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Bob McTavish, o pioneiro das pranchas pequenas que experimentou LSD antes de encontrar as Testemunhas de Jeová

Bob McTavish, o pioneiro das pranchas pequenas que experimentou LSD antes de encontrar as Testemunhas de Jeová
Nuno Botelho
Tinha 14 anos e quando mexeu na primeira prancha de surf, que lhe custou 10 dólares. Depois, na década de 60, foi dos primeiros shapers a fazer shortboards, numa época em que o surf ainda tinha toda a gente a colocar-se de pé em cima de longboards. Já esteve falido duas vezes nesta vida de fazer pranchas e foi “um hippie da contracultura”, que experimentou marijuana e ácidos, antes de as Testemunhas de Jeová lhe baterem à porta e darem a explicação para “o mundo estar uma bagunça”. Aos 74 anos, Bob McTavish não quer parar e gosta de fazer pranchas para “o surf bonito, que mostra o melhor das pessoas”

Tem 74 anos. Porque é que continua a fazer pranchas de surf?
Porque já fiquei falido duas vezes [solta uma gargalhada].

É a única razão?
Não, é porque tenho uma paixão pelo shaping. Cada vez que fazes uma prancha, visualizas a prancha a deslizar na água. Surfas na tua mente sempre que estás a fazer uma prancha. É um trabalho fabuloso, não? É uma questão de amor. Todas as vezes que olho para uma prancha tenho que a visualizar na água e como vai deslizar; é por isso que o faço.

Mas quase todas as pranchas que já fez foram para outras pessoas.
Correto.

Portanto, está a visualizar uma prancha que nunca é para si.
Verdade. Mas, por exemplo, a encomenda de que estou agora a tratar é para um tipo que pesa 104 quilos. É um bom surfista, muito sólido, e ainda surfa em pranchas pequenas. Quando estou a mexer na prancha, visualizo-o em cima dela, numa onda, e consigo vê-lo a funcionar bem com ela, a desenhar curvas pesadas. Outras vezes, quando é para uma miúda nova, faço a prancha mais estreita e elegante.

Como é o processo a partir do momento em que uma pessoa qualquer lhe pede uma prancha?
Pergunto-lhe sobre que prancha está a utilizar, há quanto tempo faz surf, tento averiguar onde está o seu nível de surf e ver a pessoa, se possível, a surfar. Assim, percebo se posso preencher algum vazio ou potenciar o que já consegue fazer. Normalmente, dizem que querem evoluir numa determinada área, ou aprender a relaxar na prancha e na onda, porque têm surfado de forma muito dura e poderosa. Às vezes, querem… Qual é aquela palavra portuguesa, para chill?

Relaxar?
Sim, relaxar! Às vezes, os surfistas querem ficar mais tranquilos e tentas construir uma prancha que lhes dê o prazer de praticarem um surf bonito, com mais fluidez e deslizamento, em vez de ráaáaá [faz gestos bruscos com as mãos, aludindo a um surfista que rasga a onda com manobras] com uma shortboard. Muita gente prefere uma prancha que te permita sentir mais o oceano.

Já lhe aconteceu fazer uma prancha, dá-la ao surfista e o feedback ser mau?
É muito, muito raro. Acontecia mais na década de 70. Nos anos 60, não havia problema. Nos 70, quando começámos a desenvolver as shortboards, foi difícil conseguir que os surfistas ficassem coordenados da melhor maneira com as suas pranchas. Nessa era, enquanto designers, ainda estávamos a aprender. Provavelmente, terei feito umas mil pranchas que ficaram muito retas no tail [parte de baixo da prancha] e ficaram muito rijas. Tive que me aperceber disso. A arte do shaping é como atirar todos os ingredientes para o ar e puxar para baixos os que aquela pessoa, em específico, necessita. Visualizas a prancha mentalmente a partir de todos esses possíveis ingredientes que flutuam no ar e essa é a arte de um shaper.

O que é mais difícil: fazer uma prancha para um surfista amador ou para um profissional?
Os surfistas profissionais, sem dúvida.

Mas a diferença é grande?
Não, se estiveres a seguir um certo estilo e fores progredindo ao longo dessa linha. Mas, quando um surfista profissional aparece e diz que quer muito experimentar ir por uma nova direção, aí é quando o trabalho se torna difícil – embora, ao mesmo tempo, também seja entusiasmante. Recentemente, estive a desenvolver novos formatos côncavos para os narizes das nossas pranchas e um pro veio à fábrica e disse: “Bob, quero experimentar um nose mais duro, para ver a diferença em relação à prancha que estou a usar”. Portanto, fizemos o sketch de uma prancha, peguei numa roda de moagem e miiiiéééu, cortei um bocado do nariz da prancha dele – era uma prancha com mais de nove pés [mais de 2,70 metros] -, coloquei alguma fibra de vidro, tratei rapidamente dela e disse-lhe para ir ao mar, para a surfar. Um cameraman foi com ele antes e depois, comparámos as fotos e os vídeos, e depois confrontámos isso com as sensações que teve ao surfar. Era possível ver, pelas fotografias, que as linhas desenhadas na água e o spray deixado pela prancha eram diferentes. Ele disse que o lift no nariz da prancha não fazia diferença na parte mais tubular da onda, que te suga mais, mas quando saía para o ombro da onda, já sentia uma mudança significativa. E disse para introduzir essa alteração em todos os seus modelos de prancha.

Deduzo que isso terá dado um certo trabalho.
Pois. Foi uma coisa difícil de fazer, mas desenhámos um projeto, construímos uma ferramenta para trabalhar em todas as pranchas, conversámos com o glasser [pessoa que aplica o revestimento em fibra de vidro na prancha], que teve de aceitar que as formas da pranchas eram, agora, mais duras.

Lembra-se da primeira prancha em que tratou do shape?
Sim. Era uma prancha que, nova, custava 30 dólares, mas paguei 10 por ela. Só tinha um ano e tinha ido contra umas rochas, estava um pouco em mau estado.Trabalhei no duro para conseguir arranjar esse dinheiro. Arranquei-lhe a fibra de vidro, trabalhei no shape e voltei a colocar-lhe a fibra. Tinha 14 anos e isto foi em 1958.

Alguém lhe tinha ensinado como se fazia?
Não, foi à base da tentativa e erro. Mas só comecei a fazer pranchas profissionalmente aos 17 anos. Na altura, surfava aos fins de semana e trabalhava numa estação de rádio em Brisbane, mas fui despedido, com 17 anos, porque nunca aparecia às segundas-feiras. Correram comigo e tornei-me num surfista a tempo inteiro. Depois, consegui arranjar trabalho numa fábrica de pranchas em Gold Coast, apesar de não saber, nem perceber nada.

Optou por trabalhar como shaper em vez, por exemplo, de surfar competitivamente.
Nunca gostei de competições. Ficava demasiado nervoso, não gostava da pressão. Competi durante dois anos, entre 1965 e 1966. Fiquei em terceiro lugar no título nacional australiano e, no ano seguinte, em segundo. Até ganhei o título regional de Queensland, safava-me bem. Mas, depois, desisti também porque comecei a desenvolver a shortboard, em 1967, e como poderias julgar o surf quando o estilo das pranchas pequenas era tão diferente das longboards que toda a gente ainda usava? E, além disto tudo, devo dizer que era um hippie da contracultura.

Como assim?
Era um miúdo quando saí da era Beatnik e quando a marijuana e o LSD chegaram ao mundo do surf, eu estava lá. Não para ficar pedrado, mas para abrir a minha mente. Era isso que nos diziam, era isso que o Timothy Leary [escritor e psicólogo americano, favorável ao uso de drogas psicadélicas] dizia. Fumei erva durante três ou quatro anos e tomei muito ácido, mas, às tantas, decidi parar e pronto, nunca mais toquei.

E como foi, nessa altura, começar a fazer pranchas pequenas quando toda a gente surfava em longboards?
Entusiasmante. Antes disso, basicamente, estávamos a copiar o que se fazia na América e na Califórnia. O surf, na Austrália, a par dos clubes de surf, teve o verdadeiro arranque em 1960, ou 61, e fomos copiando os filmes, as revistas e tudo da Califórnia até 1967. Ou seja, nesse ano, começámos a ter um surf puramente ozzie [calão para australiano]. Ninguém estava a fazer isto das pranchas pequenas, portanto, decidimos inovar! Parámos de imitar o que os americanos faziam. Fomos ao Havaí, levámos as pranchas e surfámos as ondas com curvas e manobras, e não em linha reta como toda a gente fazia até então. Eu e o Nat Young. Depois, fui à Califórnia e fiz a melhor prancha que consegui. Eu e o George Greenough, um surfista americano, começámos a surfar nos picos da Califórnia com essas pranchas e ultrapassávamos todos os longboarders que tentavam roubar-nos as ondas. Fizemo-lo durante seis semanas e muita gente nos vinha perguntar onde tínhamos arranjado aquelas pranchas.

Aproveitou para fazer algumas pranchas por lá?
Sim, até fiz algumas de graça, porque estava a receber bom dinheiro de uma empresa que queria produzir os meus modelos de prancha. Foi incrível esse tempo.

Disse que ficou falido duas vezes. Como é que isso aconteceu?
A primeira, há 30 anos, foi por causa do windsurf. Nos anos 80, comecei a interessar-me por aquilo devido à velocidade e por podermos surfar ondas enormes com pranchas à vela. Adorava, era muito divertido, foi no início das tecnologias EPS e Epoxy, e comecei a moldar pranchas para uma grande empresa distribuidora - que entrou em falência. Ficou a dever-me 250 mil dólares. Na segunda vez, tentei pegar nas pranchas dos surfistas profissionais e fazer moldes, cópias, na era do Tom Curren. Eram extraordinariamente leves e bonitas, mas custava cerca de 100 dólares para fazer uma prancha, e a parte da pintura matou-me. O meu sócio na altura ficou falido devido a um outro projeto e pronto, puxou-me também.

E agora?
Tenho a marca, McTavish, que criei em 1991 e está tudo a correr bem. O meu filho, que tem 43 anos, faz a maior parte das pranchas, cerca de 25 por semana, e eu faço só cinco. Portanto, produzimos uma média de 30 pranchas por semana. Têm muita qualidade, são algo caras, fazêmo-las em Byron Bay e vendemo-las para todo o mundo. Na Europa, produzimos cerca de 300 pranchas por ano em San Sebástian e todos os anos vou a Espanha para fazer algumas, que depois vêm parar a Portugal. É a primeira vez que cá venho.

O que acha do estado atual do surf?
É um desporto para a maioria das pessoas e arte para algumas. Depois, são quatro desportos num só. O primeiro é o desporto de surfar as ondas artificiais do Kelly Slater é como se fosse um truque de circo.

Gosta do facto de existirem piscinas de ondas artificiais?
Não, acho aborrecido. Retira o jogo de xadrez com o oceano, tira-te a dança que tens com o mar. Retira a imprevisibilidade. Tudo o que eles fazem é manobras e pronto, é como ir ao circo ou jogar um jogo de consola. Depois, tens o surf do circuito mundial da WSL, que é alimentado por muito dinheiro e financiamento, que conseguiu transformar o surf num desporto e torná-lo mensurável. Mas não podes medir arte. O terceiro é o surf de ondas grandes, que se tornou em algo derradeiro, desafiante e assustador, uma questão de vida ou de morte, um pouco para pessoas um pouco loucas. E o quarto é o surf bonito, aquele que todos gostamos [ri-se]. É nisso que me especializo, é isso que nos faz sermos felizes, é isso que faz as mulheres serem elegantes e os homens poderosos. Mostra o melhor das pessoas quando estão na água.

Será que algum dia, no futuro próximo, alguém lhe vai pedir para fazer uma prancha especificamente para ondas artificiais?
Sem dúvida, vai ser um projeto contínuo. Por exemplo, digamos que temos uma prancha com duas quilhas e queremos saber qual deverá ser a largura entre elas, em relação ao tamanho do pé do surfista, porque o teu pé tem de assentar entre as quilhas. Portanto, marcas uma sessão numa piscina de ondas, com cinco ou 10 pranchas para essa pessoa, que as vai experimentar e chegarás a uma fórmula que funciona para ela. Desse ponto de vista, as ondas artificiais podem ser práticas e úteis. Mas não deixa de ser estranho.

Há uns meses, construíram uma piscina de ondas no meio do Texas, nos EUA.
Yeah, é de loucos. Estão a construir uma na Austrália, em Queensland. Piscinas com a tecnologia Wave Garden, a empresa criada em Espanha, estão a aparecer um pouco por todo o mundo. Vai surgir uma em Melbourne. Na que existe no País de Gales, tiveram problemas com a água doce, porque começaram a crescer plantas no fundo da piscina ao fim de um mês. A água é mesmo o maior problema: será que o melhor é ter grandes doses de cloro?

Depois há a questão da flutuação.
Sim, as pranchas flutuam mais baixo na água. Ou, então, se tiveres perto do oceano, podes usar água salgada na piscina, o que é o melhor. Dessa maneira, não há plantas que cresçam para encravar as máquinas.

É verdade que, algures na década de 70, se tornou numa Testemunha de Jeová?
Sim, porque estava sempre a tentar descobrir o porquê de o mundo estar uma bagunça, estava preocupado com o futuro da Terra. O porquê de as pessoas sofrerem e de haver tanta injustiça no mundo, pessoas a morrerem à fome em África, enquanto havia tanta gente tão rica. Estávamos no meio da Guerra Fria, a viver com o medo e, no início dos anos 70, as Testemunha de Jeová bateram na minha porta e perguntaram-se se queria saber o que acontecerá à Terra, no futuro. E eu: “Yes, please! Digam-me!” [mais uma gargalhada].

E mostraram-me, na Bíblia, que Jeová, que é o nome de Deus, é consequente para existir. Ele pode fazer com que aconteça o que Ele quiser. Então, porque não cura o planeta? Porque há tanto sofrimento e injustiça? E a Bíblia, independentemente do que diga a igreja, é um livro sobre a gestão da Terra, da primeira à última página. O tema central é como a humanidade devia ser gerida e sujeitada à forma de viver de Deus.

Era religioso antes disso?
Estava à procura de o ser. Antes, estava a dar no LSD porque o Timothy Leary dizia que ia abrir-me a mente, mas não abriu, era só mais uma farsa. Deixei as drogas quando comecei a estudar a Bíblia, mas até aí não gostava de religião, porque era responsável por muitas guerras e tudo mais. Até odiava a religião. Por isso, quando apareceram as Testemunhas de Jeová, disse-lhes logo: “Espero que vocês sejam diferentes” [ri-se]. E, afinal de contas, os Testemunhas de Jeová nunca entraram em guerras, o Hitler quis exterminar-nos porque não o fazíamos, somos totalmente neutros em política e não envolve dinheiro, é tudo feito de forma voluntária.

E como se traduziu isso no surf?
Para melhor! Cheguei à conclusão de existir um criador que adora os humanos e decidiu dar-nos um parque de diversões, nas zonas costeiras em todo o mundo. Por isso, agradeço-lhe todos os dias, por cada onda que vejo a aparecer.

E se Deus, de repente, viesse à Terra e lhe dissesse que está prestes a morrer, mas que pode fazer uma de duas coisas: surfar uma última vez, ou fazer uma prancha?
Iria surfar com a minha mulher, a um pequeno spot secreto, na Austrália, que não te posso dizer.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt