Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. A Roma de José Mourinho passou por cima da rapaziada do Empoli (7-0), na quarta jornada da Serie A, e obrigou a uma sacudidela nos arquivos do treinador português. Levantou-se muito pó, afinal há muito que os olhos de Mou não testemunharam algo assim.
É preciso recuar a 2011, quando estava no Real Madrid, para dar-se conta das últimas vezes que uma equipa sua esmagou os adversários desta forma assombrosa. Na altura, Almería e Málaga sofreram duas tareias futeboleiras (8-1 e 7-0, respetivamente), lembra o MisterChip, um senhor do Twitter (ou X, na verdade) que detém um documento de Excel imenso com histórias descascadas através dos números e estatísticas.
Longe desses palcos míticos, a primeira vez que Mourinho sentiu tal gostinho no paladar e no orgulho aconteceu no Municipal de Leiria, perante 3.000 adeptos. Foi num domingo de dezembro. Ano: 2001. De um lado, União de Leiria, do outro o Salgueiros, treinado por Carlos Manuel. Sétimo classificado contra 15.º. Intervalo: 3-0. Fim de jogo: 7-0.
“Lembro-me muito bem desse jogo, foi bastante atípico, a nossa equipa realmente teve bastante êxito nas finalizações. Não é um resultado normal”, conta Derlei – por áudios WhatsApp, pois foi impossível fazer uma desmarcação na sua agenda –, com uma formalidade e serenidade admiráveis. O avançado brasileiro marcou quatro golos naquela tarde. Apesar de ser histórico, tanto para ele, como para clube e Mourinho, o então futuro avançado do FC Porto (que ainda não sabia que assim seria) não se lembra de como fez os golos. Nem de um. Do que se lembra, sim, foi de o Salgueiros se desconjuntar a partir do 3-0. Depois, veio o castigo penoso.
“Profissionalmente, foi o jogo em que marquei mais golos”, conta. Na lembrança, mais do que os golos e as virtudes da técnica que lhe permitiram viver tal glorioso domingo, está a celebração com os companheiros brasileiros, com quem ia jantar sempre que possível depois dos jogos. Éder Gaúcho, Maciel e Jacques eram os suspeitos do costume.
O sentimento prazeroso com que fala daquela equipa é palpável. O ex-futebolista, o ninja que depois venceria a Taça UEFA e a Liga dos Campeões ao lado de José Mourinho com um dragão a tapar-lhe o coração, descreve aquele primeiro grande projeto (e fugaz) do treinador como um “Leiria bastante ofensivo, que pressionava muito os adversários e não os deixava respirar”. A ideia era deixar o rival desconfortável. “O lema da equipa era conquistar a bola o mais rápido possível e agredir [a baliza alheia] todas as vezes que possível”, precisa.
O treinador a quem conheceu cada recanto da personalidade e com quem viveu os melhores momentos da carreira era tudo menos o que agora é-lhe colado. Defensivo, nem nas conferências de imprensa. “O Mourinho sempre foi um treinador muito ofensivo. Sempre jogou para a frente, pelo menos enquanto trabalhei com ele. Mesmo no Leiria, contra Sporting ou Benfica ou FC Porto, a meta era sempre pressionar a equipa adversária, jogar em cima deles, nunca recuado a esperar. Não me lembro nem de um jogo assim enquanto fui treinado por ele. Pelo contrário.”
O ex-futebolista valoriza a “temporada muito especial” daquele grupo de jogadores. Se fosse hoje, “estaria ao nível do Braga”, arrisca. A desilusão acabou por ser inevitável: Mourinho saiu durante a época para o FC Porto, onde rapidamente começou a prometer coisas e céus e deu murros na mesa que prometiam céus e boas coisas. “Perdê-lo a meio da temporada foi um choque, eu esperava que ele continuasse até final”, confessa. “Infelizmente, aconteceu. Sabíamos que era o melhor para ele, ele merecia aquilo tudo, pelo trabalho. Foi com tristeza que os jogadores receberam essa notícia, mas ficámos felizes por ele. Foi um reconhecimento de um trabalho que tinha iniciado no Benfica e que só veio confirmar nos anos seguintes.”
A esventrada União de Leiria terminaria a época na sétima posição, num campeonato que teve o Sporting campeão, um vice-campeão chamado Boavista e um FC Porto em franca revolução silenciosa mourinhesca na terceira posição.
O artilheiro da prova foi Mário Jardel. “Até digo aos meus amigos que o melhor marcador desse campeonato fui eu, porque o Jardel não faz parte desse campeonato”, diz animadamente. “O que o Jardel fazia… 42 golos em 30 ou 31 jogos, é muito fora do normal. Enfim, foi a minha melhor temporada a nível de golos. Teve a ver com a forma como o Mourinho montou a equipa, como me meteu a jogar nessa equipa bastante ofensiva. Os jogadores atrás também tinham muita qualidade, a bola chegava sempre redonda na frente.”
Como Mário Jardel celebrou o 50.º aniversário nesta segunda-feira, pedimos a Derlei para se deter um pouco mais nesse tema. “Competir com Jardel era impossível naquela época, ainda mais jogando num clube pequeno”, admite o antigo avançado da União, uma instituição que se vai levantando orgulhosamente e que, talvez para acompanhar a história de Mou no Stadio Olimpico de Roma, goleou no domingo o Belenenses, no Restelo, por 5-0, num jogo a contar para a II Liga.
“O Jardel era um grande, era um goleador nato”, continua Derlei. “Não era um craque no sentido de ser um Deco da vida, mas era um craque no quesito do golo, a marcar golos. A nível de artilharia e de pontaria era um Cristiano Ronaldo da vida”, defende, sem medo das palavras e das comparações. “Foi um grande jogador, mereceu tudo o que fez ao longo da carreira. Deixo o meu abraço pelo aniversário, 50 anos, que Deus continua a abençoar a vida dele.”
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