

Chegam juntos, parecem os três estarolas, sorriem sem filtro e alguém lhes comenta a cumplicidade. “Pois, somos os mais velhos”, dizem os 31 anos do animado André Santos, como se a idade justificasse o invisível cordão que o une a Marco Matias, também de 31, e a Rúben Lima, que tem 30. Mas nem ele nem os seus dois compinchas são os mais velhos; são na realidade iguais a todos os outros.
Todos pisam o relvado calçados com ténis, vestidos de calções azuis e camisolas da mesma cor. Cada um leva um par de chuteiras: uns têm-nas penduradas pelos dedos de uma mão, outros seguram-nas debaixo do braço, há quem as tenha num pequeno saco com a companhia das caneleiras. Ninguém as calça antes de estarem perto do banco de suplentes, já no campo nº 3 do Complexo Nacional do Jamor.
Os que podem sentam-se nas cadeiras e na relva ficam os que sobram. Há conversa a trocar-se por entre a troca de calçado. É quinta-feira, são quase 10h, o sol esturrica a manhã, e Tiago Esgaio cheirou o queimado. Trouxe creme protetor e dá um pouco a Gonçalo Silva e a Ricardo Ferreira, que o espalham nos troços de pele destapada.
Cheira a relva acabada de regar e estes 20 e poucos homens descontraídos parecem amigos, ou conhecidos de ocasião, que combinaram jogar à bola ao calor; alguém que faça as equipas, despachem lá isso, o tempo está a contar e a malta a pagar, coisas assim. Mas não é assim. Aliás, é tudo menos isso.
Aqui estão futebolistas profissionais do Belenenses SAD, clube da Liga NOS, prestes a ter um treino, apenas o terceiro coletivo e com bola que fazem em três semanas e meia, todos juntos, todos ali aparecidos iguais, todos tão diferentes de como eram num treino matinal antes da pandemia.
Para trás ficaram o confinamento, o exercício caseiro acompanhado por telechamada, os treinos individuais e depois em grupos pequenos: esta sexta-feira há jogo com o Desportivo das Aves, que a Liga entretanto já regressou e eles são das últimas equipas a voltarem ao campo.
Agora, vieram já equipados de casa, a taparem meia cara com máscara ao saírem dos carros, quase sempre sozinhos. As boleias são raras e, se as há, só em grupos de dois. Há cuidados a ter, como o têm o burquinês Koffi e o guineense Keita, juntos pelo idioma no mesmo carro, dos primeiros a chegar, por volta das nove, porque querem ligaduras nos tornozelos, pés ou dedos — e para isso devem ir ao único balneário, onde só podem estar cinco pessoas de cada vez, fisioterapeutas, massagistas ou jogadores.
Em breve surge Tiago Esgaio, trazido pelo volante nas mãos de Rúben Lima, mais velho seis anos. Vão, como todos, para um auditório onde o plantel se junta mascarado para ouvir uma palestra do treinador Petit, antes de descerem a longa escadaria até à beira do campo. Só duas horas depois Rúben galgará os degraus de volta, chegará ao carro “praticamente todo suado”, trocará a roupa possível, limpará as mãos com álcool e irá para casa, onde vai “logo tomar banho antes de ter contacto” com os dois filhos.
Mais tarde, gostaria de “ir à esplanada, beber café com a família ou ir almoçar fora”. Não o vai fazer. Receia a companhia invisível do coronavírus, é regrado por um Código de Conduta da Federação Portuguesa de Futebol e “aí já [cai] na realidade”, da qual, confessa, este par de horas de treino no Jamor o tiram: “Só quando saio daqui é que me lembro que estamos a viver uma coisa diferente.”
O MUNDO À PARTE É O CAMPO
Assim que se avistam chuteiras nos pés, as máscaras caem das caras. Os jogadores falam entre si a distâncias que não preocupavam ninguém há meses. Ainda estão juntos perto do banco quando os quatro guarda-redes chamam uns pelos outros, apertam-se e insistem em posar para uma fotografia. Um abraço agarra Filipe Mendes (34 anos), Hervé Koffi (23), João Monteiro (19) e André Moreira (24), “o presente e o futuro”, brinca o último, especialmente galhofeiro.
Uma meia hora depois, quando nos acercamos da baliza onde já trabalham com Tozé Cerqueira, o técnico dos guardiões, André grita-nos com entusiasmo e algum vernáculo a apimentar: “Filmaram esta parte ou não?” Passam minutos e a pergunta é repetida por Filipe, acabado de aterrar de uma parada voadora, perto do poste, que afugentou um remate. É um rápido exercício de finalização curta, reação e situações de um-para-um na pequena área: o rapaz de luvas defende a baliza, outro ataca-a e um terceiro serve de oposição a quem parte com a bola. Há boa disposição.
Na outra ponta do relvado estavam os jogadores de campo. Começaram atrás da baliza, onde, bendita sombra, cada um tem o seu colchão na relva. Petit passeia-se entre eles. Mãos atrás das costas, o apito pendurado nos dedos, o cronómetro preso ao pescoço, vai falando com vários enquanto se submetem aos primeiros exercícios ordenados por Júlio Pinto.
Com o preparador físico estão pinças imaginárias, a balancearam as doses recomendadas para os jogadores "terem um rendimento em contexto competitivo", com uma carga de treino que "não seja excessiva e os faça entrarem no potencial de lesão". Porque, já lá vai o tempo, tiveram uma pré-temporada comum, competiram que nem comuns futebolistas durante sete meses, tiveram a incomum limitação de apenas se exercitarem em casa durante quase dois meses, agora têm a amostra de pré-época e, até que enfim, terão oito semanas de competição, outra vez.
São baldrocas feitas a corpos acostumados a constância. A intenção de Júlio Pinto, portanto, “dar um feedback muscular para, quando o músculo for solicitado, já ter na sua memória aquele estímulo que o predispôs e preparou para essa ativação”.
Neste treino, que se sucede a duas sessões bidiárias já feitas durante a semana, quer-se estimular a velocidade. Franclim Carvalho e Filipe Anunciação, os dois adjuntos de Petit, distribuem pinos e montam estacas no relvado para o que aí vem.
Os jogadores distribuem-se, então, por duas filas e têm de ouvir, porque Júlio injeta nas ordens os cuidados para que os exercícios de sprints retos, piques curtos e explosões controladas sejam “uma ativação controlada”. Mesmo que frenética, não poupa na pedagogia. “Coloca bem os apoios, trabalha bem os braços, tronco direito”, instrui. Não quer sprints a serem travados, mas abrandados, com “o centro de gravidade para a frente”, como se os jogadores “fossem cair no fim”. Peito para trás, como se parecessem “uma galinha” é que não, corrige às tantas Petit.
É mais de uma dezena de pequenos arranques e rasgos de velocidade para todos os jogadores, até Júlio Pinto chamar Petit. É ele o ajudante para demonstrar o último exercício. Pegam num elástico ligado a duas cintas, cada um prende a sua à cintura, vão sprintar em linha reta, sem parcimónia.
A ideia é provocarem contrarresistência mútua, para cada um ir adaptando a corrida. Arrancam, lá vão eles e, quando páram a corrida, de Petit ouve-se um jocoso “ui, já rasgou!” e de Júlio um aviso mais sério: “Se vieram para aqui na Taça da Amizade, ao lado um do outro, isto não resulta.”
TOQUE PARA O RECREIO
Terminadas as correrias, é tempo de bola, finalmente. Uma baliza é puxada para o limite da área, encurta-se um pouco o comprimento do campo e mantém-se a largura. Treinam-se situações de jogo com 11 de cada lado e com Petit a imiscuir-se no meio dos jogadores.
A saudade que sentiam disto é evidente. Joga-se a um, dois, às vezes três toques, receção e passe. Ouve-se o pac, pac, pac de muitos passes curtos, rasteiros e tensos em série, nem sempre tudo corre bem. Porque é apenas a terceira vez em quase um mês que há bola e eles estão juntos, sem limitações, a tocá-la e a trocá-la entre eles. É “claro que o jogador gosta de ter contacto com a bola”, mas “foi muito tempo de trabalho individualizado”, confessaria Petit mais tarde, normalizando as “dificuldades nos primeiros dias”.
Jogam, mais ou menos, entre as 11h e as 12h, está o churrasco solar a aquecer perto do máximo. Começa sempre a mesma equipa a sair a jogar da área, curto e com o guarda-redes. Querem atrair a pressão para, depois, tentarem ligar com os três jogadores da frente, que ficam numa provocada igualdade numérica com os defesas. “Varela! Baixa para receber à vontade e jogar”, instrui Petit para o mais velho (35 anos) dos jogadores, também o desequilibrador-mor da equipa.
É quem mais toques seguidos dá na bola. O brasileiro Diego também muito lhe toca. Chano Boukholda, magricela canhoto argelino, é outro que a tem bastante. "Não Chano! Leva, leva!", tentar consertar o treinador, quando, numa transição, ele solta a bola demasiado cedo, demasiado rápido e demasiado longe de um adversário, sem o fixar, ou seja, sem garantir que a ação de quem joga do outro lado fica comprometida a em quem tem a bola para quem a vier a receber tenha mais tempo e espaço.
Petit corrige coisas, sem interromper muito. É calmo, tranquilo e fala pausadamente, nunca se lhe escuta um berro. Até os sopros no apito são suaves. Fala muito, explica ainda mais e está longe da imagem que tínhamos dele como jogador. Chamavam-lhe “Pitbull”. “Valoriza a bola”, é um pedido repetido. “Não é preciso ir logo à profundidade”, recorda-lhes. Franclim Carvalho começa de um lado, Filipe Anunciação do outro, distribuidores de correções e ensinamentos aos jogadores mais próximos. Querem movimentos que "criem desconforto", ouve-se de um deles, nos últimos minutos, quando acabam no mesmo flanco do campo.
O futebol é do mais futebolístico que pode haver. Distanciamentos, aqui, só de jogo. Há contacto físico, há carrinhos a deslizar na relva, há disputas de bola, não há limitações ao toque entre jogadores. É a fuga ao distanciamento social, em movimento e a acontecer à nossa frente. Até uma picardia se ouve do capitão, Gonçalo Silva — “ai não gostas de levar, é?” —, quando André Santos fica por momentos na relva, tombado por um choque.
Os jogadores arfam, não é preciso auscultar cada um para entender que, por mais exercitados que se tenham mantido na quarentena, o futebol é outra coisa. “Em casa não é treino”, resume Petit, que dali a pouco apita suavemente duas vezes. Terminou. “Podes fazer uns abdominais, uns trabalhos de prancha que hoje em dia toda a gente faz, mas correr dois ou três minutos na relva é logo diferente”, atesta. A afluência massiva dos jogadores às garrafas de água, no fim de tudo, ajuda a prová-lo.
Depois, toca a buzina de um quartel de bombeiros e acabou ali o recreio. O banco e a relva amparam-nos de novo, regressam ao calçado com que chegaram. Vão trepar a escadaria, regressar aos carros e chegarão ainda suados e vestidos a casa, onde terão de lavar os próprios equipamentos.
E repetir, amanhã e no dia seguinte outra vez, porque dessa e da próxima vezes será um escape, diz Rúben Lima. “É sair um bocadinho da rotina de estar sentado no sofá e essas coisas.” Para fugir à realidade que, aos poucos, os vai deixando voltar ali. Ao lugar deles.
[esta é a versão multimédia da reportagem originalmente publicada a 29 de maio, na edição impressa do Expresso.]
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