Futebol internacional

Guardiola volta a sugerir greve dos futebolistas contra o calendário, Kompany defende limite de jogos por ano para as estrelas

Guardiola volta a sugerir greve dos futebolistas contra o calendário, Kompany defende limite de jogos por ano para as estrelas
ADRIAN DENNIS

Segundo o FIFPRO, Vinícius Junior jogou o dobro dos minutos que Ronaldinho jogou até aos 22 anos e Mbappé fez mais 48% do tempo em campo do que Thierry Henry até aos 24 anos. O calendário está a engordar, assim como a insatisfação dos protagonistas – o City fez 61 jogos em 2022/23. Pep Guardiola, que já falara em greve no passado e em como UEFA e FIFA “estão a matar os jogadores”, deu o exemplo da luta das futebolistas da seleção espanhola

Convocando a sua versão mais sindicalista, Pep Guardiola voltou a sugerir uma greve dos futebolistas contra o sobrecarregado calendário. Talvez seja a única maneira de convencerem os cartolas de que algo tem de mudar no futebol, desconfia o catalão. “Se todos os jogadores decidirem dizer ‘stop’, então eles terão de mudar alguma coisa. E a FIFA e a UEFA talvez reajam um bocadinho”, refletiu, na véspera do jogo com o Wolves.

Para dar força ao argumento, o treinador do Manchester City resgatou o exemplo da seleção feminina de Espanha. “As jogadores decidiram mudar algo e eles mudaram”, sinalizou, numa alusão à luta que as futebolistas têm levado a cabo contra Luis Rubiales e toda a entourage da federação, comportamentos e dinâmicas que assombraram estágios, competições e carreiras.

“Eles mudaram algo porque as jogadoras decidiram que elas tinham algo dentro delas para as proteger, e ao futuro das equipas de novas gerações”, continuou. “O maior legado é esse. As equipas de Espanha fizeram-no. Não sei se no mundo do futebol masculino vão fazê-lo.”

Pep lembrou ainda que o “espetáculo” prosseguiria sem personagens como ele, porém nunca sem os futebolistas. “Depende deles, se eles assim decidirem”, sublinhou o peso que teriam se os atletas se juntassem. E depois deu o exemplo da NBA, onde jogam 80 partidas durante alguns meses, mas que depois têm alguns meses de paragem, pelo menos para aqueles que não chegam às finais. Três semanas de férias no futebol não são suficientes para os jogadores se regenerarem, sugere. No passado já havia referido que o calendário castiga os que têm mais sucesso.

Shaun Botterill/Getty

O treinador já havia denunciado este problema algumas vezes, nomeadamente em abril de 2021, quando disse que FIFA e UEFA “estão a matar os jogadores”, lembrando que os jogadores “são seres humanos, não são máquinas”, daí rodar “seis ou sete jogadores em todos os jogos”, explicou então.

Na época passada, o cityzen Rodri, um Guardiola dos tempos modernos, fez 68 jogos por clube e seleção. Bruno Fernandes fez 70. “A cada ano está pior e pior e vai continuar a ficar pior e não sei onde vai parar, honestamente”, desabafou o catalão, natural em Santpedor, em agosto. O problema está na saúde e energia mentais, explicou. “Eles estão exaustos. Vejam já quantos jogadores estão lesionados numa pré-época com más condições – humidade, calor, os campos não estão bons, especialmente nos Estados Unidos. Mas é como é. Temos de nos adaptar, ajustar, mas não é normal”, lamentou.

O apelo manso à greve dos futebolistas já havia sido esboçado por Guardiola em dezembro de 2021. “Se calhar, os jogadores e os treinadores devem unir-se e fazer uma greve ou algo do género, porque já se percebeu que nada se vai resolver só com palavras”, lamentou então, apontando de seguida a luz para os culpados. “A UEFA, a FIFA, a Premier League, os detentores de direitos de transmissão televisiva e o negócio parecem ser mais importantes que o bem-estar dos jogadores.”

“Porque não nos ouvem?”

Embora não tão drásticos, Pep Guardiola tem alguns aliados nesta luta. Bom, Vincent Kompany, ex-capitão do Manchester City e atual treinador do Burnley, talvez seja ligeiramente. “Para os jogadores na elite, os que jogam nas seleções nacionais e em todas as outras competições, deveria estabelecer-se um teto de jogos por temporada”, refletiu o belga, na véspera de mais uma jornada da Premier League. “Não vamos tirar um jogador de uma final ou dos jogos importantes, mas vejam: se se delibera que psicologicamente [jogar] entre 65 e 70 jogos não é saudável, então deveria estabelecer-se esse limite e fazer ajustes, como quando se lesiona um jogador.”

Visionhaus

Recentemente, Erik ten Hag, o treinador do Manchester United, queixou-se do mesmo problema, no seguimento das lesões de Lisandro Martínez, Sergio Reguilón, Tyrell Malacia, Luke Shaw e Aaron Wan-Bissaka. “Tivemos um Mundial no meio da época, tivemos uma época mais longa, tivemos de jogar também uma temporada maior, com a FA Cup. Tivemos uma pausa mais pequena. O calendário está a aumentar cada vez mais, a carga é demasiada para os jogadores. Muitos colegas meus disseram o mesmo, mas continua. E continua, não vai parar. Os jogadores não conseguem lidar com esta sobrecarga.

Um jogador do plantel do United, Raphael Varane, já o escrevera na rede social X, nos primeiros dias de agosto, no seguimento de uma reunião com a associação de futebol de Inglaterra. “Tanto os treinadores como os jogadores têm partilhado preocupações ao longo dos anos, de que há demasiados jogos, o calendário está sobrecarregado e atingiu um nível perigoso para o bem-estar físico e mental dos jogadores. Por que razão as nossas opiniões não são ouvidas?”

O FIFPRO, o sindicato internacional dos jogadores, pediu mais férias para os atletas em agosto de 2020. Até seis meses, especificaram os responsáveis pela entidade que identificavam na altura um “pico de lesões” derivado de uma “preparação insuficiente” e a um calendário sobrecarregado”.

Em 2023, o FIFPRO publicou um relatório em que foi analisado o impacto do “congestionamento extremo do calendário” e concluiu que 43% dos futebolistas inquiridos que participaram no Campeonato do Mundo, no Catar, revelaram “fadiga mental extrema ou incrementada”, transformando-se assim num “perigo que pressiona a saúde mental e física dos jogadores”.

Icon Sportswire/Getty

Alguns números oferecidos pelo FIFPRO, em agosto, são assombrosos. Vinícius Junior, com 18.876 minutos em cima dos relvados, jogou o dobro dos minutos que Ronaldinho jogou até aos 22 anos. Ou Pedri que, com mais de 12.000 minutos em campo aos 20 anos, jogou mais 25% dos minutos que Xavi Hernández jogou até àquela idade. A cantiga é a mesma com Kylian Mbappé, que, até aos 24 anos fez 26.952 minutos em campo, mais 48% do que Thierry Henry fez até àquela idade. Finalmente, Jude Bellingham esteve mais 30% do tempo em campo do que Wayne Rooney até aos 20 anos.

City fez 61 jogos em 2022/23

O rol de queixas é extenso e vai prosseguir dentro de momentos. Até o pacato Carlo Ancelotti se mostrou insatisfeito com o estado das coisas, em abril. “O calendário não tem sentido. É demasiado apertado. Há demasiados jogos, temos de avaliar a saúde dos jogadores”, alertou.

“Cada um pensa só em si. La Liga pensa em si, a federação pensa em si. A FIFA pensa em si, a UEFA pensa em si… E os que deviam pintar [opinar] mais, que são os jogadores, não pintam nada”, indignou-se, queixando-se então que nos quatro meses anteriores tinham gozado apenas de oito dias de folga.

Mirando apenas os quatro clubes que chegaram à semifinal da Liga dos Campeões da época passada, contabilizam-se entre eles 229 jogos. Especificando: Real Madrid cumpriu 59 jogos, enquanto o City de Guardiola jogou 61, já o Inter esteve 57 vezes em cima do relvado e o Milan ligeiramente menos, 52 partidas.

Carl Recine

Recentemente, o treinador do Arsenal pediu uma reflexão. “Algo tem de ser discutido seriamente sobre para onde está a ir o futebol, a exposição dos jogadores e como os vamos permitir”, reconheceu Mikel Arteta.

Já Jurgen Klopp, o técnico do Liverpool, não tem dúvidas. “Quando eu falo no bem-estar dos jogadores, eu falo em haver demasiadas competições, temos demasiados jogos agora.”.

Por cá, Sérgio Conceição tem sido o mais vocal em relação ao tema, reconhecendo em fevereiro, por exemplo, que algumas lesões surgem devido ao “calendário apertado, com uma densidade muito grande.”

O treinador do FC Porto explicou: “É um ano atípico de Mundial a meio da época, é fácil perceber o porquê destas lesões. Ficou completamente adensado o calendário antes do Mundial e depois. Num mês fizemos 10 jogos. Depois não é só só jogos… Está provado que, sobre recuperação dos jogadores e o intervalo dos jogos, tudo o que seja quatro dias ou menos aumenta em seis vezes o risco de lesão dos jogadores”.

O treinador dos dragões apontou ainda a mira para os responsáveis. “Quem tem os direitos televisivos do nosso campeonato e de Taça da Liga e Taça de Portugal e por aí fora quer mais jogos e jogos de qualidade e nós temos de andar aqui num corrupio de viagens. O trabalho não difere em nada do que foram os seis anos. Os jogadores estão preparados para jogar de 72 em 72 horas, para jogar com qualidade, mas depois é o resto, há mais propensão para a lesão: as horas a que são os jogos, as viagens pelo meio. É uma questão que temos de reflectir.”

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