José Peseiro vai desafiar a maldição José Peseiro na final da CAN do impossível
FRANCK FIFE/Getty
No domingo (20h, Sport TV6), a 34.ª edição da Taça das Nações Africanas será decidida entre as super águias, três vezes campeãs, e os elefantes, duas vezes vencedores e anfitriões do torneio. Peseiro entrou na CAN debaixo de intensas críticas e tenta tornar-se no primeiro português a erguer o troféu, contrariando a lenda negra de pé-frio que o rodeia. O adversário é uma Costa do Marfim que despediu o selecionador após a fase de grupos, mas que, “por milagre”, chegou à final
Ao minuto 85' das meias-finais da CAN, a Nigéria, que ia vencendo a África do Sul por 1-0, recuperou a bola e dispôs de um contra-ataque. O lance foi parar aos pés de Osimhen, que dobrou a vantagem das super águias, carimbando a presença na final da mais importante competição de futebol do continente africano.
No entanto, a jogada foi parar à dimensão do VAR, que descobriu uma falta na área da Nigéria, na madrugada do contra-ataque que originaria o 2-0. O árbitro foi ao monitor decidir e considerou falta: do 2-0, da meia-final selada para o lado da Nigéria, passámos a um penálti para a África do Sul. Aos 90', Mokoena transformou-o no empate que levaria a eliminatória para prolongamento.
A tentação, naqueles minutos em que tudo parecia decidido para a Nigéria até, subitamente, deixar de o estar, era olhar para o banco da seleção tricampeã africana. Lá estava José Peseiro, que parecia ter ali um desfecho condizente com o rótulo que lhe foi colado.
Eis Peseiro, o treinador pé-frio, o técnico do ‘quase’ do Sporting em 2005, do golo de Luisão na Luz, da tragédia russa contra o CSKA, o homem que perdeu uma final da Taça pelo FC Porto nos penáltis e que foi o líder de transição durante o verão quente do leão em 2018. Em Bouaké, na Costa do Marfim, a meio mundo de distância da sua Coruche natal, a ordem cósmica das coisas que o desfavorece parecia manter-se.
Mas, nesta CAN, José Peseiro parece estar a jogar contra José Peseiro. A lutar contra si próprio, contra os limites que a fortuna ou as considerações alheias lhe colocaram. E, deitando para o lixo o fado peseirista, a Nigéria foi para os penáltis e ganhou, chegando à final da 34.ª edição da CAN.
Foi mais um capítulo deste José Peseiro vs a maldição José Peseiro. Os maus resultados antes da CAN — somou sete derrotas nos primeiros 10 encontros pela Nigéria, empatou, no final de 2023, frente a Lesoto e Zimbabué e perdeu um amigável contra a Guiné-Conacri nas vésperas do torneio —levaram Nse Essien, do comité executivo da federação nigeriana, a dizer, citado pela “AFP”, que, se a entidade “tivesse dinheiro” para pagar a indemnização de Peseiro, “estava pronta para o demitir”.
O coruchense resistiu, estoico. O arranque na CAN foi um prolongamento dos resultados titubeantes, com um empate (1-1) frente à Guiné Equatorial. As nuvens de dúvidas e questões adensaram-se.
ISSOUF SANOGO/Getty
Mas, resiliente, José Peseiro parecia apostado em desafiar as expetativas. Alterou o sistema da equipa, passando a jogar com três centrais, protegendo-se mais e construindo uma muralha defensiva. Seguiram-se quatro triunfos seguidos, sempre sem sofrer golos, frente a Costa do Marfim (1-0), Guiné-Bissau (1-0), Camarões (2-0) e Angola (1-0).
Foram mais de 500 minutos sem encaixar golos, a fragilidade de há umas semanas transformada em solidez. Campeã em 1980, 1994 e 2013, a Nigéria, país de 216 milhões de pessoas (o sexto com mais habitantes do mundo), está de regresso à final da CAN, procurando Peseiro ser o primeiro treinador português a ganhar a prova que, há dois anos, teve Carlos Queiroz como finalista vencido, pelo Egito.
O técnico entrou na competição praticamente pré-despedido, mas já recebeu, do governo nigeriano, a garantia de que será, tal como o resto da equipa, condecorado quando regressar da prova. O “Soccernet.Ng” questiona se Peseiro é “um génio dos penáltis”, depois de ter feito várias substituições no prolongamento frente à África do Sul para preparar a decisão. O ministro do desporto da Nigéria — entrar em qualquer site de desporto do país é ver uma quantidade enorme de políticos opinando sobre futebol — já pediu que empresas e cidadãos reforçassem as doações para a seleção, aumentando-lhe o financiamento.
Eis José Peseiro, revitalizando uma potência de África. Na final da CAN (domingo, 20h, Sport TV6), enfrentará a Costa do Marfim, a anfitriã, que tem uma história nestas semanas não menos resiliente, não menos particular. Será a final do impossível, do impensável.
“Os fantasmas”
O duelo que concluirá a CAN será disputado no Alassane Ouattara Stadium, em Abidjan. Alassane Ouattara é, justamente, o nome do presidente da Costa do Marfim, no cargo desde 2010. Coisas do futebol africano e de um país que se tenta reconstruir após duas guerras civis — uma delas levou mesmo ao histórico discurso de Didier Drogba depois de garantida a qualificação para o Mundial 2006.
Para a Costa do Marfim, esta CAN foi vista como um momento de afirmação nacional. Investiram-se mais de mil milhões de euros numa competição que, nas palavras do presidente Ouattara, deveria “promover os ideias de reconciliação e progresso”.
Os anfitriões arrancaram a participação da melhor forma, batendo (2-0) a Guiné-Bissau no desafio inaugural. A partida foi a 13 de janeiro mas, nove dias passados, “reconciliação e progresso” não eram as palavras de ordem.
Primeiro, foi a derrota (1-0) contra a Nigéria de José Peseiro. Depois, para fechar a fase de grupos, seguiu-se um embate que o “The Guardian” descreveu como “a maior humilhação para um país anfitrião na história da CAN”: uma goleada sofrida (4-0) contra a Guiné Equatorial. Na sequência da humilhação, houve violência nas ruas e carros e lojas atacados em Abdijan.
Jean-Louis Gasset, o técnico francês de 70 anos que orientava os costa-marfinenses, foi imediatamente despedido. A CAN da afirmação da Costa do Marfim de Ouattara mergulhara num fiasco desportivo e social.
Mas esta é a CAN 2023, a CAN do impossível. Os anfitriões terminaram a fase de grupos em terceiro, com três pontos, dois golos marcados e cinco sofridos. Ficaram à espera de uma carambola de resultados que os colocasse nos oitavos de final… e aconteceu.
O impensável começou a escrever-se num Moçambique-Gana. O Gana ganhava por 2-0 à entrada para os descontos do segundo tempo, mas o sportinguista Geny Catamo e Reinildo (ex-Benfica B, Belenenses Sad, Sporting da Covilhã ou Fafe e agora no Atlético de Madrid) empataram com golos aos 91' e 94'.
Ficava a faltar que Marrocos derrotasse a Zâmbia. Bingo, triunfo dos semi-finalistas do Mundial 2022. A Costa do Marfim, dias depois da goleada sofrida, estava nos oitavos de final. Mas havia um problema: não tinham treinador.
Emerse Faé, o improvisado treinador que levou a Costa do Marfim à final
ISSOUF SANOGO/Getty
Campeã em 1992 e 2015, a Costa do Marfim começou por tentar resolver o problema olhando para as bancadas. Sentado a assistir a muitas partidas da CAN estava Hervé Renard, o carismático francês que conduziu os elefantes ao triunfo em 2015, já depois de o ter vencido com a Zâmbia, num desfecho altamente improvável.
A federação costa-marfinense contactou Renard, que mostrou interesse num contrato de curto prazo, só durante a fase a eliminar da CAN. Mas o francês orienta a seleção feminina do seu país e a federação gaulesa não aceitou o acordo.
Depois de olhar para as bancadas, a Costa do Marfim olhou para o banco. Lá estava Emerse Faé, ex-jogador de Nantes, Reading ou Nice e futebolista da geração de ouro do país, companheiro de Didier Drogba ou dos irmãos Touré na seleção. Faé era adjunto do demitido Gasset, nunca tendo exercido qualquer cargo como treinador principal na vida. A proximidade temporal com os oitavos de final fez dele a forçada solução.
Sempre in extremis, a Costa do Marfim foi progredindo: nos ‘oitavos’, esteve a perder frente ao Senegal até aos 86', quando Kessié empatou de penáltis, vencendo, depois, na decisão a 11 metros da baliza; nos quartos de final, estava a perder aos 90' contra o Mali, quando Adingra igualou e, no prolongamento, Diakité fez o 2-1.
Os elefantes chegaram, assim, às meias-finais com duas derrotas e dois empates (no tempo regulamentar) seguidos. Vivendo no limite, os anfitriões foram avançado na CAN. Aliou Cissé, o sempre sábio selecionador do Senegal, resumiu o percurso da Costa do Marfim: “A cabra morta nunca teme a faca.”
O próprio Faé descreve a jornada da sua equipa como “um milagre”, algo “do campo do sonho”. Na Costa do Marfim, os jornais chamam a esta equipa les revenants, os fantasmas, os que ressuscitaram dos mortos.
DeFodi Images/Getty
Com Drogba, símbolo desportivo do país e dos apelos à paz, sofrendo perto da linha lateral, as meias-finais contra o Congo chegaram. E, aí, o guião continuou a ser de filme.
O triunfo por 1-0 foi selado por Sebastien Haller, o avançado do Borussia Dortmund que, há ano e meio, em julho de 2022, foi diagnosticado com cancro nos testículos. Regressou aos treinos seis meses depois, após duas cirurgias e múltiplas sessões de quimioterapia. O seu primeiro golo após voltar aos relvados, contra o Friburgo, foi, claro, a 4 de fevereiro, Dia Mundial do Cancro. Agora, fez de Drogba para marcar lugar na final.
Nigéria e Costa do Marfim, apesar de só ficarem atrás de Gana (quatro títulos), Camarões (cinco) e Egito (sete) no palmarés da CAN, têm um certo histórico de “quase”. A Nigéria ficou 12 vezes em segundo ou terceiro da competição, um recorde; a Costa do Marfim teve traumáticas derrotas nas finais em 2006 e 2012, nos tempos de ouro de Drogba.
No já citado texto de 2018, Pedro Candeias recorda que José Peseiro esteve em 14 clubes (e uma seleção) em pelo menos 13 cidades de sete países diferentes. Agora vai em nove países, juntando Venezuela e Nigéria à lista. E, entre outras hipóteses, lança uma das “possibilidades” para este permanente recomeçar do coruchense: “Peseiro é, apesar de tudo, um tipo excecionalmente confiante (otimista já percebemos que é) e acha que vai finalmente provar que a maldição do perdedor é coisa para supersticiosos”.
Talvez seja este otimismo a presidir a esta campanha na CAN, ao desafiar dos seus próprios fantasmas, ao rasgar de rótulos. Para culminar a tarefa, será preciso derrotar “os fantasmas” da Costa do Marfim, a seleção zombie.