Isto é Vítor Frade a falar de futebol: “Mas o gajo que faz um filho é obstetra?”
O professor Vítor Frade trabalhou como adjunto com Henrique Calisto, Mário Wilson, João Alves, José Torres, José Macia (Pepe), Augusto Inácio, Vieira Nunes, Tomislav Ivic, Bobby Robson, Jorge Jesus, Carlos Brito e Fernando Santos
Rui Duarte Silva
Não estava no programa (aliás, está, mas apenas para sábado à tarde), mas o professor Vítor Frade decidiu juntar-se à conversa no I Congresso Internacional de Periodização Tática. E vale a pena ler o que disse o professor que revolucionou o treino em Portugal
OLHARES SOBRE FUTEBOL: PASSADO, PRESENTE E FUTURO | FOOTBALL VIEWS: PAST, PRESENT AND FUTURE
Participantes: Carlos Daniel e António Simões
Só que, qual jogo de futebol, o inesperado aconteceu: quando os 430 participantes do Congresso entraram no grande auditório da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, quinta-feira ao final da tarde, havia mais um orador sentado à mesa: o professor Vítor Frade.
Ele só ia falar sábado, mas, quando Vítor Frade quer falar (e, publicamente, isso é raro) o melhor é mesmo ouvi-lo (ou, neste caso, lê-lo) atentamente - porque mesmo quando a torrente de raciocínios é tal que parece que não está a dizer nada relacionado com nada, está tudo relacionado com tudo. E isso tudo com uma paixão (intensidade?) que as palavras aqui escritas, infelizmente, não transmitem na totalidade.
Vítor Frade em discurso direto
"Há coisas que se estão a passar no futebol que provocam uma cegueira sobre o fundamental. A primeira questão à qual sou muito sensível é o striptease da linguagem. Falamos e parece que estamos todos a dizer o mesmo, mas não. Para mim o problema central é a dinâmica do jogo, é a dimensão tática que exige e impõe a aculturação. Se é cultura, é coletivo, porque eu não conheço cultura de um gajo só. Por isso é que dizem 'oh, deixa lá, essa merda é de família'.
No sábado fui a um casamento, coisa que faço poucas vezes, porque agora passo a ir mais a funerais do que casamentos. E vejo mais sorrisos em funerais do que em miúdos a jogar à bola, coisa que me dá cabo da mona.
Toda a gente sabe que eu sou afetivamente portista, mas em miúdo, sempre que o Benfica vinha cá perto, eu via ver um jogador que digo que depois dele não houve mais nenhum igual a ele - ajude-me lá aqui, Simões.
[António Simões responde: "Era o Germano"]
Era o Germano. Parecia o Beckenbauer. Jogava em qualquer equipa do mundo hoje em dia. Porque naquela altura havia cultura de jogo. Mesmo se houvesse gajos que os matassem à terça e quarta-feira, ao menos no treino conjunto eles resolviam-se entre todos.
Uma das palavras mais criminosas que existem hoje no futebol é 'intensidade', relacionada com velocidade. Intensidade? Intensidade é quando estamos concentrados e atentos e as coisas saem com fluidez. Isso é que é intensidade.
Vou-vos contar uma história. Um dia estava no treino e o [José] Mourinho vem a correr porque o Costinha se tinha lesionado - ele jogava a 'seis', é assim que se diz hoje, não é? - e pergunta-me quem é que tem de pôr lá, mas não me dá tempo para responder e diz que é o Maniche. 'Pensa nessa merda em casa', diz-me ele, mas depois acho que nem me deixou chegar a casa, porque ele é inteligente como o c...
Porque se tens um barco e compras uma vela enorme para ele andar mais depressa e depois não percebes por que é que ele não anda... É o vento que faz andar o barco, não é a vela.
[Levanta-se e começa a falar e a esbracejar em pé]
É que o Maniche parece um pirilampo e o Costinha era um farol. O modelo de jogo era um, mas o Maniche não era o mesmo que o Costinha.
O I Congresso Internacional de Periodização Tática decorre na Universidade do Porto até sábado
Rui Duarte Silva
Como é que há aprendizagem? Não há aprendizagem sem emoção. Quem controla hoje o treino, que são os departamentos médicos, não sabe a ponta de um corno de treino. Por exemplo, o Guardiola. Ninguém duvida da capacidade do Guardiola, mas ele não utiliza uma metodologia, utiliza um método. O preparador físico faz exercícios e depois há lesões. Não há milagres.
O treino e o jogo não são somas. Às vezes confunde-se complexidade com complicação. Alguém conhece um rio grande que tenha nascido grande? Eu não conheço. Mas nasce rio. Então, se é rio, tem de ser rio - tem de ser jogo.
Isso da intensidade não existe, por isso é que há uma intensidade máxima relativa. O diabo não está nos detalhes, está na dose.
Mas, desculpem lá, estou a tomar demasiado tempo [senta-se]. Mas é essencial tocar-se nestes aspetos [levanta-se]. A única capacidade condicional é a inteligência das inteligências. Desculpem lá, mas eles é que têm culpa, trouxeram-me aqui para a mesa [ri-se].
O guarda-redes tem a bola na mão e grita "organiza" e está tudo parado. A natureza do futebol é dinâmica, são dinâmicas que se criam. Dizem que agora se joga melhor. Para mim há quem jogue muito melhor e há quem jogue uma merda. E não sou nada da opinião de que se treina melhor.
A minha avó já dizia: nem sempre a distância mais rápida a percorrer entre dois pontos é uma linha reta. Há equipas que treinam como os hamsters, é tudo reto. Quando vejo uma equipa a jogar, extraio a ideia do treinador. Às vezes perguntam-me o que é a inteligência de jogo. Quando vês um jogo, vês logo se está lá ou não.
Há tempos falaram-me de uma entrevista do Romário e lá fui ler: vale mais do que 30 livros. Se bem que há gajos que dizem que os livros não ensinam nada a ninguém. Concordo, sobretudo a quem não os lê.
Eu só ia falar no sábado, mas já agora faco a introdução para sábado. Vocês devem estar a pensar: "Mas este filho da p... acha que é preciso saber isto tudo para ganhar?" Não, nem pouco mais ou menos. Mas para fundamentar a periodização tática é.
Qual é a coisa mais complexa do mundo? É o ser humano. E qual é a coisa mais fácil de fazer? Um filho. Mas o gajo que faz um filho é obstetra? É pediatra? Fica com direito a ser ginecologista?
[Carlos Daniel interrompe: "Mas afinal qual é a introdução?"]
Já não sei, c... Dê-me só mais dois minutos.
O "The New York Times" andou uns seis meses para me convencer a falar para eles. E eu dizia que não e o meu filho dizia: "És um cretino, já viste o que era aparecer no The New York Times?" E eles a dizer que o jornalista falava português e mais não sei o quê e lá cedi. Estive sete horas a falar com os gajos, a explicar tudo, e depois o [José] Tavares ainda lhes mandou coisas sobre o morfociclo. O jornalista lá se desculpou porque afinal saiu só uma página por causa da Coreia do Norte e mais não sei o quê. Pior, saiu ao contrário do que eu disse. Como o meu inglês é pior do que tasca, recebi sete traduções diferentes daquilo. E nenhuma é igual ao que eu disse."