Dentro da FPF ninguém se recorda de uma decisão deste tipo em Portugal. Será assim uma decisão inédita aquela tomada por unanimidade a 4 de outubro pelo Conselho de Disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol, que puniu pela primeira vez um agente desportivo por discriminação de género.
Tudo aconteceu a 4 de fevereiro deste ano, em Albergaria-a-Velha, num jogo entre o Clube Albergaria e o Valadares Gaia da Liga Allianz, principal escalão do futebol feminino em Portugal quando José Carlos Bastos, que no acórdão da CD surge como "treinador do clube" mas "não inscrito na ficha técnica" do jogo, insultou a arbitra do encontro Ana Amorim após esta sancionar um lance contra a sua equipa com a seguinte frase: "Devias ter ficado em casa a lavar a loiça, não mereces o dinheiro que ganhas".
Mais tarde, o mesmo elemento, dirigente do Clube Albergaria, "ao acompanhar a equipa de arbitragem em direção às suas viaturas" disse à juíza da Associação do Porto "se quiseres o vídeo dá-me o teu mail para veres a merda que fizeste na segunda parte, vieste para aqui brincar connosco".
Oito meses depois, chega a decisão inédita, com o arguido a ser suspenso por três meses (e multa de mil euros) por aquilo que o acórdão do CD da Federação, tornado público esta quinta-feira, considera ser "comportamento discriminatório, cometido em circunstâncias que revelam especial censurabilidade, por ter sido cometida contra arbitra" e pelo "uso de expressões grosseiras ou gestos grosseiros, impróprio ou incorrectos".
Sobre a primeira acusação, e aquela sobre a qual se tomou uma decisão nunca antes vista em Portugal, o acórdão lembra que "tal ofensa em função do sexo equivale a discriminação, que se manifesta habitualmente mediante um tratamento negativo, conferido a certas pessoas, em virtude de determinadas qualidade que, aos olhos de uma parte da sociedade, as tornam inferiores às restantes".
Olhando para o caso que ocorreu no Clube Albergaria-Valadares Gaia pode ler-se ainda no acórdão: "Dizer à pessoa que dirige e arbitra o jogo, só porque é pessoa do sexo feminino, 'devias ter ficado em casa a lavar a loiça, não mereces o dinheiro que ganhas' é, na sua primeira parte, uma expressão misógina, que revela aversão ou desprezo, traduzindo opinião de que a senhora arbitra, enquanto mulher, não tinha capacidade para exercer funções de arbitra do jogo"
"Impõe-se reflectir, e ponderar, se o jogo tivesse sido arbitrado por um homem, perante o mesmo lance, qual teria sido a expressão utilizada", questiona ainda a deliberação
Dirigente nega sexismo
Em defesa apresentada por escrito, o arguido confessou a segunda parte da acusação, mas não que tenha proferido a frase "Devias ter ficado em casa a lavar a loiça, não mereces o dinheiro que ganhas".
"Não faz qualquer sentido que uma pessoa como eu, que tem dedicado parte da sua vida ao associativismo desportivo e trabalhado com pessoas do género feminino, possa proferir expressões de índole sexista", pode ler-se na sua defesa.
O facto é que o testemunho da arbitra Ana Amorim e do seu assistente acabaram por ser decisivos para uma deliberação que serve agora como exemplo para casos futuros, para os quais o atual Conselho de Disciplina terá tolerância zero.
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