Pelos vistos, Lionel Messi não é inibido nem dócil como os seus desempenhos precisos e atitudes silenciosas em campo fazem crer. Messi, a quem um dia o brasileiro Roberto Amado - sobrinho de Jorge Amado - atribuiu falsamente um diagnóstico autismo por causa da timidez, é afinal implacável a exercer a sua autoridade. E isso é ok: praticamente todos os que ocupam a posição que ele ocupa o são.
A originalidade aqui é a disrupção que as inéditas críticas do antigo assessor e do tio de Griezmann e também de dois ex-treinadores de Messi provocaram na biografia que nos chegou como um conto de fadas: o menino talentoso que deixou a Argentina quando alguém assinou um contrato num guardanapo; o rapaz com problemas de crescimento submetido a tratamentos hormonais que cresceu amparado num dos maiores clubes do Mundo para se transformar, sem questiúnculas, o seu porta-estandarte.
Quase perfeito, demasiado redondinho, provavelmente errado.
Durante muito tempo, Messi foi-nos retratado como o tipo bonzinho, obediente, discreto e humilde, em contraposição com os jogadores espalhafatosos, arrogantes, vaidosos e mal-educados. Nomeadamente, Cristiano Ronaldo, o que deu jeito do caraças para vender a história de dois génios contemporâneos que não podiam ser mais diferentes um do outro, no tipo de talento, nas relações familiares e na forma como se comportavam no relvado, no balneário e, por fim, em sociedade.
Mas Messi e Cristiano têm traços comuns tal como a generalidade dos que dominam as respectivas áreas em que competem. Mais cedo ou mais tarde, é inevitável que um dia queiram que as coisas sejam feitas à maneira deles, sobrepondo-se aos colegas, a quem os devia liderar e, em última análise, a quem lhe paga as contas.
Isto acontece porque gente assim é melhor do que a maralha e às tantas o poder que legitimamente conquista fica à solta, incontrolável. Restam depois três opções: deixar o barco do capitão, aguentar o barco com o capitão, ou expulsar o capitão.
O caso de Lionel Messi, que nunca saiu de Barcelona ou do Barcelona, é único: se terminar a carreira na cidade Condal, o argentino será a única superestrela de um clube só. Neste longo trajeto, os blaugrana foram acomodando um dos melhores futebolistas de sempre com mordomias, escolhendo treinadores com o seu aval, mantendo os seus amigos por perto no onze titular, satisfazendo alguns caprichos e ajudando-o até na embrulhada fiscal em que se viu metido com o pai. Segundo os “Football Leaks”, Messi pagou o que devia à Hacienda com dinheiro do Barcelona.
A fuga ao Fisco, aliás, foi o primeiro momento em que o mundo olhou para Messi como um homem deste planeta, permeável a erros e pecados como qualquer um de nós. Outros episódios incluíram fotos de festas, as birras com a federação argentina - em defesa dele, a AFA é caótica -, as discussões com o selecionador Sampaoli ou a decisão desassombrada de abandonar a seleção da Argentina após a derrota na final da Copa América.
Na altura, Messi falhou um penálti e a seguir garantiu não “haver marcha-atrás” na sua intenção. Disse também que aquilo seria “o melhor para todos”, para ele e “para as muitas pessoas que desejavam” que saísse. A irreversibilidade, como viemos a saber, durou pouco e Messi logicamente voltou a capitanear a Argentina, mas ficou escrito na pedra - ou pelo menos na internet - que o astro era dado a humores complicados.
O Barcelona também os sentiria: neste verão, houve o episódio do burofax, palavras do pai de Messi e a certeza de que o jogador só não saiu porque os seus argumentos legais tinham a consistência da plasticina - ir para tribunal era uma guerra perdida e cara, com consequências reputacionais evidentes.
Que ele não se podia permitir, para conservar a imagem que construiu.