Mais que um clube, um clube virado do avesso: um guia para compreender o que se passa no Barcelona
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Com promessas de revolução, a direção do Barça oficializou a contratação de Ronald Koeman, o até agora selecionador holandês, que foi o herói de Wembley, um dos discípulos de Johan Cruyff e que jogou no clube entre 89 e 95. A ideia é renovar o plantel e apagar a imagem que ficou depois daquele 8-2 do Bayern Munique, que valeu o despedimento de Quique Setién. Mas, afinal, como chegámos aqui?
Aquele pontapé violento e certeiro há 28 anos ditou o amor eterno. Ronald Koeman bateu o livre à Sampdoria de Pagliuca, Mancini e Vialli que se traduziu na primeira Taça dos Campeões do clube catalão, por isso era um deles para sempre. Um herói. O herói de Wembley. Quase três décadas depois, após um namorico com avanços e recuos mas certos de que seria algo concreto, Koeman volta a Camp Nou. É o treinador a quem pediram uma revolução para ontem, mas será que terá tempo e força para tal?
“Mas”. Eduardo Sacheri, um escritor argentino, descreveu o termo com mestria no livro “O segredo dos seus olhos”. Afinal, é uma palavra madrasta que rouba as entranhas e a alma do que foi dito segundos antes. “É muito difícil analisar a chegada de Ronald Koeman sem saber o plantel que vai gerir e as mudanças desportivas que vão acontecer”, publicou no Twitter esta manhã Miguel Quintana, que escreve na revista “Panenka” e comenta na Rádio Marca. “Koeman demonstrou ser um técnico versátil, com muito caráter na gestão e é o homem da primeira Champions do Barça, mas…”
Mas.
Mas o Barcelona já não é o que era. Muito longe dos tempos de Johan Cruyff e de um milagroso tetra, ainda mais longe da época de Pep Guardiola e daquele futebol impossível, o Barça é uma embarcação cheia de dúvidas. Os catalães não passavam uma temporada sem ganhar qualquer troféu desde 2008, altura em que Frank Rijkaard disse adeus e entrou Pep. Mas, lá está, os problemas do Barça vão além do desempenho desportivo, embora o 8-2 do Bayern tenha precipitado tudo, porque terá sido esse mesmo um dos motivos para a resistência à mudança ou renovação. Por vezes, ganhar confunde.
Aos problemas associados à direção, com decisões, rumores e notícias que às vezes parecem saídos de um manual de ficção científica, junta-se o eterno debate à volta do estilo de jogo, a única razão para trocar-se Valverde por Quique Setién, um sonho que se transformou num pesadelo para o homem de Santander. A mensagem não passou, não seduziu os jogadores com as suas credenciais cruyffistas, que ainda ficaram aborrecidos pelo comportamento do adjunto Eder Sarabia no banco. O deslumbramento inicial foi esmagado pela realidade.
Há também constrangimentos financeiros e uma certa ressaca que está ainda por sarar: a saída de Neymar para o PSG, mas já lá vamos. Como chegámos aqui, afinal? “O cataclismo em Lisboa, possivelmente o maior embaraço da história do Barcelona na Europa, explica-se a partir da incapacidade da direção presidida por Josep Maria Bartomeu de reinventar uma geração que ficou ancorada depois de conquistar a Champions em Berlim, em 2015”, explica à Tribuna Expresso Francisco Cabezas, jornalista do “El Mundo”.
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E continua: “Os primeiros sintomas de decadência já chegaram com Luis Enrique no banco (0-4 em Paris, 0-3 em Turim). E com Valverde já foi uma evidência apesar dos seus títulos na Liga, com as duríssimas derrotas na Champions em Roma (0-3) e sobretudo em Liverpool (0-4). Há um ano, após a eliminação em Anfield, o presidente Bartomeu decidiu dar um voto de confiança a uma geração que já não dá mais de si. Não só se demonstrou que se perdeu um ano, sem qualquer título para celebrar a que se junta a decepcionante passagem de Setién pelo banco, como a equipa ficou reduzida a um nada desportivo.”
A passagem de Setién foi decepcionante, pois precisaria sempre de tempo e jogadores para aplicar o seu plano, mas para Luís Cristóvão, comentador da SIC Notícias e Eleven Sports, o problema é mais complexo. “Era o homem errado no momento errado, uma caricatura de um conjunto de desejos que não fazem muito sentido no contexto atual do Barcelona”, começou por dizer à Tribuna Expresso. “Existem duas correntes de pensamento barcelonista, uma anterior a Cruyff, que, não sendo tão vitoriosa, marca ainda a identidade político-social do clube; outra posterior ao holandês, bem mais ligada à forma de jogar. Sonhar regressar ao cruyffismo sem Cruyff ou ao guardiolismo sem Guardiola é uma busca sem sentido. Para além disso, Setién chegou com o clube em primeiro lugar, pelo que a sua situação só podia piorar. Cometeu erros, o plantel tem imensas lacunas, não poderia acabar bem.”
Pedro Barata, ex-jornalista do diário espanhol “Marca”, tem uma ideia semelhante. “A missão de Setién não era impossível, mas era muito difícil. Valverde, sem nunca entender os defensores da 'filosofia Barça' e com os desastres de Roma e Liverpool, na Liga dos Campeões, conseguiu que a equipa, ao longo de duas temporadas e meia, fosse muito competitiva no plano interno. A chegada de Setién correspondeu a uma espécie de ilusão do barcelonismo, convencido que, ante a degradação diretiva do clube e a quebra exibicional sob o comando de Valverde, a chegada do mais cruyffista dos técnicos ia trazer o brilho de volta a Camp Nou. Mas Setién encontrou-se com um mar de problemas, sendo o maior deles um plantel com deficiências estruturais.”
Mirando a dimensão dirigente, Barata aproxima-se também do que foi dito por Cabezas, apontando deficiências na “gestão do êxito”, algo para o qual contribuiu a decisão de estender a vida da base de futebolistas que venceram o triplete em 2015. “À medida que esta coluna vertebral foi entrando nos 30 anos, e com as necessárias renovações de contratos, os culés viram-se com uma base algo envelhecida, desgastada e cara, que condicionava as finanças do clube. Se isto, só por si, já poderia ser problemático, tornou-se uma verdadeira condicionante competitiva quando a direção teve uma abordagem errática no mercado.”
Não têm faltado tweets e artigos a mencionar os 1.000 milhões de euros gastos pelo Barcelona em jogadores que, salvo poucas exceções, foram importantes no relvado. O maior dos problemas foi tapar o buraco gigante deixado por Neymar, que na terça-feira, em dia que marcava o sétimo aniversário da sua estreia no Barça, apurou o PSG para a final da Champions. “A resposta à fuga de Neymar foram contratações com mais sentido propagandístico do que desportivo: Coutinho e Dembélé”, continua Francisco Cabezas. “E em vez de se prepararem para o futuro, o governo do Barcelona priorizou a continuidade da coluna vertebral a troco de longos contratos que bloquearam todas as tentativas de renovação.”
Barata vai mais longe: “Chegou-se ao absurdo de, no desastroso 8-2 frente ao Bayern, o reforço mais caro da história do Barça, Coutinho, ter marcado dois golos contra eles; o segundo mais caro, Dembélé, não ter saído do banco de Setién e o terceiro, Griezmann, ter sido suplente utilizado. Não se pode entender o ponto a que chegou o Barça sem ter em conta este falhanço de gestão desportiva, marcado pela incapacidade de renovar o elenco, pelas contratações milionárias que não deram resultado e por um planeamento que, em geral, tem sido feito com base numa postura reativa”.
"Quando os dirigentes estão em dificuldades, não há melhor ideia do que se resguardarem atrás de um ídolo"
Depois do despedimento de Ernesto Valverde, em janeiro, Bartomeu e as figuras importantes do clube catalão colocaram em cima da mesa alguns nomes. Os mais pesados, os mais desejados, que teriam supostamente uma ideia de jogo fiel ao Barça e que teriam caráter para enfrentar um balneário difícil, eram Xavi, Mauricio Pochettino e Ronald Koeman. Não sabemos por que ordem foram enviados os convites, nem por que ordem chegaram os “nãos”, mas todos rejeitaram. Koeman terá alegado que não ia abandonar a seleção holandesa a poucos meses do Campeonato da Europa. Apesar disso, em 2018, quando assinou com a federação holandesa, deixou claro que a sua intenção era um dia chegar a Camp Nou, comprova-o a cláusula no contrato que lhe permitia sair para Barcelona, mediante o pagamento de uma compensação económica.
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O dia chegou e Koeman assinou até 2022 e engordou a lista de treinadores holandeses que se sentaram no banco de Camp Nou. É curioso notar, à boleia dos dados da Opta, que os quatro compatriotas que o antecederam estão no top-5 de treinadores com mais jogos pelo clube na La Liga: Johan Cruyff (300), Rinus Michels (204), Frank Rijkaard (190), Pep Guardiola (152) e Louis van Gaal (133). Agora chegou a vez do defesa que tinha cabeça de médio e um pé intratável.
Mas, afinal, que tem Koeman? Porquê ele? Porquê agora? “A contratação de Koeman tem duas explicações", reflete Cabezas. "Primeiro, é um ídolo para os adeptos desde que foi o autor do golo em Wembley, que deu a primeira Taça dos Campeões Europeus ao Barcelona. Quando os dirigentes estão em dificuldades, não há melhor ideia do que se resguardarem atrás de um ídolo. A segunda explicação reside na sua forte personalidade. Espera-se que Koeman lidere a transição que antes ninguém quis assumir, com a saída de várias referências do balneário azulgrana. Em Barcelona recorda-se muito quando Koeman, na sua etapa como treinador do Valencia, recusou três dos pilares daquele clube um mês depois de chegar: Cañizares, Albelda e Angulo.”
Luís Cristóvão revela reticências quanto à decisão da direção catalã e aponta a “profunda remodelação” do plantel como uma necessidade: “A escolha de Koeman será um derradeiro passo de Bartomeu para conseguir cumprir essa promessa de um regresso ao passado. Pela forma como Koeman foi jogador de uma das melhores equipas de sempre do clube, por se identificar com o pensamento de Cruyff, por estar disponível para trabalhar dentro de um estilo que faça esse compromisso. O plantel precisa de uma profunda remodelação e Koeman até pode ser alguém com força para levar essa mudança a cabo. Mas, como também se luta contra o tempo - os resultados, as eleições que acabarão por chegar, a nova Champions -, não vejo que esta escolha possa dar os resultados desejados por Bartomeu, também ele em fim de linha”, sentencia o comentador de televisão.
Barata alerta que o treinador holandês, que passou pelo Benfica em 2004/05 depois de quatro anos no Ajax, “é o menos cruyffista dos discípulos de Johan”. E explica: “As suas equipas estão longe de aplicar um jogo de posição canónico, possuindo outras variações. É um técnico que tem revelado alguma capacidade de adaptação ao longo da carreira, privilegiando, muitas vezes, o muito holandês 4-3-3, mas dentro de uma estrutura que quer ser sólida e consistente. No Southampton, por exemplo, soube enquadrar-se num clube que queria dar espaço a talentos emergentes, mas falhou quando teve muito dinheiro para investir no Everton. Recentemente, voltou a ganhar cotação com o trabalho que fez na seleção, mas a sua Holanda estava longe de ser uma equipa entusiasmante e dominante com a bola, faltava também alguma capacidade de desequilíbrio na frente. Na teoria, poderá tentar no Barça uma conjugação do jogo de posição com algumas nuances, mas o panorama geral do clube é demasiado incerto neste momento para fazer outras previsões…”
Cabezas assina por baixo: “Quanto ao estilo de jogo, Koeman, apesar de ser um dos filhos do Dream Team de Cruyff, é muito mais pragmático. Gosta de ter a bola, mas sempre tendo em conta não ficar desguarnecido na defesa. Prefere ser prático a espectacular, embora tenha praticado um jogo muito notável na sua Holanda, com jogadores como De Jong, com quem agora se reencontra no Barcelona”.
O futuro é incerto para os lados da Catalunha. E essa incerteza será ainda mais vincada com a aproximação das eleições do clube, agendadas para 15 de março. Joan Laporta, o homem que apostou em Pep Guardiola, ainda não oficializou a candidatura. Víctor Font, que já é colocado noutra fase da pré candidatura, digamos assim, já avisou que o seu treinador é Xavi Hernández.
Mas até lá ainda falta muito, já sabemos, e muito pode acontecer. Para já, falta convencer Messi a ficar no clube de sempre, o cenário mais provável, e compor-se um plantel competitivo, com frescura e fome de troféus. Terá a cantera mais peso? Ou vão perder a cabeça novamente para atrair os melhores futebolistas do mundo? Haverá coragem e poder para o novo treinador dispensar tubarões do balneário, tal como Guardiola fez com Ronaldinho e Deco (e quase Eto'o)? Bartomeu prometeu mudanças profundas e Piqué, após o desastre diante do Bayern, admitiu esse cenário: "O clube precisa de mudanças. Estruturalmente, o clube precisa de mudanças de todos os tipos, porque ninguém é insubstituível. Sou o primeiro a oferecer-me para sair porque acho que chegámos ao fundo do poço".
Há um problema sensível para resolver quanto à questão da revolução do plantel. "A situação é agora muito complicada porque não há futebolistas que acabem contrato este verão", descasca o tema Cabezas, que informa ainda sobre o corte de 200 milhões de euros em ingressos, revelado no último exercício. "E todas as saídas terão de ser negociadas ou até admitir-se a possibilidade de saírem a custo zero. A direção prometeu, em todo o caso, uma 'ampla restruturação'. Será um processo duro por se tratarem de futebolistas icónicos da entidade."
Barata tem dúvidas semelhantes: "Quem irá pagar quantias avultadas por jogadores como Suárez, Busquets, Alba, Vidal, Rakitic ou Piqué, já acima dos 30 anos e com salários muito avultados? (...) O Barça tem uma estrutura económica muito dependente das receitas geradas pela venda de bilhetes para o Camp Nou e sobretudo na exploração de atividades relacionadas com o turismo em Barcelona, como as tours ao estádio, experiência para visitantes, museus e lojas espalhados pela cidade. A entrada de dinheiro no clube está muito dependente do fluxo de pessoas [na cidade] e com a pandemia tudo isso ficou quase parado. Assim, uma situação que já era delicada tornou-se quase numa pré-crise. Desengane-se quem acha que haverá um cheque e uma vassoura em Camp Nou. Não há dinheiro para isso".