O impensável aconteceu e a Alemanha separou-se da Adidas: no primeiro Mundial que ganhou, o fundador até estava sentado no banco
A Adidas equipa a seleção alemã desde pouco antes do Mundial de 1954, o primeiro dos quatro que conquistou.
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A Federação de Futebol da Alemanha anunciou que a partir de 2027 e pela primeira vez, será patrocinada por outra marca (Nike) que não a Adidas. Adolf ‘Adi’ Dassler, fundador da Adidas, era o técnico de equipamentos que até estava no banco da seleção alemã em 1954, quando o país venceu o seu primeiro Mundial contra a então imbatível Hungria, que não perdia um jogo há quatro anos. O truque dessa partida, diz-se, foram as chuteiras inovadoras que inventara, mais leves e com pitons enroscáveis que deram jeito num relvado molhado e cheio de lama
Robert Habeck é o ministro da Economia alemão, lida com números, cifrões, tabelas e gráficos a diário, tudo ditames mensuráveis, mas, na quinta-feira, comentou um assunto impossível de aferir com exatidão. Disse ele que não conseguia “imaginar uma camisola da Alemanha sem as três riscas” e eis um detentor de cargo governativo a falar, se o diagnóstico for precipitado, sobre futebol, embora a sua declaração não seja exatamente sobre isso. Antes opinou acerca do “pedaço de identidade germânica” impregnado num povo desde há mais de 70 anos, quando começaram a ganhar coisas no futebol enquanto nação com a companhia de três linhas, brancas ou pretas, a adornar uma parte do que vestissem ou tivessem calçado.
O responsável pela economia alemã falou depois de a federação de futebol do país (DFB) revelar, com um lacónico comunicado, desprovido de exaltações emocionais, que a Nike fizeram “de longe, a melhor proposta financeira” e “convenceu” a entidade com “a sua visão” para “desenvolver o futebol na Alemanha”. Nenhuma referência à relação que vai findar para esta começar, nada de alusões sentimentais a uma ligação que parecia umbilical além de deixar uma garantia de que, até dezembro de 2026, “tudo será feito para alcançar um sucesso partilhado com um parceiro de longa data”. Porque, a partir de 2027, a Adidas responsável pelas três riscas deixará de equipar a seleção germânica, uma dos dados adquiridos por toda a gente no futebol apesar de jamais alguém ter garantido que a marca era dona desse direito.
O Europeu deste verão e o próximo Mundial, em 2026, serão as últimas grandes competições em que o país jogará com a companhia de sempre, fosse nos pés ou nas vestes a tapar o corpo, cujo início data de 1953.
Rudolf 'Adi' Dassler, o fundador da Adidas.
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Esse foi o ano antes de a seleção da Alemanha Ocidental ter permissão da FIFA para voltar a disputar um Campeonato do Mundo, perdoada do castigo aplicado na ressaca da II Guerra Mundial, quando a nação sofreu um certo ostracismo desportivo pelos males cometidos durante o regime nazi. Em 1954, muito longe de serem encarados como uma eminência futebolística ou temidos pelo seu poderio, os germânicos foram à Suíça jogar no torneio, cometendo, na primeira fase da prova, um ato quase de submissão muito pouco alemão: para o jogo frente à Hungria, reconhecendo a inferioridade, alinharam com habituais suplentes de modo a poupar as pernas com maior valia para o jogo seguinte, contra a Turquia.
Foram espezinhados, então, por 8-3 pelos poderosos magiares, a seleção mais temida, vinda de uma medalha de ouro olímpica e fomentadora de receios nos adversários que lhe aparecessem pelo caminho. Ferida e humilhada, a DFB, no seu próprio relato da história, conta ter sido inundada por cartas nos dias seguintes à derrota, uma delas com o pedido de um furioso adepto: “Se o selecionador não conhece o seu dever para com os espetadores, o melhor é ir comprar uma corda para se enforcar na árvore mais próxima, idealmente assegurando-se de que a corda não se rompe.” Dias mais tarde, em Berna, cidade da final do Mundial, o treinador Sepp Herberger posava para as fotografias vitoriosas e, mesmo ao seu lado, estava um cidadão especial.
Era Adolf Dassler, ou ‘Adi’ para os amigos.
O segundo a contar da esquerda é 'Adi' Dassler, a posar para a foto ao lado do então selecionador alemão, na final do Mundial de 1954
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Senhor já nos seus cinquentas por essa altura, fundara a Adidas em 1949 no seio de uma desavença com o irmão, Rudolf, com quem criara uma empresa de calçado desportivo antes da guerra, perto de Nuremberga - as faíscas que levaram à cisão fraterna originariam, também, a Puma, inventada pelo outro mano Dassler. Indo ao Mundial fruto da parceria firmada com a federação alemã um ano antes, Adi levou na mala dezenas de pares de chuteiras que se tornariam especiais pelas circunstâncias.
Logo na meia-final, e apesar da invenção não ser da sua autoria, os jogadores alemães tiveram uma vantagem nos pés contra os austríacos porque na sola das botas calçavam pitons enroscáveis, que lhes permitiram jogar com exemplares de alumínio mais comprido, ideias para o relvado lamacento que a chuva encharcara. Na final, em Berna, essa qualidade aliada ao peso mais leve das chuteiras Adidas se comparadas com os calcantes dos adversários seriam determinantes e a inscrição das três riscas na história do futebol alemão começou aí, um mito bem vivo a tatuar-se num povo. De novo contra “o génio encarnado pela Hungria” de Puskás e Czibor, reza a crónica do dia seguinte do “Diário de Lisboa” que os magiares tinham perdido “um título que as suas exibições anteriores os tornaram mais dignos”.
Foi uma vitória do “outsider” que era considerada a Alemanha contra a equipa a quem teve de sobrar “a consolação da ideia de que, na opinião geral, constituem a síntese da equipa perfeita pelo sentido artístico, a facilidade de evolução das individualidades que se sacrificam pelo rendimento do conjunto para dar um jogo todo feito de maleabilidade, de variedade, de eficácia, como nunca se vira desde que o futebol conquistou o mundo”. O Mundial era dos germânicos que “nunca perderam tempo com ‘bonitos’”, assentes num jogo “de uma só peça, mas eficientíssimo”, assim descrito seis anos prévios ao nascimento de nascer Gary Lineker e muitos anos antes do avançado inglês cunhar o lugar-comum futebolístico que dá a inevitabilidade da vitória à Alemanha.
Os jogadores da seleção alemã, em 1972, alinhados antes de um jogo com casacos da Adidas.
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Sem surgir no equipamento, mas nos pés dos jogadores, a Adidas foi visível nas chuteiras durante o primeiro Mundial da história que teve transmissão televisiva na íntegra. Da Alemanha para o mundo, as três riscas perduraram: estavam lá, nas chuteiras calçadas pelos jogadores, quando Franz Beckenbauer levantou a taça em 1974, em Berlim, também em 1990 no pé de Andreas Brehme que marcou o penálti vitorioso na final (com o ‘Keiser’ a selecionador) e, depois, nos calções e camisola que vestiam Mario Götze no golo que brindou os germânicos com o torneio de 2014. Mais importante, era a Adidas que bordava, desde então, as quatro estrelas por cima do símbolo da federação alemã replicado em cada pedaço de equipamento que se julgava unir, por simbiose perfeita, a marca e a seleção para a eternidade.
Ao fim de para lá de sete décadas, a Alemanha trocará a Adidas pela Nike, a gigante empresa norte-americana que terá pontapeado a rival onde mais lhe dói.
O jornal “Bild” escreveu que a federação recebia cerca de 50 milhões de euros por ano da Adidas que, em 2023, registou perdas pela primeira vez em 30 anos, em parte devido a outra separação dolorosa, com Kanye West, música responsável por desenhar várias linhas de roupa e calçado: teve um saldo negativo de €75 milhões o ano passado, seguidos aos €612 milhões de lucro em 2022. Na última semana, ao desvendar as novas camisolas para o Campeonato da Europa do próximo verão, a Adidas até arriscou ao adotar o rosa para o equipamento alternativo da seleção alemã, cor sem precedentes na história do equipa nacional germânica. O arrojo já não lhe servirá para resgatar a relação que ‘Adi’ Dassler forjou.