Mike Stewart: “Não interessa o tamanho da onda, basta a água salgada para te sentires melhor. É a única garantia que tenho na vida”

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Lisboa dista quase 400 quilómetros de Viana do Castelo, duas cidades unidas por uma sucessão de longas retas de alcatrão que exigem mais de três horas mãos no volante e pés nos pedais. Faz parte, é duradouro, quilometragem necessária para se ir ao encontro do nove vezes campeão mundial no bodyboard modalidade que muito deve ao homem que nos recebe, de mão esticada, sorridente e simpático.
Mike Stewart está no topo das escadas da entrada do Centro de Alto Rendimento de Surf, em Viana do Castelo, e mistura o passou-bem com um "obrigado por vires de tão longe". O maior agradecimento vinha no sentido contrário, porque não é, de todo, comum ter tempo de entrevista com o melhor bodyboarder de sempre.
Ele já cá anda há muito, muito tempo, e se os 55 anos não fossem número pesado o suficiente para o provar, o havaiano ajuda a colocar tudo em perspetiva depois de um miúdo, de 18 anos, competidor na segunda de três etapas portuguesas do circuito mundial de bodyboard, lhe pedir conselhos sobre como adiar um voo de volta para os EUA - "Ainda me lembro do pai deste miúdo, quando tinha a idade dele", atira, as palavras como um encolher de ombros simbólico, mas de satisfação.
Mike está para ao bodyboard como Kelly Slater para o surf.
Já vens a Portugal há muito tempo?
Comecei a vir em 1993, ou 1994, e a primeira vez até foi a este evento. Acho que vim num tour promocional para uma marca, mas a primeira vez em que competi em Portugal foi aqui em Viana do Castelo, sim.
Foi a primeira competição em que participaste fora do Havaí?
Não, foi a primeira vez na Europa. O tipo de competição era diferente. O nível de bodyboard era muito alto, para a época, vieram os melhores bodyboarders do mundo, talvez houvesse um maior universo de atletas competidores, mas, nem de perto, tão técnicos como são hoje, por comparação. É natural que, 30 anos depois, as manobras sejam muito mais técnicas e dinâmicas. Diria que já estive umas 20 vezes em Portugal.
Algum sítio que prefiras?
Gosto de muitos sítios, Viana é muito fixe, como a Nazaré. Conseguiria viver aqui durante algum tempo do ano, sem dúvida.
Surfaste na Nazaré em 2009, com monstros gigantes de água a virem na tua direção. Não tiveste medo?
Não, não era assim tão diferente de surfar em North Shore, no Havaí. Em dias grandes, como em Pipeline, em que és varrido com fundo de coral. O problema na Nazaré são os fundos de areia, que fazem com que os picos de ondas mudem muitas vezes, ao contrário de um reef break, em que o pico é, por norma, estável, e só surgem outros picos quando entra uma ondulação muito grande. A coisa boa da Nazaré é que tudo vai dar à praia, portanto, se fores varrido por uma onda, é provável que acabes na areia. Idealmente, convém não acabar nas rochas.
Como é que o bodyboard apareceu na tua vida?
Vivo no Havaí, que está rodeado por mar e surf. O meu pai levava-me à praia e acabou por ser uma coisa natural. O meu contacto com ondas começou com o bodysurfing, apanhava ondas debaixo de água, sabes?, não no topo da onda. Lembro-me de, uma vez, estar a fazer isso e ouvir o meu pai gritar-me, da praia: “Hey, também podes ir em cima onda”.
Não é mais difícil apanhar o embalo da onda debaixo de água?
É diferente. Lá há mais energia, ou, pelo menos, assim o parece, mas também há mais resistência do teu corpo na água. Consegues sentir mais esse energia, estás envolvido por ela. Recordo-me, também, das primeiras sessões de que tive com uma prancha de surf, na praia de Waikiki, eram dias bonitos de sol e tudo me parecia muito fácil e user friendly.
Que idade tinhas?
Uns 4 ou 5 anos, era supernovo.
Porque não te ficaste pelo bodysurfing?
O bodyboard era a versão rápida disso. Gostava da sensação de velocidade que tens com uma prancha, além do maior tipo de ondas que consegues surfar. Mesmo em ondas pequenas, por exemplo, consegues entrar dentro de um tubo. Estás deitado e cabes melhor lá dentro. O bodyboard, no fundo, era a junção de todas as condições em que gostava de estar.
E o surf?
Comecei a surfar em pranchas duras, levava-as para as ondas e a sensação que me dava é que eram sempre demasiado duras e não muito amigáveis para quem as utilizava. Não me divertia, a curva de aprendizagem era muito longa para a minha paciência. Queria divertimento e sensações imediatas.
E o bodyboard dá logo essas coisas?
Sim, é certo que, quando começas a aprender, as primeiras experiências no mar fazem-te sentir mais realizado e são mais recompensadoras. Pelo menos, foi isso que senti. Em certas condições, se a onda for muito pequena, lenta e sem muita energia, podes divertir-se com uma longboard, mas não estás tão ligado e imerso no mar, o teu compromisso com a onda não é tão grande. Continua a ser divertido, claro, mas é diferente. Enquanto humanos, temos dentes caninos e adrenalina, fomos criados, de certa forma, para nos adaptarmos a este tipo de riscos e consequências. É muito entusiasmante estar no mar.
Mas, da mesma forma, a evolução humana colou-nos cada vez mais à terra e não ao mar.
Bom, dizem que se recuarmos muito, tudo começou no oceano, com os nossos primordiais. Penso que, no nosso design, bem lá no fundo, os nossos elementos essenciais estão adaptados à água. Claro que caminhamos, somos seres bípedes, mas os nossos antepassados, os mesmo muito antigos, começaram no oceano. Assim que tens uma ligação, é muito difícil perdê-la. Quando somos impedidos de ir ao mar até sentimos uma certa ansiedade e constrangimento, ficamos um pouco agitados, o nosso humor altera-se e deixamos de ser uma boa companhia. Acho que isso é uma consequência do facto de amarmos o oceano com tanta paixão, de forma de tão intensa e envolvente. Por isso, quando não o tens, sentes que há um grande buraco no teu universo.
Há quanto tempo não ficas dois ou três dias seguidos sem entrar na água?
Este ano, especialmente. Mudei-me para outra parte da ilha, que fica nas montanhas, portanto, mais recentemente, nem tenho surfado todos os dias. Hoje em dia, quando tenho tempo, é como se fosse uma aventura, é quase um desafio. Fiz esta mudança mais pelos meus filhos, que andam numa boa escola e assim ficámos mais perto, e porque uma delas gosta muito de cavalos e até é campeã de rodeo no Havaí. Ainda tenho acesso a boas ondas, mas já não estão à minha porta, à distância de uns passos. Por um lado, faz com que aprecie mais as sessões que tenha e, por outro, faz com que entre no mar sempre que consigo lá ir, independentemente das condições. Prefiro boas ondas, mas não me importa o tamanho, agora entro sempre, mesmo que estejam pequenas.
O que é curioso, porque a tendência, à medida que ficamos mais velhos, talvez seja irmos com menor frequência.
Sim, sim, começas a arranjar desculpas. Mas é 100% garantido que sempre que vais, voltas a sentir-te melhor. Não interessa o tamanho, basta entrar em contacto com a água salgada. É a única garantia que tenho na vida.
Começaste a fazer bodyboard e quanto tempo demorou a entrares numa competição?
É interessante. Nos primeiros anos, quando tudo ainda era imberbe, não existiam muitas provas, nem no Havai. Eu já fazia bodyboard antes do Tom Morey [inventor do desporto] criar a sua soft bodyboard. Já surfava deitado em cima de outras coisas. Mas, quando o Tom inventou a dele, achei impressionante, pensei que era mais ou menos o que já andávamos a fazer, só que melhor, mais confortável e mais controlável. O meu pai, que costumava fazer pranchas de surf no Havaí, ofereceu-me um kit de bodyboard no Natal. Ele gostava de surf, mas era mais um mecânico, tinha mais queda para carros e corridas, coisas mais malucas. Foi assim que tive a minha primeira prancha.
E daí até competires?
Ah, sim. Quando me mudei para Oahu, a ilha grande, em 1976, temos que ter em conta que só quatro anos antes se surfou com a primeira prancha de bodyboard. Estávamos muito no início. A primeira competição em participei até foi de bodysurfing, em 1979, e só em 1982, quando tinha 18 anos, ouvi falar de uma prova em Oahu. Era na praia de Sandy, voei até lá e foi um grande acontecimento para mim.
Porquê?
Não fazia ideia o que espera. Temos de contextualizar: isto foi muito antes da internet, da conetividade que temos agora. Hoje, se acontecer alguma coisa, ou a vês ao vivo, na palma da tua mão, ou pouco tempo depois, ou dentro de dias. Naquela altura não havia sinergias, não existia colaboração, nem comunicação. Não tinha ideia o que iria encontrar, só tinha a certeza que eles seriam melhores do que eu. Costumava surfar muito em Kona, nas praias de fundo de coral, pensava que tinha de treinar o maior número de manobras possível e tentar melhorar-me ao máximo. Isto foi antes do bodyboard competitivo, nada acontecia. Provavelmente não devia dizer isto, mas faltei à cerimónia de fim do liceu para ir à minha primeira competição. Os meus pais não ficaram contentes, não foi a coisa mais esperta que fiz, mas aprendi a lição [ri-se]. Encorajo toda a gente a ir à sua graduation porque só acontece uma vez na vida. Mas foi fixe, levei o primeiro protótipo da Mach 7.
Já conhecias o Tom Morey?
Sim, porque ele tinha uma espécie de centro de pesquisa e desenvolvimento em Kona, em casa, e comecei a trabalhar para ele. Um dia, apareci lá e disse que trabalhava de graça, que faria qualquer coisa, era indiferente. O Tom estava a desenvolver todo o tipo de projetos, coisas incríveis.
Projetos só para o bodyboard?
Não, todo o tipo de coisas. Ele tinha projetos de levitação, outros de aerodinâmica de veículos, outros de barbatanas mecânicas, conceitos estranhos para mim, na altura. Lembro-me de, em casa, descer as escadas, ir à cave e encontrar uma ilustração do que parecia ser um cinema ao ar livre, uma espécie de drive-through, mas não estava a perceber bem porque estavam desenhadas pessoas sentadas em cima de pranchas de surf. Mais tarde, percebi que, nos anos 70, ele tinha ilustrado um conceito de uma piscina de ondas.
Ou seja, estava a tentar ser inovador.
Não sei se era isso que pretendia, mas estava, definitivamente, a deixar-se ir na sua sua criatividade. Ele tinha acabado de vender a sua empresa, logo, ficou com bom dinheiro desse negócio, não era uma enormidade, mas naqueles dias já era bastante. Então, começou esse centro de desenvolvimento, onde trabalhei muito, porque ele me deixou.
Mas como é que isso aconteceu?
Bom, a minha vida já girava quase unicamente em torno do bodyboard. Às tantas, um surfista local contou-me que a prancha de bodyboard tinha sido inventada na ilha, muito perto de onde estava. E que o tipo que a inventou vivia e tinha casa ali. Nem queria acreditar, pensei imediatamente que tinha de descobrir onde ele estava. Um dia, quando estava a conduzir em direção a uma praia, reparei num edifício que, na parede de lado, tinha “Morey” lá escrito, e percebi que ele teria que estar naquela zona. Demorei algum tempo a encontrá-lo. Eventualmente, consegui. Agora tenta imaginar: durante toda a tua vida, mesmo que fosse só há 10 anos, és apaixonado por uma coisa e, de repente, conheces o criador de tudo.
Tiveste sorte.
Senti-me muito sortudo, mesmo. Hoje olho para trás e vejo como tudo se concretizou e compreendo como foi tudo tão especial. Sou uma pessoa muito curiosa, interesso-me muito pela forma como as coisas funcionam, quero sempre aprender como é que se constrói tudo. Por isso, trabalhar com o Tom Morey foi uma espécie de ponto catalisador para mim. Ele já estava a fazer todas as coisas que eu queria fazer, por isso influenciou-me muito. Foi o melhor estímulo que poderia ter tido. Nos primeiros tempos, ele não me deixava ir ao andar de cima, era uma zona proibida, tudo o que era top secret estava lá, tive que esperar duas semanas até me deixar subir. Varria o chão, organizava coisas, pronto, um pouco de tudo.
O Tom tinha protótipos de máquinas de planavam sobre o chão, até tinha um com um motor V12, em que o lugar do condutor era uma cadeira de praia, de alumínio, daquelas baratas, com um par de interruptores. O controlo era mínimo [ri-se]. Eventualmente, deixou-me ir lá acima e tinha um sinal na porta. Não me lembro das palavras exatas, mas era algo do género: “Quaisquer ideias ou noções pré concebidas não são permitidas para lá deste ponto”.
De tudo o que me contas, o Tom Morey era uma espécie de Da Vinci do mar.
Sim, completamente. Era muito, muito criativo. Se lhe telefonasses agora, ele era capaz de te levar a algum sítio, ou mostrar alguma coisa, que nunca tenhas visto.
O que significa ele para ti?
Os meus pais separaram-se quando eu era muito novo, então fui criado por uma mãe e um pai, à vez. Tive algumas figuras paternais em quem me guiava e o Tom Morey era um deles. Há uma história engraçada. No meu casamento, chegámos a uma parte em que o padre pediu para as pessoas envolvidas na educação do Mike Stewart se levantarem. Toda a gente esperava ver o meu pai, mas o Tom levantou-se também. Foi muito fixe. Ele foi como um pai para mim, uma inspiração e, no fundo, um catalisador para o meu processo criativo.
Ele está a perder a visão e tu, a par de outras pessoas ligadas ao bodyboard e ao surf, fizeram um vídeo a pedir contribuições para um fundo de ajuda ao Tom Morey. O inventor do bodyboard não devia estar financeiramente bem na vida?
Ele é o Deus do bodyboard, mas, infelizmente, nunca se preocupou com o dinheiro ao longo da vida. Isso nunca foi uma prioridade. É como se vivesse numa realidade paralela, desgarrado dessas coisas. Este crowdfunding tem sido muito positivo para ele. Falámos há dois dias e voltou a agradecer-me. Primeiro, ele perdeu toda a visão que tinha, agora, deve ter uns 3% ou 5%, consegue ver um bocadinho. Não sei os detalhes, mas acho que já consegue distinguir algumas cores. É difícil de imaginar. Já teve um par de cirurgias com o dinheiro que conseguimos juntar, o que é incrível. O Tom fez tanto, por tantas pessoas, que é um pouco chocante como chegou a este ponto. O dinheiro que temos ainda lhe deve chegar para mais três anos. Damos-lhe uma valor todos os meses, não é muito, mas chega para pagar-lhe as despesas de saúde, o seguro e viver no dia a dia. Queremos estender o dinheiro pelo maior tempo possível.
Falando em dinheiro, porque há uma diferença tão grande entre a indústria do bodyboard e do surf?
Acho que começou com as empresas de surf, sobretudo as marcas de roupa. Eles pegaram no negócio e, depois, faz parte da natureza humana identificarmo-nos com o que já conhecemos. No meu caso, estou mais ligado ao bodyboard e ao bodysurfing. No caso dos surfistas, eles começaram por nos apoiar, mas, no final dos anos 80, afastaram-se. O bodyboard é mais recente do que o surf, não teve o mesmo apoio corporativo e também foi sendo deitado abaixo pela comunidade do surf - pelo menos no passado, não tanto nos tempos mais recentes. É terrível, é ridículo. Depois, há a perceção do que é ser cool.
Que começou a ser associada mais ao surf.
Sim, sim, o que é o total oposto do espírito de apanhar ondas, que é uma viagem pessoal, na qual nunca te devias preocupar com a opinião dos outros sobre o que estás a fazer, e como o fazes. Isto é uma busca pessoal, se gostares, ótimo, se não gostares, o problema é teu. É como ter uma opinião. Mas essa tendência tem diminuído bastante, recentemente. Há mais bodyboarders em mais sítios a fazerem coisas mais desafiantes. Diria que grande parte da inovação em apanhar ondas tem vindo do bodyboard.
As manobras aéreas, por exemplo?
E o formato competitivo, com prioridades múltiplas. O jargão que os surfistas usam para as ondas não existia antes no mundo do surf, isso veio tudo do bodyboard, em termos de descrever os diferentes tipos e partes das ondas. O bodyboard não liderou nada, mas foi, seguramente, uma grande influência. Muitas das ondas que os surfistas estão a surfar hoje em dia tiveram lá os bodyboarders como pioneiros.
Tenho a ideia que é muito mais comum ver miúdos e crianças, nessas idades, a começarem a brincar nas ondas com pranchas de bodyboard. Mas, depois, há muito mais gente a fazer surf.
Por alguma razão, as pessoas gostam de experimentar coisas diferentes, o que é bom. Não desencorajo quem seja a fazer surf, bodyboard ou bodysurf, depende da preferência de cada um. E, também, do tipo de ondas que gostas. Muitas vezes, o ego e o marketing também são envolvidos, além de todo este hype que existe à volta do surf. De certa forma, esse lado também ameaçou o surf e os surfistas sentiram-se ameaçados e terão pensado que se devia abrandar um pouco esse aspeto. No final dos anos 80 e nos anos 90, quando tive mais sucesso, senti que não conseguia fazer o mesmo dinheiro, em termos de patrocínios, apesar de achar que tinha uma maior base de seguidores. Ia a ações de promoção e via muito mais gente a aparecer do que em eventos que envolviam surfistas profissionais. Mas nunca recebi o mesmo dinheiro. Era frustrante, porque escapava ao meu entendimento, achava que era de loucos.
Mas não procuraste saber porque é que isso acontecia?
Retraí-me, sobretudo. Ninguém me dizia, na cara, que não queria apoiar-me porque não se queriam associar ao bodyboard, ou por acharem que estava associado a iniciantes, ou por não parecer cool. Ninguém mo dizia. Pronto, é o que é.
Olhando para o circuito mundial, grande parte dos atletas vêm de países, ilhas ou de regiões não tão ricas, como o Brasil, Portugal ou as Canárias.
O bodyboard é mais barato de praticar e tem acessos mais facilitados, é mais fácil entrares num autocarro com a prancha. É preciso menos dinheiro para começares a praticar, a barreira socioeconómica é menor, o que é positivo. Ao início, só as elites podiam surfar. Hoje em dia não tens essa barreira e, seja qual for a modalidade, acho que temos o maior universo de sempre de pessoas a apanharem ondas.
E o que falta ao bodysurfing para explodir?
Parece que já está a crescer. Mas, provavelmente, falta-lhe apenas uma organização, como existe para o bodyboard e o surf, porque já existem eventos a acontecerem um pouco por tudo o mundo. Tudo o que é preciso é que alguém monte um circuito, porque já há muitas pessoas a viajarem para fazerem bodysurfing. Gostava muito que acontecesse.
Continuaste no bodysurfing enquanto ganhavas os teus nove títulos mundiais de bodyboard?
Claro. A primeira competição em que entrei na vida foi de bodysurfing, em 1979. Desde então que participo em eventos, mas sem me focar demasiado, é mais uma coisa divertida que posso fazer, um hobbie. As coisas que aprendi no bodyboard são diretamente aplicáveis ao bodysurfing, essa passagem ajuda muito. Aliás, o meu sucesso no bodysurfing é muito maior do que no bodyboard.
Muito maior?
Oh yeah, acho que já ganhei mais de 20 vezes o Pipeline Classic. Há outro evento no Norte Shore, uma competição de nadadores-salvadores, que acontece há oito anos e nunca o perdi. Houve duas edições nas quais não participei, porque estava a viajar algures, mas ganhei em todas as vezes que lá fui.
Tens 55 anos. Há alguma explicação para continuares a fazer tudo o que fazes?
Quando tinha 40 anos cheguei a um entroncamento na minha vida e pensei: Quero continuar? Quero continuar a perseguir as ondas? A ver até onde consigo chegar? Ou fico-me por aqui, opto por uma carreira de negócios e deixo-me engordar sentado numa cadeira? [ri-se]. Decidi continuar.
Estavas em boa forma?
Não, agora estou melhor, de longe. Acho que hoje estou melhor do que estava aos 18 anos. Estou mais flexível e, provavelmente, mais forte. Não tenho o cardio que tinha, mas, no resto, estou melhor.
Que mudanças fizeste na tua vida?
Pensava que o que estava a fazer era muito bom até ir ter com uma pessoa que, realmente, sabia o que estava a fazer. Disseram-me que tinha de mudar coisas na minha dieta e percebi que fazia muitas coisas de forma errada. Comia demasiados hidratos de carbono, sobretudo trigo e açúcar, estava tudo marado. A minha dieta era merdosa, basicamente. Era viciado em açúcar, como a maioria das pessoas. Também comecei a alongar mais os músculos, hoje tenho uma rotina de alongamentos que faço todas as manhãs e revejo-a com alguma regularidade. Ao nível de fitness, faço um treino específico de alta intensidade para o core [abdómen]. Depois, garanto que descanso e durmo as horas necessários, bebo muito água, água boa, não a água canalizada. Tento garantir que como bem, mantenho a boa forma física. Tento ter um bom estilo de vida.
Qual é o dia típico do Mike Stewart?
Levanto-me cedo, por volta das 6h, bebe dois copos de água fresca, alongo durante 40 minutos enquanto leio alguns e-mails no telemóvel, portanto, nem sempre é completamente relaxado. O meu dia divide-se por blocos e depende, maioritariamente, das condições do mar e do clima. Se as ondas tiverem boas num sítio específico, tudo muda - posso não alongar durante tanto tempo e ir logo para a praia, ou alongo logo e vou só à tarde. É bastante flexível.
Vives em função das ondas e já aconteceu ires atrás de uma ondulação desde o Havai até ao Alasca. Como foi isso possível?
Resumindo, em 1996, estava no Tahiti para um ensaio fotográfico e falava muito com o Sean Collins, fundador da “Surfline”, o primeiro grande especialista em meteorologia de surf, foi como um pioneiro. Estava previsto que me ia embora no fim de semana, mas avisou-me que vinha aí um grande swell, que considerasse em apanhá-lo no Tahiti e, depois, segui-lo para norte. Pensava que iria chegar até ao Havai e pronto. Portanto, persegui o swell por três ilhas do Tahiti, fui embora, tive um dia de descanso em casa, depois voei para Maui, surfei-o lá, e o Sean disse-me para tentar surfá-lo também em The Wedge [na Califórnia]. Apanhei um red eye [expressão para os voos que partem de noite e aterram na manhã seguinte] e surfei lá também, estava uma tempestade impressionante. No mesmo dia, meti-me num barco e para a surfar noutro sítio. Já estava exausto e ainda apanhei um avião para o Alasca. Na altura, era patrocinado pela Mattel [marca de brinquedos] e eles só me diziam: “Força man, épico! Vai!”. Gostaram do projeto.
Quanto tempo durou?
Uma semana. Foi uma experiência impressionante.
Ainda serias capaz de ir nessa aventura?
Acho que até daria para o fazer melhor. Neste momento não conseguiria, teria que treinar, mas acho que sim. Demoraria alguns meses a preparar-me e pronto, bastava que alguém abrisse a torneira do dinheiro [solta uma gargalhada]. É assustadoramente cansativo, exige um planeamento rigoroso. Uma boa sessão no mar já te cansa bastante, mas fazê-lo todos os dias, durante horas, com voos e viagens no meio, é esgotante. Até te concentras mais intensidade no sono, nas horas em que tens mesmo de dormir. Dormes menos tempo, mas com mais força. O teu corpo adapta-se.
Sei que também tens outra coisa para te ocupar dentro de água: filmar.
Sempre me interessei por fotografia e filme, por capturas momentos, ideias, pensamentos e disposições, acho que ser capaz de comunicar essas coisas é fabuloso. Comecei a mexer em câmeras no fim dos anos 80. Primeiro que tudo, interessava-me a parte mecânica e analógica. Quando era miúdo, fartava-me de desmontar coisas só para ver como funcionavam por dentro. Sempre fui super curioso. Acabei por comprar uma câmera de vídeo no Japão que parecia uma primeira versão aproximada a GoPro, era muito pequena. A partir daí, de tempos a tempos, ia arranjando alguns trabalhos por ser amigo do Don King [fotógrafo, produtor e realizador americano] e do Mark Cunningham [um bodysurfer]. Comecei a ser contratado para certos trabalhos de POV [partir do próprio ponto de vista de quem filma], sem saber bem o que estava a fazer. Mas, em 2000, apareceu o “Blue Crush”.
Um dos filmes sobre surf mais populares de sempre.
Correto. Eu estava a competir num evento em Pipeline, no Havai, e a produção do filme precisava de tempo na praia para gravar uma sequência de cenas. Soube que precisava de alguém para filmar dentro de água, voluntariei-me, disse que ia dar o meu melhor e concordaram porque, realmente, não havia mais ninguém [ri-se, de novo]. As ondas estavam grandes, quase nos três metros. O bom é que já surfava em Pipe há 20 anos e as ondas eram-me completamente familiares. Sabia onde me posicionar e consegui ângulos incríveis. Felizmente, até tinha um assistente de câmara, então ainda ficaram melhores. Gostei tanto da experiência, achei tão divertido, que disse logo que sim quando me perguntaram se queria filmar mais. Foi perfeito - tinha acabado de ser pai, recebia bom dinheiro e estava feliz. Nesse filme, a maioria dos planos filmados dentro de água são o meu trabalho. Foi uma espécie de dádiva de Deus.
Qual foi o último grande trabalho que fizeste?
Um anúncio para a Visa, com o Kolohe Andino [surfista profissional], em Teahupo’o, no Tahiti. Foi assustador e perigoso. Os tipos de Hollywood tinham umas ideias malucas, resolvi tentar e até consegui à primeira, mas a câmera estava desligada. Quando voltei a tentar, o mar estava bem maior. O que tinha de fazer era arranjar um plano do Kolohe dentro do tubo, a olhar para trás e a marcar um número no telemóvel, algo trivial, que qualquer pessoa faria, não é? [mais risos]. Tinha que o filmar de trás, com a pressão em cima de toda uma produção, que dependia da minha capacidade em conseguir um plano. Arranjei maneira de ir deitado na minha prancha de bodyboard, com um braço apoiado e outro a segurar na câmara. O plano era descer a onda, abrandar e deixá-lo ultrapassar-me, para ficarmos quase lado a lado. Só que, à frente da onde, estava um tipo num jet ski, também a filmar.
Ou seja, se abrandasse mais era sugado pela onda, se fosse em frente ia contra o jet ski, e se tentasse escapar pela onda, ia enrolar-me no Kolohe. Tentei persegui-lo sem lhe tocar. Foi assustador, pensei em mil coisas ao mesmo tempo, porque a câmara que tinha comigo era tão pesada que parecia uma bola de demolição. Vi uma aberta para sair da onda, meti-me por lá e safei-me - só que, atrás, veio uma onda enorme. Tentei passar por baixo, o que era impossível, fui completamente sugado e só me lembro de ser enrolado e de aquilo nunca mais acabar. Fui contra os corais, mas nada de grave aconteceu.
Voltarias a fazê-lo?
Provavelmente, sim [ri-se]. Se fosse um bom projeto e o pagamento condizente, acho que sim.
Já foste campeão mundial nove vezes, a última vez foi em 1994. Ainda pensas muito num décimo título?
Não, é um território desconhecido para mim. Precisaria de um grande apoio para o tentar. Realisticamente, provavelmente não irá acontecer. Tenho três marcas que tenho de gerir, por exemplo.
Até patrocinas bodyboarders contra quem competes no circuito.
Tenho uma equipa grande, sim. Esse lado da minha vida já me consome bastante tempo e gosto de estar nos vários aspetos de desenvolvimento de produto. Sou muito competitivo, mas odeio comprometer-me com muita coisa.
O que te motiva, então, a continuares em competição?
Adoro a pressão, a sensação de ser desafiado a fazer melhor. Quando ganhas a alguém, é como se tivesses a confirmação que o teu nível é o suficiente. Mas, depois, é muito pessoal, porque és propriedade dos objetivos que estabeleces. Os tipos que estão no circuito são brutais, focam-se apenas na competição, não têm filhos, ainda não têm uma família, nem negócios, a vida deles é isto, é aqui que ganham dinheiro. Estou aqui para ganhar, sim, mas sobretudo para desfrutar. Dá-me prazer ver que direção as próximas gerações estão a seguir.
Não sentes que competes contra gente que te admira, ou idolatra, até?
Não faço ideia, não penso nisso. Nem me considero uma ameaça para eles. Sinceramente, tenho ajudá-los no que puder, se me perguntarem. Só antes dos meus heats é que tento não falar com ninguém. Quando um bodyboarder que patrocina me ganha, é um sucesso, é sinal que está a ir bem. Fico frustrado quando perco, claro. Ontem, aliás, perdi porque, antes da minha bateria, estava preocupado em ajudar alguém, então não me concentrei a 100%. O nível é tão alto que não podes cometer erros.
Imaginas-te a ainda ter esta vida aos 65 anos?
É muito incerto. A sério, quando tinha 18 anos, olhava para um amigo que tinha 24, para o seu estilo de surfar, e achava já não era muito funcional, então pensava que já não me restavam muitos anos a fazer isto. Não imaginava que culminaria nesta viagem.
O que pensam a tua mulher e dos teus filhos?
Apoiam-me muito. É duro, não gosto de estar longe da minha família, odeio estar afastado dos meus filhos. Muitos vezes sinto-me culpado, por estar sempre a viajar. Mas, relativizando, há tantas outras profissões em que as pessoas ficam fora durante seis meses, o que desse ser terrível. Quando se ia para a guerra, o mais provável era não regressar, as hipóteses eram reduzidas. Gostava de estar em dois sítios ao mesmo tempo, como toda a gente, mas eles apoiam-me muito e tento aproveitar todo o tempo que passo com eles, tento estar muito presente e concentrado nos meus filhos.
Eles fazem bodyboard?
Antes, surfaram todos um pouco, agora, cada um se dedica à sua coisa. O meu filho pratica natação, é um miúdo grande, já consegue pegar-me ao colo, tem um bom coração. Também faz bodysurfing, de vez em quando. A minha filha adora cavalos e rodeo, não faço ideia de onde isto veio.
O que te falta fazer?
Ainda não sei, acho que isso se está a revelar. Gostava de elevar o meu nível, porque sei que consigo. Quando faço freesurf tenho um nível e quando vou competir, tenho outro, mais conservador, preso à estratégia. Não acontece tanto aos mais novos, eles arriscam mais, não pensam tanto, simplesmente tentam. O facto de ainda não terem conhecimento funciona a favor deles. Tomam riscos grandes e, muitas vezes, obtêm as recompensas. Ando a tentar ser mais mente aberta.
Ou seja, pensar primeiro nos possíveis benefícios em vez das consequências?
Yeah, porque, com a minha idade, sabes tanto sobre as consequências, por já as teres experimentado tanto - foste enrolado, magoaste-te, apanhaste sustos -, que não vale a pena preocupares-te. Ando a tentar lidar com isso.
Porque não há mais gente em desportos de ondas a prolongarem as carreiras como tu tens feito?
Hum, acho que a ideia das pessoas quanto ao que isso implica é diferente. Não ando nisto para ir atrás de ganhos específicos, faço-o pela experiência, pelo crescimento pessoal. Nunca o fiz, ou pelo menos acho que não o fiz, por uma questão de ego ou recompensas financeiras, apesar de ajudar nos meus negócios, obviamente, porque venho aqui, mostro a minha marca, aparecemos nas redes sociais e na imprensa, mas os atletas que patrocino também o podem fazer. No fundo, ainda aqui estou porque é uma excelente oportunidade para continuar a crescer. Depois, a verdade é que também sou muito curioso em relação a quão longe poderei continuar a fazer isto. É um estado mental, mais do que outra coisa. Se alguém, amanhã, viesse ter comigo e me dissesse para atacar um décimo título mundial, que teria dois anos, como todos os apoios necessários, acho que diria que sim.
Mas quererias, realmente, tentá-lo?
Sim, porque não? Seria fixe. Teria que matar-me a treinar, focar-me inteiramente nisso e ser esperto a gerir tudo. Era uma questão de me concentrar a 100%, por oposição ao estado em que me encontro hoje, em que não consigo focar-me a 100% na competição. Mas, se um anjo descesse à terra e dissesse para o fazer, com todas as condições, fá-lo-ia.
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