Futebol internacional

Paris Saint-Messi é o futebol a mudar de pele mesmo à frente dos nossos olhos

Paris Saint-Messi é o futebol a mudar de pele mesmo à frente dos nossos olhos
Aurelien Meunier - PSG

Não será, apenas, uma facada no coração dos crentes na fidelidade de futebolistas a camisolas. A ida de Lionel Messi para o PSG, mesmo chorando por ficar no Barcelona onde tinha escrita a história de lenda de um só clube, mostra como os clubes endinheirados pela opulência vinda de fora talvez já sejam os únicos a conseguirem lidar com a bitola que eles próprios foram elevando

A caligrafia tinha laivos longos em certas letras, era inclinada para a direita e transpirava a década atrás, Carles Rexach de facto aprendeu a escrever no despertar dos anos 50, o estilo viria daí e nem o pedaço de papel cujos propósitos eram outros lhe parece ter afetado o estilo na mão:

"(...) compromete-se, sob a sua responsabilidade e apesar de algumas opiniões contra, a contratar o jogador Lionel Messi sempre e quando mantenhamos os valores acordados"

Esta é parte da mensagem que, em 2000, o então dirigente do Barcelona rasurou num guardanapo do café onde se encontrou com Jorge, o pai da criança de 13 anos, nem com 140 centímetros e a quem só pediram para se equipar em um dos supostos 15 dias que estaria a treinar, à experiência, para a quererem contratar.

O cliché de concluir um conto escrevendo que o resto é história assenta na perfeição em Lionel Messi, nos 21 anos seguintes à escritura no guardanapo ele desenhou maravilhas com uma bola no pé esquerdo e a vida rolou, também. Foi criança, adolescente, adulto e pai e não voltou a assinar contrato com outro clube. Foram 627 golos, centenas mais de momentos de "Viste aquilo? Sim, vi", vimo-lo todos até estar a meio caminho entre os trinta e os quarenta e pedir para aquecerem os motores do seu jato privado.

Messi viajou para França, onde se comprometeu a jogar durante as próximas duas épocas no Paris Saint-Germain. É tão oficial que há fotos do argentino de caneta na mão, com papelada escrita em juridiquês e contratês à frente, pronta a receber o preto no seu branco para o dono de seis Bolas de Ouro atribuídas pela revista do mesmo país ir distribuir a riqueza talentosa que lhe resta com a camisola mais endinheirada que hoje há no futebol.

O PSG terá oferecido cerca de €35 milhões de potencial salário anual ao argentino, incluindo possíveis bónus por objetivos cumpridos. Só a assinatura do contrato equivaleu a €25 milhões de prémio para Messi, que se vinculou com o clube por duas épocas e ficou com mais uma de opção. Lionel poderá ficar em Paris até ter 37 anos, quiçá mais grisalho de aparência, por certo com o seu talento majestoso sem um beliscão.

Na idade atual, quando há muito se colou aos futebolistas a etiqueta de velhos, o argentino terá, de novo, a companhia do malabarista Neymar, com quem coincidiu no Barcelona entre 2013 e 2017 e nutriu uma amizade desfeita no campo por jogos de sombras, disse-se que o brasileiro trocou a convivência por Paris para se tentar elevar a um estatuto que não tinha.

Supostamente, quis escalar à altitude de Lionel Messi e ser o melhor sem alguém melhor a acima dele no mesmo hectare de relva, todas as semanas.

O PSG pagou €222 milhões por um dos três membros do grupo de WhatsApp que se foi mantendo ativo, depois de Neymar seria Luis Suárez a ir embora do Barça (para o Atlético de Madrid) e Messi agora reencontra um dos lados do triângulo atacante que foi dos mais espetaculares de se ver neste século. E acabou de ser formado outro que, ao menos, promete tanto como esse.

A Neymar juntar-se-ia Kylian Mbappé em 2018, justificador de outra pujante compra inflacionária de preços por cabeça de jogadores. O PSG pagou €145 milhões pelo francês em quem as opiniões convergem como provável próximo reinante no futebol e estranho também é, de repente, haver em Paris uma coincidência de três talentos a quem se previu, ou prevê, grandeza suprema.

O clube tem o ainda melhor jogador do mundo, o há 10 anos badalado como o melhor não fosse um argentino e um português desafiarem o tempo, e o esperado futuro melhor para a próxima década. Na mesma equipa estarem Lionel Messi, Neymar e Kylian Mbappé soa quase a batota, é a música da extravagância, o tipo de melodia que a UEFA se propõe pomposamente a combater desde 2009, com o seu fair-play financeiro do qual nem um piu se escutou sobre este negócio.

Gustavo Pagano/Getty

No mesmo verão, o Paris Saint-Germain contrata os antigos capitães do Real Madrid e do Barcelona sem um euro pago aos respetivos clubes, quando ambos os jogadores admitiram, sem pudores, que a ideia eram ficarem onde estavam, agraciando o outono dos seus dias enquanto futebolistas onde fizeram nome e carreira, em instituições mais preocupadas nos últimos tempos com Superligas e dinheiros. No caso dos catalães, nem parecia.

Os €367 milhões que o PSG esbanjou em Neymar e Mbappé (os €222 milhões do brasileiro, mais os €145 milhões do francês) são um bolo menor do que os €390 milhões usados pelo Barcelona, à pressa e sob pressão, para contratar Philippe Coutinho, Ousmane Dembélé e Antoine Griezmann, os três sobreavaliados jogadores com que tentou, atabalhoadamente, preencher a cratera deixada aberta pela venda do amigo de Messi, em 2017.

A calamitosa gestão do Barça teve no argentino tanto de causa como de consequência, ele a alimentar uma máquina trituradora de despesa pelo sucesso que lhe foi dando e a máquina a ir gripando, soluçando na falta de conserto a que se ia votando com tantas renovações contratuais a Messi, tantas cedências às exigências de outros jogadores da equipa por verem os bolsos do argentino serem insuflados a cada ano.

Entre 2017 e 2021, documentos divulgados pelo "El Mundo", vindos da investigação do Football Leaks, mostraram que Messi terá recebido €555 milhões em ordenados do Barcelona. Em 2017/18, o clube foi o primeiro na história a reportar receitas superiores a mil milhões de dólares — hoje, a sua dívida rondará os €1,2 mil milhões.

O Barcelona não goza do oleoduto constante de dinheiro que desagua no PSG desde 2011, quando a Qatar Sports Investment o comprou; ou no Manchester City, que em 2008 começou a ser recheado pelo investimento do Abu Dhabi. Eram, provavelmente, os únicos clubes endinheirados e com liquidez suficiente para irem buscar Messi e sustentarem a abastança do argentino, habituado a esticar a ser o assalariado que estica corda que os patrões não deixavam romper por estarem perante uma genialidade à qual não colocavam preço.

Serem ambos, à sua maneira, um pináculo da superclubice moderna, equipas que viraram lutadoras pela conquista da Liga dos Campeões e de títulos internos quase unicamente pela pujança dadas pelos zilionários que quiseram entrar no futebol, é mais uma prova do lugar para onde a modalidade se encaminha, cada vez mais — a pandemia que despiu estádios de gente e dessas receitas, que cortou nos ganhos com os direitos televisivos, só vincou a delapidação das contas dos clubes que não dependem de petrodólares.

Lionel jogará o que lhe resta do legado em construção em França, onde está um campeonato com nível inferior ao de Espanha, Inglaterra e Alemanha. Que, no natal passado e ao fim de apenas quatro meses de contrato, ficou sem os €814 milhões do acordo para a transmissão dos direitos televisivos dos seus jogos, devido à falência da MediaPro.

Entretanto, este lado da Ligue 1 tem sido um berbicacho para resolver: a liga terá vendido à Amazon os direitos de 304 jogos (ou oito por semana) por €275 milhões por época, noticiou o "Financial Times", quantia inferior aos €303 milhões pagos pela Canal+ para ter dois jogos do campeonato gaulês por semana. A empresa, que em dezembro salvou a liga francesa, já avisou que vai contestar os acordos na justiça e é nesta caótica indefinição onde também vai aterrar o jogador argentino.

Messi jogará pelo clube que vive à tona de tudo isto, o Paris Saint-Germain que já foi PSN, depois PSM e agora repete a metamorfose da sigla. O aproveitamento desta oportunidade faz da equipa francesa o Paris Saint-Messi e se, com o argentino, finalmente conseguir ter a conquista da Liga dos Campeões que há tanto deseja, tê-la-á da forma menos aplaudível possível depois de contadas as palmas pela prestação no campo.

Fora dele, Lionel Messi é a prova mais recente de como se pode atirar dinheiro para cima de um desejo.

Nem chega a ser um problema quando tantos clubes há a afundarem-se em dívidas, a apertarem o cinto ao esqueleto e a já não terem euros para competir com equipa que viraram apetecíveis pelo dinheiro. Todas o são, de certa maneira, mas nem todas têm a tradição que apelava ao coração e só depois à carteira. A questão no PSG, como no City ou no Chelsea antes de ambos, já não será apenas a sua riqueza plástica.

É o facto de parecerem ser os únicos clubes capazes de lidar com a bitola milionária com a qual eles próprios foram puxando bem cá para cima os salários de jogadores, as exigências destes, os valores de mercado que carregam e o que tem por aceitável pagar por almas que pontapeiam bolas de futebol.

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