenha acabado o jogo expulso, é esse Brasil - Inglaterra que faz dele o jovem jogador mais apetecível do Mundo.

Mais uma vez, Ronaldinho torna-se demasiado grande para o sítio onde está. Ainda fica mais uma temporada no PSG, mas Paris não era uma cidade de futebol. O Manchester United quer Ronaldinho, mas Ronaldinho escolhe outro lugar, onde Romário e Ronaldo já haviam brilhado: Barcelona.

O clube da Catalunha vinha de um início de século terrível. Por esses dias, falava-se de Galáticos, do Real Madrid, falava-se do Super Depor e do Valencia, duas vezes campeão nesses anos. Em 2002/03, o Barcelona acaba a liga num embaraçoso 6.º lugar.

Com Ronaldinho tudo muda.

Os anos de ouro

É a chegada de Ronaldinho que começa a construir o Barcelona que hoje conhecemos, o grande dominador do futebol espanhol, a grande escola de futebol do século. Na primeira temporada, as lesões impedem que o brasileiro expluda, ainda assim é ele que leva o Barcelona a uma recuperação desde o 12.º lugar da tabela até ao vice-campeonato.

No ano seguinte, aí sim, começam os anos de ouro de Ronaldinho. Com Deco a seu lado, aparecem os dribles diabólicos em corrida, os passes longos, as vírgulas, tudo feito sem aparente esforço, só com sorrisos na cara e magia nos pés. Ricardo Carvalho ainda terá na memória o dia em que Ronaldinho bailou na sua cara, rematando sem balanço - e olhem que nessa altura Ricardo Carvalho era provavelmente o melhor central do mundo. Nesse ano de 2004/05, vence campeonato e Supertaça e o primeiro prémio de melhor jogador do Mundo para a FIFA.

A temporada seguinte é ainda melhor. Campeão espanhol, vencedor da Liga dos Campeões, mais uma vez o melhor jogador do Mundo para a FIFA e aquele jogo contra o Real Madrid. Um jovem Sérgio Ramos ainda se lembrará dessa noite de pesadelo em 2005 no Santiago Bernabéu, com Ronaldinho a ultrapassá-lo uma e outra vez, naquelas corridas desenfreadas com a bola sempre juntinho ao pé.

Mas talvez tenha começado aí, nessa época perfeita, o declínio de Ronaldinho. Depois da desilusão do Mundial de 2006, em que o Brasil, super-favorito, caiu nos quartos de final e o jogador do Barcelona esteve discreto, não mais foi o mesmo. Ainda nos deu aquele golo contra o Villarreal, receção com o peito e pontapé de bicicleta, teve até a sua época mais goleadora em 2006/07, mas as duas últimas temporadas em Espanha foram marcadas por lesões e, mais uma vez, por acusações de que a cabeça do brasileiro estava mais ocupada com a noite catalã do que exatamente com futebol.

O fim da era Frank Rijkaard foi também o fim da era Ronaldinho em Barcelona. No ano seguinte, Pep Guardiola chegaria para operar nova revolução. E nessa revolução não cabia o brasileiro com veludo nos pés.

Com apenas 29 anos, Ronaldinho começa então o seu período nómada, com apenas alguns fogachos de genialidade pelo meio. Segue para o AC Milan, onde ainda é campeão italiano. Em janeiro de 2011 volta para o Brasil, para o Flamengo, segue-se o Atlético Mineiro, onde vence a Taça Libertadores (tornando-se um dos poucos jogadores a vencer Mundial, Liga dos Campeões e Libertadores), Querétaro do México e um final sem chama nem fanfarra no Fluminense.

Em janeiro de 2018, através do seu ídolo/irmão/agente Roberto Assim, chegou a notícia de uma retirada quando já ninguém esperava que Ronaldinho voltasse a jogar.

O ROCAMBOLESCO

Fora dos relvados, nos últimos anos fomo-nos acostumando a assistir aos episódios da vida esotérica de Ronaldinho Gaúcho. Desde uma condenação em 2015 por crime ambiental depois de construir um moinho de cana de açúcar ilegal numa zona protegida no Rio Grande do Sul, a um suposto esquema de pirâmide com bitcoins, até ao rocambolesco caso de um suposto casamento com duas mulheres (que o antigo craque posteriormente desmentiu), há de tudo um pouco.

Falido e com vários bens arrestados pela justiça por dívidas e multas, Ronaldinho tentou também, como qualquer ex-futebolista brasileiro que se preze, uma carreira na política, ao filiar-se no Partido Republicano Brasileiro. Nas últimas eleições presidenciais, apoiou Jair Bolsonaro, que o nomeou embaixador para o turismo.

O momento mais baixo chegaria, no entanto, já em 2020. Prestes a fazer 40 anos, Ronaldinho e o seu irmão Roberto foram detidos no Paraguai após entrarem no país com documentos falsos, num caso ainda nebuloso. O antigo craque deveria participar em alguns eventos de solidariedade e marketing e não teria sequer necessidade de entrar no país com um passaporte falso, mas agora é suspeito de fazer parte de um esquema de negócios fraudulentos e lavagem de dinheiro.

Não se sabe se hoje haverá festa de 40.º aniversário para Ronaldinho no complexo penitenciário da Polícia Nacional do Paraguai. Para já, e sem saber exatamente quando será um homem livre, aquele que foi duas vezes considerado o melhor jogador de futebol do mundo vai passando o seu tempo entre o torneio de futsal do presídio, as oficinas de carpintaria e o telefonema diário à mãe, diz o canal ESPN.

A vida de Ronaldinho, 40 anos, cheio de magia nos pés mas falta de tino na cabeça, é cada vez mais uma montanha russa.

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