Futebol internacional

O futebol distraiu-se com as pequenas coisas do pequeno Mjällby, o novo campeão da Suécia vindo de uma terra com 1.400 pessoas

O futebol distraiu-se com as pequenas coisas do pequeno Mjällby, o novo campeão da Suécia vindo de uma terra com 1.400 pessoas
Bjorn Larsson Rosvall/TT

Com um plantel avaliado em €16 milhões, só com quatro jogadores internacionais e a cumprir apenas a sexta época no principal campeonato do país, o Mjällby sagrou-se, pela primeira vez, campeão da Suécia, garantindo que o seu estádio no meio de uma vila de 1.400 pessoas, que vive de pescadores e agricultores, poderá disputar o acesso à Liga dos Campeões. Algumas razões vêm da inovação do clube nos pormenores que controla: por exemplo, contratou para treinador adjunto um doutorado em perceção visual que nunca trabalhara no futebol profissional

Tomem-se como fiéis as palavras de quem lá esteve. “Viras à direita na estrada onde a terra acaba e o mar começa, e esta lá Strandvallen”, deixou escrito, nas redes sociais, um adepto de uma equipa visitante. “É incrível que joguem lá futebol de elite. Ninguém lá vive, só existe uma loja e muitos animais”, acrescentou o mesmo, citado pela “BBC”, neste ponto sem dar para confiar na literalidade. Ele descrevia Hällevik, na costa sul da Suécia, onde moram quase 1.400 pessoas à beira do Báltico, um vilarejo de pescadores e agricultores onde, se tomados os factos, “deveria ser impossível jogar futebol” no nível a que a equipa local culminou esta segunda-feira.

O humilde Mjällby Allmänna Idrottsförening virou campeão sueco pela primeira vez na sua história, garantindo o título a três jornadas do fim no estádio do IFK Gotemburgo, um dos clubes ditos grandes do país. Lá recheou uma das bancadas com cerca de 1.500 adeptos seus, mais do que a população da terra que alberga a equipa, lógica semelhante à do recinto a que chama casa, capaz de acolher mais de 5.000 pessoas no seu cantinho da Suécia. 

Hasse Larsson, o diretor-desportivo, ajudou a reforçar a ideia do que é ser inóspito na versão futebolística do país. “Quando as equipas vêm cá, conduzem e conduzem de autocarro, passam por quintas e portos de pesca, continuam a conduzir e, quando já não dá para conduzir mais, encontram o nosso estádio”, brincou, há meses, quando descreveu “The Guardian” o contexto especial do Mjällby, já líder da Allesvenskan que agora venceu na sexta vez em que participa na principal divisão do futebol da Suécia. Uma pequena biografia do dirigente também ajuda ao retrato.

Nascido na localidade, Larsson é um epítome do Mjällby. Crescido na quinta da família que providenciava o sustento, os pais atazanaram-lhe o juízo para ajudar nas lides rurais em vez de se dedicar ao futebol que o levo ao clube, em 1979, onde serviu como capitão durante nove temporadas. Em 2016, ano em que o Leicester City editou a última amostra de algo parecido com um conto de fadas no futebol, ao vencer a endinheirada Premier League na qual não era das mais ricas, mas bastante dinheiro tinha, o sueco aceitou ter o cargo que ainda mantém - o Mjällby estava na terceira divisão da Suécia, apertado por dívidas, a custar-lhe sobreviver.

Sem poder recorrer ao socorro de sultões financeiros, pois a Allesvenskan impõe, tal como a Bundesliga, a regra do 50+1, obrigando os clubes a serem detidos, na sua maioria, pelos sócios, o clube acabaria por se estabilizar, chegando à primeira divisão em 2010 para ser ruminante de uma vida em iô-iô, caindo e regressando ao topo do futebol sueco durante essa década em que não se livrara de uma existência semi-profissional. “A maior parte dos jogadores tinha outros trabalhos, treinávamos ao fim da tarde, só havia eu e o meu adjunto a tempo inteiro. O técnico de guarda-redes vinha duas vezes por semana, o nosso médico tinha como primeiro emprego ser professor e só tínhamos uma refeição conjunta na equipa uma vez por semana”, contou Anders Torstensson, também ao “The Guardian”.

O atual treinador do Mjällby regressou ao clube em 2023, hesitante, para comandar a equipa pela terceira vez. Insistiu em perguntar à direção liderada por um amigo seu, Magnus Emeus - porque lá todos se conhecem, de vista ou de privarem na adolescência -, se era mesmo ele, um tipo quase sem experiência no futebol profissional, quem pretendiam. “Não queremos saber, porque vais ganhar jogos”, disseram-lhe. Dois anos volvidos, unidos na dedicação em inovar nas pequenas coisas que controlam, cresceram para serem um modelo a admirar na Suécia.

O 5.º lugar no campeonato da época anterior já demonstrara o afinco do clube em afastar-se do estereótipo da equipa pequena e aflita com a magreza de meios, a defender-se em bloco baixo, remetida a contra-atacar e a explorar bolas longas lá para a frente. “Não queremos caos, queremos controlo, somos a equipa na Suécia que mais passes faz no primeiro terço do campo”, resumiu o treinador, à “BBC”. O Mjällby assenta num sistema com três centrais, quer usufruir da bola, constrói as suas intenções com passes curtos de trás e injetou um futebol de alta voltagem na equipa, pressionando os adversários a todo o campo. Invicta há 22 jogos, é a equipa que menos golos sofreu (17) em 27 partidas e a segunda que menos remates na baliza (81) concedeu.

Bjorn Larsson Rosvall/TT

Obra de Torstensson, o treinador principal afincado no seu trabalho apesar de ligar com a leucemia que lhe foi diagnosticada o ano passado, e de Karl Marius Aksum, o seu adjunto, que personifica o viés positivo mantido pelo clube em inovar nas pequenas coisas: doutorado em perceção visual no futebol, nunca trabalhara no futebol profissional até janeiro de 2024, quando foi contratado pelo Mjällby, mas sem deixar de partilhar vídeos e considerações táticas da própria equipa, com frequência, nas redes sociais.

Desde que chegou, Aksum insistiu em trabalhar o quanto, e o quão bem, os jogadores espiam as suas redondezas antes de receberem a bola. Ou um scan, virando a cabeça para olharem à sua volta. “É uma capacidade crítica no futebol, assim os movimentos são mais rápidos e a pressão mais precisa, tens de estar sempre a fazer um update ao que te rodeia”, explicou o jovem técnico norueguês, de 34 anos. 

Ele e Torstensson limaram no Mjällby um modelo ofensivo que sobrecarrega com jogadores a zona onde está a bola para gerar superioridades e vantagens, num estilo que promove as relações e não tanto a fidelidade à posição. Favorecem, em treino, exercícios moldados ao jogo seguinte, a começar logo no aquecimento - não são fãs de rabias ou ‘meiinhos’ -, fugindo a treinador os jogadores “como na PlayStation”, explica quem no clube é louvado como o inovador de serviço: “Damos-lhes os princípios, mas nunca as soluções exatas. Têm de ser eles a tomarem as decisões.” 

Bjorn Larsson Rosvall/TT

O estímulo extraiu benesses do coletivo, com os 49 golos do Mjällby no campeonato repartidos por 16 marcadores, sinal de uma equipa sem dependências individualizadas. Seria difícil tê-las. Com apenas a 11.ª melhor média de assistência da Allesvenskan porque, enfim, não tem espaço para mais gente, o clube tímido em receitas opera com cerca de 15% do orçamento do Malmö, oito vezes campeão na última dúzia de anos, tendo de ser cirúrgico em cada euro que investe, por necessidade feita estratégia, nas pequenas coisas.

No seu plantel moram, na maioria, jogadores suecos sem fama que construíram o seu nome no Mjällby, com destaque para Elliot Stroud, canhoto ainda carente de aparições pela sôfrega seleção da Suécia, a atravessar uma crise de identidade e resultados, acaba de despedir o selecionador como pouco se lhe viu na história. É o contraste do novo campeão do país onde jogam apenas quatro internacionais e há dois nigerianos, um camaronês, um gambiano e um paquistanês, todos uns desconhecidos até há pouco tempo, vasculhados nas sombras do futebol, sobretudo e à distância, por Arvid Franzén, o chefe do scouting do clube. 

Mas é algo recente na vida do analista, de 27 anos, que só assumiu a função a tempo inteiro a 1 de outubro. Antes, ainda dedicava as manhãs a ser carteiro, em Estocolmo, a umas seis horas de caminho de carro. Ele e toda a gente agora já sabem: é seguirem a estrada principal que desaguam em Hällevik e, quando não der mais, virarem à direita e dão com o estádio do Mjällby.

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