Futebol internacional

A FIFA acha que a candidatura da Arábia Saudita ao Mundial de 2034 tem um “risco médio” em termos de direitos humanos

Jogadores da seleção saudita a celebrarem a vitória contra a Argentina num jogo do Mundial de 2022, no Catar.
Jogadores da seleção saudita a celebrarem a vitória contra a Argentina num jogo do Mundial de 2022, no Catar.
Clive Brunskill

Há mais de um ano que a Arábia Saudita é protodona da edição do Campeonato do Mundo marcada para daqui a uma década, apesar de a FIFA só aprovar oficialmente a atribuição do torneio a 11 dezembro. A entidade, contudo, publicou o relatório de avaliação à proposta, na qual atribui a melhor nota de sempre a uma candidatura ao Mundial, entreabre a hipótese de voltar a jogar-se no inverno e afirma que realizar a prova no país será “um catalisador” para “desenvolvimentos positivos nos direitos humanos”

Nem seria sensato classificá-lo de surpresa, quanto mais de segredo, já que em outubro do ano passado, quando a FIFA oficialmente confirmou Portugal, Espanha e Marrocos como anfitriões do Campeonato do Mundo de 2030 e meio que redundou o óbvio: ficando Europa e África com essa edição do torneio, e já atribuída a predecessora, em 2026, aos EUA, Canadá e México, outros continentes ficariam com prioridade, assim o quisessem, para organizarem a prova em 2034. Cerca de um mês depois de Lisboa, Madrid e Rabat rejubilarem por serem comparsas de um Mundial, a Austrália abdicou de matutar a sua candidatura porque apercebeu-se do inevitável que surgiu da boca de Gianni Infantino, dias volvidos: daqui por uma década, o torneio seria da Arábia Saudita.

Já era do país do Médio Oriente, região que acolheu o último Mundial (no Catar), a única proposta para ficar com essa edição da competição-rainha do futebol, pelo que o presidente da entidade se predispôs a saltar etapas processuais e anunciar ao planeta o que só será oficial a 11 de dezembro, no próximo Congresso da FIFA onde as federações nacionais vão votar na “visão única, inovadora e ambiciosa” desenhada pela Arábia Saudita.

Assim se lê no relatório, publicado na noite de sexta-feira, que elogia o potencial para o país organizar “uma edição memorável e de classe mundial” e deixar “um legado abrangente para o futebol”. Para sustentar tal previsão, o trabalho deu notas e avaliações à candidatura em vários parâmetros.

Numa escala de zero a cinco, a proposta saudita acabou com 4.2, a maior pontuação alguma vez atribuída a uma candidatura, realce que não consta no relatório, mas foi diligentemente propagada por agências de comunicação que trabalham com a Arábia Saudita e a FIFA. Guardando em boa estima quase todos os desafios que organizar um Mundial pressupões, entidade pontuou com 4.1 o dossier dos estádios, apesar de oito dos 15 propostos não existirem e reconhece “um risco ligeiramente elevado” nesta área, além de um “baixo risco” a nível ambiental - para reforçar, o país, um dos cinco maiores produtores de petróleo do planeta, ainda terá que construir os tais recintos.

Similar ao que sucedeu no Catar, há dois anos, quando o Mundial se jogou entre novembro e dezembro após a FIFA emendar aquilo que não considerou ao atribuir o torneio à nação - devido às tórridas temperaturas registadas no verão -, possível será que a prova volte a ser realizada em período invernal e a meio da época desportiva na Europa. O relatório não o indica, nem sequer o assume, mas as meias-palavras evidenciam-no: “Existem alguns naturais constrangimentos a considerar em relação ao timing do evento. A FIFA é encorajada pela intenção do autor da proposta em colaborar e a sua flexibilidade em facilitar a realização do torneio no período mais apropriado.”

Os únicos setores a merecerem um aviso de “risco médio” foram os transportes, o alojamento, o “enquadramento legal” do torneio e o mais constantemente visado pelos olhares das nações ocidentais: os direitos humanos. A FIFA vê na atribuição do Mundial à Arábia Saudita “um catalisador” para “desenvolvimentos positivos” nessa área após “consultar várias fontes”, incluindo a “estratégia” da Arábia Saudita para este tema, e acreditar “no comprometimento” da nação em prestar “provisões dadas ao respeito pelos direitos humanos ligados à competição”.

A Arábia Saudita tentou sem sucesso, em outubro e quatro anos depois da última tentativa, entrar do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas e o país é criticado por várias organizações internacionais, entre elas a Human Rights Watch, da ONU, e a Amnistia Internacional, acusando-o de executar dissidentes, impor longas penas de prisão impostas a críticos, ativistas ou manifestantes anti-regime, torturar detidos, perseguir pessoas LGBTQI+ e impor limitações aos direitos das mulheres. Além de ser acusado, pelos EUA e várias outras nações, de ser responsável pelo assassinato, em 2018, de Jamal Khashoggi, jornalista que era crítico do reinado e morreu na embaixada saudita em Istambul, Turquia.

A Amnistia Internacional, aliás, já lamentou o elogioso relatório da FIFA que prontifica a candidatura da Arábia Saudita a ser aprovada no seu próximo Congresso, por o considerar “uma surpreendente lavagem do pavoroso registo do país em direitos humanos” e não detetar “compromissos significativos que impeçam os trabalhadores de serem explorados”, em semelhança ao que a mesma organização denunciou, durante anos, ter acontecido no Catar, anfitrião do último Mundial: “Ao ignorar provas evidentes de riscos severos para os direitos humanos, a FIFA provavelmente vai ter muita responsabilidade nas violações e nos abusos que terão lugar nas próximas décadas.”

Em outubro, ao reagir à rejeição da tentativa de entrada da Arábia Saudita no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, o diretor do Human Rights Watch da entidade, Louis Charbonneau, disse: “Governos que cometam crimes contra a humanidade ou atrocidades similares e garantem a impunidade para os respetivos responsáveis não deveriam ser recompensados com um lugar no principal órgão das Nações Unidas para os direitos humanos.”

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