Futebol nacional

E, num instante, nada muda por aí além

E, num instante, nada muda por aí além
RUI DUARTE SILVA

Um golaço de Pedro Gonçalves de trivela, ainda na primeira parte, fechou a reviravolta do Sporting após o arranque pressionante do Braga. Na segunda, o campeão nacional jogou melhor, controlou quase tudo, agarrou a final pelos colarinhos para conquistar (2-1) a Supertaça de Portugal e mostrou como, no ápice que passou entre duas épocas, nada parece ter mudado

Ainda no outro dia víamos o Marquês de Pombal a ser o Rossio de maralhal de gente metido na Betesga e agora o reset entre épocas a ser feito, em Aveiro, perdoem-me a leviandade, mas o cambalacho entre temporadas fez-se num ápice e essa impressão terá muito a ver com o encafuar um Campeonato da Europa e uns Jogos Olímpicos neste interlúdio. Uma pessoa nem dá pelo tempo a correr e há férias já tiradas, pré-épocas já embrulhadas e um troféu já por se decidir.

Tão pouco foi o tempo discorrido nesta tendência de arrepiar atalhos, que tem na pandemia a melhor desculpa - e que se manterá, pelo menos, até ao invernoso Mundial do Qatar do próximo ano -, que haveria sempre coisas a manterem-se como estavam, ou como pretendem estar no mundo da bola.

Por exemplo, a queda na tentação em buscar a arca perdida da profundidade (6’) é fisgada por Feddal na primeira vez que tem metros e segundos de sobra com a bola, a primeira ação do marroquino que não é condicionada por adversários é o anti-contexto do chutão, porque não é um chutão, há equipas que batem a bola para longe quando pressionados e nisto o Sporting não mudou. Quer passar a bola pelo ar e à distância e tem gente a fustigar as costas da última linha dos outros, é transplante de uma época para a outra. Pedro Gonçalves recolhe essa intenção, vira-se na área, mas Paulinho não alcança o passe.

O Sporting é muito desta vertigem vertical, continua a sê-lo e a ver só de fora, ao primeiro jogo a sério da época e sem deitar olho a treinos, nem devia valer tirar conclusões, mas, com bola, são uns primeiros 45 minutos de voos diretos com raro direito a escala. Jovane e Pedro Gonçalves aceleram atrás dos ombros cegos dos adversários, os três centrais tentam encontrá-los com passes e a meio-campo pouco se tricotam as jogadas. Também, porque o Braga ainda é o de Carlos Carvalhal.

A defender, a equipa é um cúmulo de linhas de pressão bem montadas que tentam limitar o protagonismo das feituras com bola do Sporting em Feddal, o menos hábil dos defesas a descobrir caminhos para as saídas da área. Ricardo Horta (de fora para dentro, bloqueando a opção Nuno Mendes) e Abel Ruiz (tapa a linha para Coates) obrigam-no muitas vezes a ter de decidir sem opções de decisão por aí além - também, porque Palhinha e Matheus alinham as posições e são ainda mais pressionados pelas costas.

O Braga controla, ou pelo menos limita bastante a vida ofensiva do adversário sem que exista ostensivamente com a bola, não a tem em maior fatia como sucedeu nos três encontros da última época e este é um jogo nem por isso particularmente bem jogado: as jogadas têm a memória de um peixinho dourado, o passe é uma catapulta de erros e há 41 recuperações de bola ao intervalo. Mas há a imutável qualidade à cabeça de vários tipos presentes.

Ricardo Horta é quem vê um passe picado, em diagonal, na distração de Esgaio e na corrida de Fransérgio, para o brasileiro receber à entrada da área, rodar sobre si próprio e rematar o golo que o fez chorar (20’). Urgidos por este despertador, os jogadores do Sporting saem com um apoio frontal com a bola que recuperam na sua área e aceleram a coisa à esquerda, por Nuno Mendes, quem rasga um passe tenso na profundidade onde Jovane corre e empata (29’) na cara de Matheus. Depois, houve Pedro Gonçalves.

Ele é o pote de talento prático, executante de poucos toques na bola, o exibidor da simples técnica que é controlar a bola em corrida e rematá-la, com os três dedos de fora do pé direito, para a gaveta superior da baliza. Um senhor golo de trivela (43’) vira a final para o Sporting e o jogo seria jogado de outra forma.

Mesmo com uma das equipas a perder durante todo o tempo, a segunda tentativa de futebol no relvado do Estádio Municipal de Aveiro não teve a pressa, a precipitação e os tantos erros em posse da primeira versão oficial de bola entre equipas da I Liga esta época. A partida mudou e com ela não se ouviu tanto da melhor notícia que esta Supertaça de Portugal proporcionou, coisa de ano e meio depois.

Haver, finalmente, gente a preencher bancos em estádios com vozes e nervos a reagirem, com decibéis ao alto, à infimidade de um carrinho a meio-campo ou de um passe a rasgar o espaço que parecia poder chegar a alguém dos nossos é a enormidade onde o futebol tem a sua alma. É nos adeptos e os 6.710 que estiveram em Aveiro soam a anfiteatro à pinha, mas, apesar de acontecerem coisas mais bonitas ao olho, nada proporciona mais êxtases dos que justificam juntar 22 pessoas a correrem atrás de uma bola.

Veem-se mais jogadas desenvoltas ao primeiro toque, tabelas a ligarem-se entre os jogadores do Sporting para se livrarem de cercos, perto das linhas. Parece que o cansaço também regressa do balneário, a distância entre os futebolistas da equipa a querer a bola de volta são maiores e a duração das jogadas aumenta.

Pedro Gonçalves finaliza uma dessa à entrada da área, chutando a bola em arco (52’) para as mãos de Matheus. Noutra, o guarda-redes sai da baliza, atrasa-se na sua própria invenção e perde a bola que o mesmo inventivo atacante do Sporting usa para fazer de Paulo Oliveira um túnel a desembocar diante da baliza sem luvas, onde não acertou (81’) o remate apressado. Antes, Jovane também curvaria uma tentativa rasteira, que rasou um dos postes. A sensação de perigo esgotou-se nestes episódios.

A impressão de o Braga ser capaz de ter a sua própria reviravolta nem se iniciou. Nunca os minhotos ameaçaram a baliza de Adán, fosse com receções no costado do trio de centrais, ou em jogadas apoiadas e de curtos passes. Nem para condicionar as respirações do campeão nacional com a bola o Braga teve capacidade, pareceu a decair com os minutos em vez de o relógio o melhorar, tendência que as substituições não alteraram - entraria Roger, um adolescente de 15 anos, 8 meses e 12 dias, bendito miúdo por ser menos um que se estreou perante um estádio vazio.

O esgar de retorno à normalidade possível ouviu-se no último minuto, com o ruído de quem tem voz e palmas pelo Sporting a celebrar a segunda conquista em coisa de dois meses. Ao título junta-se a Supertaça de Portugal, a primeira em 19 anos que o clube jogou como campeão nacional, no primeiro jogo que esta equipa fez com adeptos a presenciá-la em pessoa.

Isso é o que mudou verdadeiramente: neste mero instante que parece ter passado, a afinação a lidar com os momentos de jogo, a constância defensiva e o metódico avançar no campo com a bola do Sporting, não mudaram.

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