Um par de dias depois do Moreirense-Benfica, disputado há duas semanas, um amigo perguntava-me porque é que nem um só jornalista tinha sido capaz de questionar o treinador dos "encarnados", Rui Vitória, sobre um penálti que terá ficado por marcar por eventual braço na bola de um defesa do Benfica. Entende – e bem – o meu amigo que, depois de Vitória ter tecido críticas à arbitragem do Benfica-Sporting devido a lances semelhantes, o mais natural é que fosse agora confrontado com essa situação do jogo. "Das duas uma: ou os jornalistas são incompetentes, e não posso acreditar que todos sejam incompetentes, ou têm receio de perder o trabalho e não têm liberdade para fazer as perguntas", sentenciava o meu amigo.
É difícil não partilhar a estupefação dele: não fui capaz de encontrar qualquer razão válida para não haver uma só alma capaz de questionar Rui Vitória sobre aquela jogada – mesmo admitindo que o lance possa ter escapado aos jornalistas no estádio ou que estes tenham ficado com dúvidas, é estranho que ninguém nas redações, com acesso a uma televisão, o tenha visto. Significa isto que não há profissionais competentes a cobrir os jogos de futebol em Portugal? Bem pelo contrário, há vários e alguns muito bons. Será então que não têm liberdade para fazer as perguntas que desejam? É certo que a forma como os três 'grandes' dominam o futebol português – secando tudo à volta como eucaliptos – quase parece uma ditadura, mas não devemos ir tão longe e afirmar que não existe liberdade de expressão.
O problema é muito mais profundo. O problema é o próprio estado do nosso futebol, que parece hoje afundado num lodo. O futebol português tem histórias lindas, como a do Caldas Sport Club, uma equipa do terceiro escalão que está nas meias-finais da Taça de Portugal, a um passo do Jamor; tem reportagens extraordinárias todas as semanas na Sport TV; tem gente que percebe de futebol e fala do que sabe em programas como o "Grande Área", na RTP; tem uma seleção que é a campeã da Europa, um jogador que é o melhor do mundo, treinadores nas melhores ligas. Tem tudo isso e, de facto, podia ser grande, mas anda entretido com coisas que o fazem muito pequeno.
Querem perceber qual é o problema do futebol português? Olhem para os dirigentes, preocupados em ganhar a qualquer custo. Quando foi a última vez que os vimos remar todos para o mesmo lado? Olhem para os treinadores, incapazes de respeitar os colegas e com a mira sempre posta nas arbitragens. Olhem para os diretores de comunicação, transformados em diretores de propaganda, a atacar o vizinho, a lançar suspeitas, a difamar. Olhem para os comentadores dos programas de TV, caixas de ressonância das frustrações dos seus clubes, quantas vezes fazendo do insulto arma. Olhem para os cronistas dos jornais, a tentarem fazer-se passar por especialistas em arbitragem quando nem conhecem as regras do jogo. Olhem para os adeptos, incapazes de reconhecer os méritos dos outros e de se comportarem bem nas vitórias e nas derrotas.
Não é difícil ver isto. Se não o vemos é porque passamos a vida de olhos postos nos árbitros, que são o menor dos problemas. Em Portugal, a paixão pelo futebol só tem paralelo no fervor com que se debatem as decisões dos homens do apito. Acham mesmo que a qualidade dos árbitros é inferior à dos dirigentes que temos? O número de erros com influência no resultado é mínimo comparado com a histeria que geram. Não, o problema não são os árbitros. São todos aqueles que os sentenciam após um julgamento sumário e os colocam perante o pelotão de fuzilamento. O vídeo-árbitro não vai mudar nada enquanto não mudar esta cultura.
O futebol em Portugal parece hoje um reality show. E o problema dos reality shows é que podem ser ótimos para as audiências, mas estupidificam todos à sua volta. Podemos continuar a falar de árbitros e de jornalistas. De e-mails e de polvos. De treinadores que são "bonecos" e de comentadores que são "labregos". Podemos especular sobre a segurança de bancadas e incitar ao ódio a quem veste uma camisola diferente. Podemos ser cúmplices deste clima de terror. Ou, então, podemos ver mais além. Não precisamos sequer de usar óculos ou de mudar de lentes. Basta olhar.
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