A vespa de José Mourinho vai sair da garagem: o português já não é treinador da Roma

Editor
Pela quarta vez na carreira e de forma consecutiva, José Mourinho sai a meio da temporada de um clube. A estreia foi à segunda passagem no Chelsea (2015), seguiu-se o calamitoso final no Manchester United (2018), depois o despedimento a dias de jogar uma final com o Tottenham (2021), agora a saída da AS Roma com a oitava derrota da época ainda pintada de fresco. Em pleno inverno e aos 60 anos, o treinador português fica de novo sem clube.
Frutífera, entusiasmante e auspiciosa. Os primórdios da relação entre José Mourinho e a AS Roma foram efervescentes e não prenunciavam um final assim O aeroporto da capital encheu para o receber em apoteose. “Não estamos aqui de férias ou turismo, mas sim para trabalhar”, declarou, cachecol ao pescoço e arco apontado ao coração dos adeptos para disparar uma seta certeira. “O nome da Roma é muito forte e confunde-se com a cidade”, acrescentou.
O Olímpico de Roma, velhinho estádio da capital, testou a suas costuras desde o verão de 2021. Encheu-se até ao tutano em quase todos os jogos da Série A desde então - chego a ter a lotação esgotada em 36 jogos seguidos -, as gentes a reagirem ao frenesim da contratação de um treinador hábil a falar às emoções para as lograr gerir com bisturi. Os donos norte-americanos da AS Roma souberam apelar à ligação com os adeptos: nesses primeiros dias, ofereceram a Mourinho uma vespa branca com um autocolante da loba romana que alimentou Rómulo e Remo, lenda da cidade estampada na motorizada que o português levou a passear no centro de treinos do clube.
Essa imagem não tardou a ser pintada na cidade com Mourinho conduzi-la de fato e gravata, à Gregory Peck em “Férias em Roma”, filme de 1953. O português cedo apelou às hostes e madrugou a ser gravado a paredes meias de ruas onde Francesco Totti ocupava todas as gravuras. Em questão de meses, o treinador recebia mordomias iguais às de um rei com décadas de amor à AS Roma. O tiro ao coração foi certeiro desde muito cedo.
Uns dois anos e meio volvidos e o clube anunciou, esta terça-feira, que José Mourinho já não é o treinador da sua equipa principal. Não usou a palavra “despedimento”, mas ela consta nas notícias dos jornais italianos. Em comunicado, os giallorossi citam a “paixão e compromisso” do treinador sem esconderem a “mudança imediata” que julgaram necessária para uma equipa a definhar aos poucos em campo. O penso rápido até ao verão será Daniele De Rossi, lenda romanista conhecia como Il Capitano Futuro quando jogava, pela coincidência com Francesco Totti - eram dois nascidos e criados em Roma, da Roma, que envelheceram juntos no clube.
Simbolicamente, o último jogo de Mourinho com a equipa viu-o já longe do relvado. Ficou na bancada de San Siro, o estádio onde a AS Roma perdeu com o AC Milan, a assistir encasacado à derrota da equipa por 3-1 com a mesma desinspiração coletiva a atacar e buraco insanáveis a defender. Sem Paulo Dybala, o mais técnico e inventivo jogador que teve, a equipa resumiu-se à procura incessante do poderio de Romelu Lukaku a segurar bolas na frente de ataque. Foi a nona derrota de uma época que já vinha a decair em relação às duas temporadas anteriores.
Foram sete derrotas no campeonato e 24 golos sofridos para 32 marcados, uma mancha na coesão e consistência defensivas coladas à pegada histórica de José Mourinho enquanto treinador. Pelo meio, houve o apuro recente contra a Cremonese, adversário da segunda divisão que ameaçou eliminar a AS Roma no Olímpico para a Taça de Itália. Na Liga Europa, a equipa passou aos 16 avos de final da prova que despertou a versão intempestiva e esbaforida do treinador há poucos meses, quando perdeu a última final contra o Sevilha.
Podia ter sido o primeiro técnico a conquistar a Liga Europa por três clubes diferentes (em 2003 com o FC Porto, em 2017 com o Manchester United), mas perdeu a sua sexta final europeia nos penáltis, insurgindo-se depois contra o árbitro na garagem do estádio - a UEFA castigou-o severamente, foram quatro jogos de suspensão e 50 mil euros de multa. A sua marca na alma dos adeptos, contudo, estava já esculpida com afinco.
Na primeira temporada da AS Roma, o estádio sempre cheio culminou no êxodo de adeptos romanistas a Tirana, capital da Albânia onde conquistada a edição inaugural da Liga Conferência contra o Feyenoord. Catorze anos depois, a AS Roma conquistava um título. O golo foi de Nicolò Zaniolo, menino-bonito do clube fustigado por lesões nos joelhos, entretanto saído entretanto em desgraça, castigado pelos donos por não querer ir para um clube cuja proposta fora aceite.
Já noutras paragens, o avançado elogiaria o treinador português, matando rumores de que Mourinho teria algo a ver com a sua saída. As quezílias com jogadores derramadas para público que se tornaram frequentes nos últimos trabalhos do técnico espreitaram, também, em Roma, mas não com as mesmas faíscas: catalogou Rick Kardorp de “traidor” que minou o “esforço da equipa” após um empate com o Sassuolo, o lateral direito ficaria três meses à margem, mas seria perdoado; chamou “privilegiado” ao avançado Tammy Abraham. Meras questiúnculas episódicas se comparadas com tricas em clubes anteriores.
Preso aos tentáculos do fair-play financeiro da UEFA, o clube teve o colete apertado ao corpo durante a convivência com José Mourinho. Ainda investiu 113 milhões de euros em contratações na época inaugural, ajustando depois a veste aos pulmões ainda mais no último par de inícios de temporada. O português Tiago Pinto, que também sairá da AS Roma no final deste mercado de inverno, apostou em empréstimos (Romelu Lukaku, Renato Sanches, Sardar Azmoun, Diego Llorente e Rasmus Kristensen) e contratações a custo zero enquanto Mourinho foi lançando 13 rapazes da formação, gabando-lhes o facto de serem romanisti, adeptos do clube.
Cedo se viu, sobretudo esta época, que o plantel curto aliado à rigidez de ideias a pensar o futebol ofensivo da equipa jogariam contra as perspetivas da AS Roma. Nunca sendo inocente a influência de Mourinho no cortejo a jogadores como Dybala e Lukaku para rumarem à capital, os giollorossi dependeram em demasia nos rasgos de génio do argentino e no que o belga conseguia escavar sozinho de costas para a baliza. Às duas temporadas seguidas que terminaram no 6.º lugar da Série A seguiu-se a atual, que tem a equipa na 9.ª posição.
Pior, porque um coração romanista bombeia sangue amarelo e grená num corpo com anti-corpos contra tudo o que seja azul-celeste, a AS Roma fechou ambas as temporadas atrás da Lazio no campeonato. Nas picardias vocais mourinhescas que antecederam confrontos com os rivais treinados por Maurizio Sarri, o português comparou o seu armário repleto de 26 títulos com a magreza das prateleiras do seu homónimo, porém, os olhos nas bancadas do Olímpico alimentaram a alma com outras coisas vistas: em meia dúzia de confrontos, o português perdeu quatro e venceu apenas um.
Foram 68 vitórias em 138 jogos, entremeados com 31 empates e 39 derrotas enquanto José Mourinho foi, alegadamente, o treinador com o salário mais chorudo em Itália, país onde a sua personalidade enche salas de imprensa e frases dão vida a manchetes. O português aterrara em Roma com um contrato de três anos, estreia em assinaturas para um primeiro vínculo tão longo (por norma, chegava para se comprometer só com um par de temporadas). Foi reincidente nas vezes em que publicamente desejava permanecer no clube.
Sagaz com a sua mira apontada à idolatria latente dos adeptos romanisti, Mourinho fez muito para morar em algum do vazio aberto com a reforma de Francesco Totti, seduzindo a adoração, por exemplo, quando revelou ter rejeitado um convite de Fernando Gomes para treinar a seleção nacional. “O presidente [da Federação Portuguesa de Futebol] não disse que eu era a primeira escolha, mas sim a única escolha”, anunciou, por mais deselegante que tal fosse para quem, de facto, foi contratado para o cargo. Já esta época, contou ter recusado “a oferta mais louca da história do futebol”, deixando-nos a presumir ter vindo da Arábia Saudita.
José Mourinho estará a tirar o pó à vespa e a ponderar forma de a empacotar para onde agora for.
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