

O sol raiava sobre a gola alta a roçar o queixo de Paulo Alves quando entrou em campo, ainda na primeira parte. Iluminava a Parmalat estampada nos mantos vermelhos, também o “SIC Televisão” a interromper as listas verdes e brancas. Dava luz ao logo da TMN que enchia os placards publicitários abeirados ao relvado. E reluzia na testa descoberta de João Pinto, marcador de dois dos três golos do Benfica contra o Sporting, ao correr desenfreado em celebração, a sua melena loira ao vento.
Posta atrás de ambas as balizas e virada para as bancadas, a radiante tarde dava luz também a uma tarja branca, posta a jeito dos olhos dos adeptos lá aglomerados: “Não à violência, não à violência.”
Algures no setor norte, logo aos nove minutos de jogo, ainda Mauro Airez se repercutia em piruetas pelo ar a festejar o seu golo, aterrou o engenho explosivo que viajou uns 200 metros, de um topo ao outro do Estádio do Jamor, para atingir um homem. A final não perduraria como a vencida pelo Benfica ou a perdida pelo Sporting. Ficaria como “a final do very-light”. Adotou o triste cognome da vulgar designação do projétil vindo de uma espécie de arma, de uso destinado a barcos em caso de emergências, disparado por Hugo Inácio, adepto encarnado, e que estoirou no peito de Rui Mendes, aficionado leão, matando-o no local. Desde esse trágico dia que não mais as equipas de Lisboa, acérrimos rivais no campo, se reencontraram na decisão da Taça de Portugal.
A reedição será a 25 de maio, 29 anos depois, definitivamente no Jamor, garantem da Federação Portuguesa de Futebol, onde se ouviu o mesmo rumor que sugeriu a hipótese de deslocar a final do seu histórico albergue devido à delicadeza desta memória e às preocupações com a segurança no evento face às condições do Estádio Nacional. Vencido o Rio Ave pelo Sporting e o epopeico Tirsense, do quarto escalão, pelo Benfica, nos respetivos duelos das meias-finais a duas mãos, formato que descaradamente pisca o olho à prevalência das equipas maiores, leões e encarnados vão convergir no recinto que ressuscitará as memórias de um trauma de violência.
Será a 9.ª final da Taça de Portugal contestada pelos rivais após os 40 jogos que já partilharam na prova-rainha. Nenhum guardou a carga fatídica do realizado em 1996. Poder-se-ia recordar a inoperância do Sporting de Octávio Machado, preso a três médios gregários, órfão de maior tração atacante perante o Benfica de Mário Wilson, dominador da partida, a viver uma época rocambolesca, dependente das pernas com vasta quilometragem de Valdo ou Ricardo Gomes além da inspiração de João Vieira Pinto. Mas tudo foi sugado pelo buraco negro da desgraça de uma morte que nem mereceu uma interrupção do jogo, facto ainda hoje motivador de choque em Carlos Xavier.
Batedor do penálti, na segunda parte, que consolou o Sporting com um golo na final, desabafa à Tribuna Expresso que “em qualquer lado do mundo o jogo acabava ali”. Então um dos capitães dos leões, estava no banco de suplentes quando ouviu “um barulho de foguete” que cativou a atenção dos jogadores suplentes. “Olhámos de repente para a esquerda e estava um burburinho na bancada. Criou-se um buraco grande, percebemos que alguém tinha sido atingido e estavam a tentar socorrê-lo”, recorda o antigo futebolista, lesto a falar desse dia e com indignação na voz: seria a derradeira partida da carreira de Carlos Xavier. “Não nos apercebemos da gravidade na altura, mas depois viemos a saber, não me lembro se no intervalo ou no final do jogo.”
“O futebol não pode ser um momento de tristeza”
Entretido a revolver-se no ar, absorvido pela euforia do golo, Mauro Airez não se apercebeu do very-light. “Estávamos muito concentrados”, explicou à Lusa o argentino, porém recordador de que algo parecido já acontecera, antes do encontro, quando os jogadores se aprontavam no relvado. “Sentimos é que passou uma coisa similar, de bancada a bancada, no aquecimento, mas bateu nas árvores.” O som trespassou-lhe o ouvido e ficou cravado na memória: “Como se fosse um foguete a passar, uma coisa muito leve.”
Rebobinada a fita, a transmissão televisiva da RTP deu conta da morte de Rui Mendes pouco depois da meia-hora de jogo. Sem os constrangimentos da emissão em direto, a estação faria um resumo da final com pouco mais de 12 minutos, guardado no seu arquivo, sem uma referência à “desgraça autêntica”, no retrato feito por Carlos Xavier. No próprio dia, ainda em plena final, fez o Presidente da República e o primeiro-ministro, presentes no Estádio Nacional, reunirem de emergência, ao intervalo. Com ambos esteve Gilberto Madaíl, líder da FPF, além dos presidentes de Sporting e Benfica.
Na conversa, Jorge Sampaio e António Guterres discutiram com José Roquette e Manuel Damásio a hipótese de suspender a final, punir os encarnados e dar a vitória aos leões. A reconstituição, feita por Pedro Reis, antigo assessor do presidente, à Lusa, cola os motivos para que tal não tenha sucedido: “Entendeu-se que seria mais seguro e ponderado concluir o jogo, não entregar o troféu, retirar imediatamente os adeptos do Benfica e atrasar, em meia hora ou 40 minutos, a saída dos adeptos do Sporting, para nem terem hipótese de se cruzarem.” O transtorno de Sampaio, “incomodadíssimo” com a tragédia, levá-lo-ia a falar aos jornalistas ainda no decorrer da segunda parte.
Apelou à diluição de cores nos adeptos, sem distinções, para que o evento terminasse “de forma digna e calma”. Pediu “aos portugueses” que assumissem “o recolhimento necessário” e partilhassem “a vitória com a derrota” porque “o futebol é um momento de alegria e não pode ser um momento de tristeza”. Nas palavras de quem o assessorava, a comoção de Jorge Sampaio era profunda, congelando-lhe os sentidos quando lhe chegou o telefone para falar com a família de Rui Mendes, o adepto falecido: “Só me perguntava o que se diria num momento destes: ‘Um jovem vem para Lisboa, para uma festa, e morre assim’.”
Desmanchados os motivos para qualquer festa, não houve entregue do troféu da Taça de Portugal nesse 18 de maio - o caneco esperou até à semana seguinte para chegar às mãos de João Pinto, no relvado do antigo Estádio da Luz e antes do encontro da última jornada do campeonato, contra o Vitória. O capitão do Benfica tivera a benesse de António Oliveira, selecionador nacional, para se juntar mais tarde ao estágio de Portugal, já a limar-se para ir ao Campeonato da Europa. As críticas feitas pelo Presidente da República ainda no Jamor teriam ecos vários nas semanas seguintes, submergidas pelo episódio na discussão acerca da segurança nos recintos de futebol e da violência das claques e dos adeptos.
Sem condições de segurança
Pouco demorou o Governo a anunciar que as câmaras de vigilância passariam a ser obrigatórias, pelo menos, nas casas dos ditos três grandes, algo comum hoje em qualquer estádio em Portugal. Acentuadas as arrelias um pouco por todo o ecossistema do futebol, adensando o clima de declarações bélicas entre dirigentes e canais oficiais de Sporting e Benfica, as preocupações tinham sido manifestadas quanto ao recinto mais arquitetonicamente pensado do que precavido para assegurar o bem-estar dos presentes. “O Estádio Nacional não oferece quaisquer garantias de segurança”, fez saber a PSP à FPF, publicou o Expresso na sua edição saída a 18 de maio de 1996, dia da final.
A polícia tentara, em vão, que o defunto Instituto Nacional do Desporto, responsável pela gestão do Complexo do Jamor - atual incumbência do Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) - fizesse “obras de melhoramento”. Preocupavam-lhe a ausência de uma vedação que impedisse os adeptos nas bancadas de invadirem o relvado e a “quantidade de pedras que proliferam soltas pelas bancadas e que podem ser utilizadas como armas de arremesso”. Algo terá falhado, nesse dia, na revista feita aos presentes face ao trágico very-light e às várias tochas foram acendidas na plateia.
A cerca de um mês do reencontro de Sporting e Benfica no Jamor, tempo haverá para atentar às condições de segurança e à sanidade do som institucional partilhado entre os dois clubes. Dependerá dos dirigentes e de quem gere o que é comunicado, além de como é comunicado, de ambos os lados, por que lados se convidará a recordação do passado influir no presente. “Não andei muito bem durante algum tempo”, confidenciou Mauro Airez, por pensar no festejo malabarista que deixou no Estádio Nacional. “Se não o tivesse feito… Celebrei uns metros para o lado esquerdo da baliza do Sporting, perto da zona onde o adepto morreu”, lamentou o argentino, “como se fosse um sentimento de culpa evitável”.
O que era mais de evitar estava escrito no Jamor, apontado à vista dos adeptos atrás de ambas as balizas: “Não à violência, não à violência.” Sê-lo-á sempre, nesta final que aí vem e em todas as que vierem.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt