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Miguel Rocha tem esclerose múltipla e foi tricampeão de bodysurf: “Sempre fui rufia. Alguém dizer que vai seguir o meu exemplo é altamente”

Miguel Rocha tem esclerose múltipla e foi tricampeão de bodysurf: “Sempre fui rufia. Alguém dizer que vai seguir o meu exemplo é altamente”
D.R.

Acordou com visão dupla, foi ao hospital, disseram-lhe que era stress, mas a segunda opinião que o mandou fazer exames fê-lo entrar, um dia, num consultório em Coimbra onde uma médica a quem "faltou sensibilidade" lhe disse logo que tinha Esclerose Múltipla. A primeira coisa que Miguel Rocha perguntou foi se podia continuar a surfar. Continuou, sagrou-se campeão nacional três vezes (2016, 2017 e 2018), não parou de praticar desporto e só “uma mulher, uma vez”, lhe escreveu no Facebook que o “queria ver daqui a cinco anos”. Já passaram quatro e Miguel, aos 36 anos, tem dois trabalhos, tenta surfar todos os dias e até joga à bola com os amigos

Se há pranchas de surf e bodyboard, para quê ir surfar só com o corpo?
Toda a gente que vai à praia experimenta sempre apanhar as carreirinhas, não é? Desde pequeno que me lembro de ir para a praia com o meu pai, muitas vezes levávamos pranchas e o nosso divertimento era apanhar a onda e ir em frente. Nunca pensei nisto como um desporto até ir ao Fusing [festival na Figueira da Foz], há uns anos, estava lá o Nuno Mesquita, da Ahua, que hoje são os meus patrocinadores. Ele estava lá com as pranchas de bodysurf, perguntei-lhe se aquilo não eram só carreirinhas e pedi-lhe para experimentar. Passado uns tempos, enviei-lhe uma mensagem a perguntar se não havia campeonatos cá em Portugal. Respondeu-me que não, só havia em França, que depois me dizia alguma coisa. Nunca mais me disse nada. Deve ter pensado que era mais um gajo interessado em organizar campeonatos.

E depois?
Passado uns anos, lá houve um campeonato em Peniche, inscrevi-me, falei com ele e fui lá. Correu bem, fiquei em 9.º lugar. Foi há quatro anos.

Mas, antes, praticavas alguma coisa nas ondas?
Fiz bodyboard até aos 18 anos. Depois tirei a carta e era mais cool fazer surf, então mudei [ri-se]. Continuo a fazer um bocado de tudo, depende de como está o mar. Se estiver muito grande, entro de bodysurf, se estiver mais pequenito, faço surf. Mas o que faço mais vezes é bodysurf.

Nunca pensaste em competir em bodyboard?
Ainda o fiz quando era miúdo, mas só aqui, nos regionais. Depois, quando comecei a fazer surf, também competi no circuito do norte e até tinha bons resultados, mas nunca segui. No mínimo, uma prancha de surf custa 400 ou 500 euros e partem-se com muita facilidade. O bodysurf não foi uma questão de dinheiro. Fazia-me lembrar um bocado a minha infância, ir para a praia com o meu pai, estar no mar com ele. Dava-me outro gozo entrar para o mar só de barbatanas e com uma pranchinha de mão. Às vezes nem levo prancha. Dá um gozo enorme teres de usar o teu corpo e a força da onda, sem que uma prancha te ajude a deslizar. É muito mais puro, acho que é mais bonito.

Em mar grande, nunca apanhaste um susto por não teres uma prancha que te ajude a flutuar?
Não, porque, por exemplo, para entrar no mar o bodysurf é muito mais fácil: mergulhas, encostas-te à areia e deixas a onda passar. A única dificuldade é que te cansas mais, não tens nada a que te agarrar, estás sempre a nadar. Mas acho que apanhei mais sustos com surf e bodyboard. No início do ano, num campeonato na Nazaré, as ondas estavam com três ou quatro metros e aquilo meteu um bocado de medo. Há a vantagem de entrares no mar muito mais facilmente, furas a onda. Com uma prancha, furas e, às vezes, vais 10 metros para trás. No bodysurf há outro à vontade.

Como é a convivência com a malta das pranchas? Vocês ouvem piadas?
No início era um bocado estranho, sim. Aqui, na Vagueira, temos pouco pessoal a surfar, mesmo em surf ou bodyboard. Muitas vezes, colocava-me para apanhar uma ondas e as pessoas metiam-se à minha frente, achavam que estava só a nadar. Mas tenho sido bem recebido. Agora temos muitos miúdos a fazerem bodysurf, é altamente chegar à praia e ver os pequenitos a experimentarem, verem-me a aparecer e a dizerem "olha o Miguel, olha o Miguel! Vamos para a água!".

O que falta para o bodysurf ser mais conhecido e praticado por mais gente?
Está a começar a ser, só que as marcas não investem. É um desporto que, quem está a fazer, diverte-se muito, mas quem está a ver não tem tanto espetáculo como o surf, com aquelas manobras. Há muito mais prazer para quem faz, do que para quem vê.

Tecnicamente, o que é mais desafiante?
É o mar grande, é o que dá mesmo pica. Podes fazer um rolo, como no bodyboard, um parafuso, que é parecido, mas faz-se na base da onda, tens o tubo, depois tens tipo um mortal para a frente, mas o mar tem que estar com força para conseguires saltar e dar a volta. Basicamente, é isso.

O Mike Stewart já fez bodysurf em Teahupo'o. Tinhas coragem de fazer o mesmo?
Epá, não sei. Tem a pedra ali muito perto no fundo. Já fiz em Bali, na Indonésia, mas o surf até acaba por ser mais perigoso, porque cais, a onda embrulha-te, leva-te para a frente e cais com a espuma. No bodysurf, se vires que está a correr mal, cortas para dentro e sais. É menos perigoso.

É realista pensar em ser profissional de bodysurf?
Não, é impossível. Tenho alguns patrocínios, mas nem chegam para pagar a época portuguesa, quanto mais para competir no Europeu. Começámos há quatro ou cinco anos, está no início, está a andar bem, o ano passado já colocaram os juniores a competirem e aí é que a modalidade começa a evoluir. Hoje, a média de idade das pessoas que andam no bodysurf deve andar nos 35 anos. Os patrocinadores que tenho são os mesmos que consegui no meu primeiro ano de campeão nacional. Não tenho procurado mais, mas, este ano, tenho de perder um pouco de tempo com isso. Mas, sim, a maior parte fui eu à procura.

Este ano, em agosto, há o Mundial na Califórnia. Como é que funciona a qualificação?
Eles aceitam quase todas as inscrições. Não perguntei se havia qualificação, como era campeão nacional, inscrevi-me e aceitaram-me logo. No último, tinham 400 atletas.

Como é o nível?
Não há muito. O melhor que já vi são os franceses. Têm campeonatos há 30 anos e a maior parte dos bodysurfers lá são nadadores-salvadores. Trabalham o ano inteiro, estão sempre na praia, é diferente. O melhor nível está em França, sem dúvida.

D.R.

Foi-te diagnosticada Esclerose Múltipla há quatro anos. Só te tornaste realmente conhecido depois disso? Notaste diferença?
Sem dúvida. Nunca tinha sido campeão nacional, só no ano a seguir é que consegui o título. Claro que fazer uma entrevista ao campeão nacional, ainda por cima debilitado, dá logo outra dimensão. Percebi isso, aceitei quase todas as entrevistas, só não tenho ido à televisão, porque se perde muito tempo. Mas, sim, senti isso. No início, não queria falar porque era, e sou, muito tímido. Não gostava de falar em público. Um amigo meu, o Ângelo, é que insistiu que falasse. Dizia-me que havia pessoas na mesma situação que se escondem e, assim, podia dar-lhes alguma força. Por isso é que comecei a falar. Mas não me sinto bem a falar em público.

Dando uma entrevista como esta, achas que estás a ajudar quem também tenha Esclerose Múltipla?
Sim, porque sempre que dou uma para a televisão, aparecem sempre montes de mensagens no Facebook. Mas, uma vez, recebi uma mensagem muito estúpida, de uma mulher a mandar-me abaixo. Também devia ter Esclerose Múltipla, a doença já devia estar em fase avançada e disse algo como "estás muito bem, estar a surfar, mas quero ver daqui a cinco anos". Uma conversa desta género. Foi a única coisa má que já me disseram. Só respondi "obrigado". Mas o normal é acontecer o contrário. Já houve gente a dizer-me que tem um amigo que descobriu que tinha Esclerose Múltipla há pouco tempo e que eu sou um exemplo. Só isso já vale a pena. Sempre fui um rufia, estás a ver? Por isso, alguém dizer-te que não vai desistir e seguir o teu exemplo é altamente.

Quando descobriste que tinhas a doença?
Estava no hospital, com a Maria [namorada], num gabinete para aí com seis médicos, quatro eram estagiários. Foi uma bomba. Disseram-me que tinha Esclerose Múltipla do nada. Não sabia o que havia de pensar. A Maria começou a mexer-me e a primeira coisa que perguntei foi se podia surfar. Ela mandou-me uma cacetada: “isso é pergunta que se faça?”. Não percebia nada da doença, só imaginei pessoas em cadeira de rodas. A minha ideia era que, daqui a uns tempos, estava assim também. Perguntei se podia surfar para não estar calado, porque não sabia mesmo que havia de dizer.

O que te levou ao hospital?
Um dia, acordei com visão dupla. Fui trabalhar, sou designer, trabalho com muitas linhas e, quando olhava para o ecrã do computador, não via nada. Tinha que fechar um olho. Não liguei, falei com a Maria, ela disse para irmos ao hospital, eu quis esperar. Era uma quarta-feira. Ao final do dia, fui jogar futebol com um grupo de amigos, mas, cheguei lá, e nem conseguia ver uma bola que viesse pelo ar. Via duas bolas. Tomei banho mais cedo, fui contar à Maria e fomos às urgências, em Aveiro. Fui visto por uma médica, que disse que isto era stress, deu-me uns calmantes e aconselhou-me a descansar. Cheguei a casa, tomei os calmantes, fiquei completamente drogado e aquilo não passou. Tinha um colega com um amigo no departamento de Neurologia, no hospital de Aveiro, disse-me para ir lá e fui, para ter uma segunda opinião. Porque sou uma pessoa calma, tenho um bom trabalho, vou surfar, estava tudo bem, não tinha razões para estar stressado. Fui a Coimbra, fiz montes de exames, uma ressonância magnética e uma pulsão lombar. Quando já estávamos a almoçar, ligaram-me a dizer que tinha de lá voltar. Entrei na sala, os médicos estavam todos na conversa, sento-me, a médica abre o livro e diz logo: "o Miguel tem Esclerose Múltipla". Assim, do nada. Faltou um bocado de sensibilidade.

Quando perguntaste se podias continuar a surfar, qual foi a reação?
Disseram logo que não, porque a doença afeta as pessoas de maneira diferente e, se fosse para a água, podia-me dar alguma coisa a nível muscular e não conseguir sair do mar. Estive, para aí, uns três meses sem ir ao mar. Depois, o pessoal organizou uma viagem a Sagres, era um fim de semana, e convidaram-me. Fui para o convívio, nem levei material, era para desanuviar um bocado porque estava em casa, sem trabalhar. Chegámos de noite e, no dia seguinte, de manhã, o pessoal acorda e foi logo vestir os fatos. Eu, a olhar para aquilo tudo, perguntei a um amigo se tinha uma prancha e um fato a mais. Estava nervoso até entrar no mar, mas, depois, senti-me super bem, até acho que fui quem mais surfar nesse fim de semana.

Sentiste alguma diferença em termos de cansaço?
Não, nada. Até aí, nunca me tinha afetado em termos musculares, só ao nível da visão. A partir do segundo ano é que comecei a sentir muito cansaço nas pernas, mental também, e já não me estico tanto. Vou para o mar na mesma, mas não estou três horas na água.

Como é hoje um dia normal para ti?
Sinto cansaço, todos os dias. Agora estou a fazer uma medicação, porque participo num estudo experimental. É uma injeção que tomo uma vez por mês, com Aubagio, uns comprimidos que já existiam. Sentia-me bem quando fazia os comprimidos, mas, quando acabaram, uma das vantagens do ensaio clínico é que começava a fazer a injeção na hora, se fosse realmente boa. Comecei e, na primeira semana, estava cheio de força. Na segunda e na terceira estava bem, mas, na quarta, estava morto. O efeito não dura o mês inteiro. Consigo ir trabalhar e surfar, mas sinto-me sempre super cansado. Só que entro dentro de água e desaparece tudo. Quando saio é que começam as dores. Às vezes, quando vou surfar durante algum tempo, depois à noite não consigo dormir, por causa das dores nas pernas, por exemplo. Antes não me acontecia: ia para a cama cansado e pronto. Não é que o cansaço seja diferente, é só cansaço a mais.

Contaste logo aos médicos que andavas a surfar como se nada fosse?
Foi um bocado às escondidas [ri-se]. Não sabia, mas, passado meio ano, quando fui ao hospital de dia, contei a uma enfermeira que tinha acabado de vir do mar. Disse que era maluco, respondei que me sentia bem, e obrigou-me a dizer à médica. Chego ao consultório, a pensar que a médica me ia matar, mas disse-me para continuar a fazer desporto, só para não puxar muito pela máquina.

Ainda jogas basquetebol e futebol?
Agora deixei de jogar basquetebol, porque tive uma hérnia. A médica já estava farta de me chatear a cabeça para parar, porque era muita coisa. O problema não estava só no físico: os treinos são às 21h30, depois com o jantar, só me deitava lá para a 1h. A falta de descanso é que me estava a fazer piorar. Jogar à bola com os amigos ainda é tranquilo.

Tens receio de ir para o mar sozinho?
Nem sequer penso nisso.

E os teus pais?
Não são muito de dizerem "ó, coitadinho". Eles até evitavam falar na Esclerose Múltipla para não me sentir mal. Faz de conta que não tens nada, é a mentalidade deles. Acho que é assim que tem de ser. Passam dias inteiros em que nem me lembro que tenho uma doença. Até me sinto pior quando fico uma semana ou duas sem fazer desporto, fico logo mais cansado. Quando vou ao mar parece que relaxo.

Só começaste a ganhar títulos depois de a Esclerose Múltipla ser diagnosticada.
Sim, parece que estava a tentar mostrar que podia. Deu-me mais pica. O bodysurf é um meio muito pequeno e, apesar de estarmos a competir uns contra os outros, somos muito amigos. Agora, que estão a aparecer miúdos novos, é que vão surgindo umas rivalidades. Mas, na altura, éramos um grupo. Criou-se uma família muito fixe, foram altamente, sobretudo naquele fim de semana em Sagres, todos puxaram por mim. No final desse ano, quando fui campeão, fizeram-me uma festa em Peniche. Olhava para as pessoas e via-as realmente contentes por eu estar ali.

Alguma vez sentiste que tinham pena de ti?
Não, porque entram no mar e querem-me ganhar [risos].

O que tens em mente para este 2020?
Quero tornar-me, outra vez, campeão nacional. O ano passado desleixei-me um bocado no início do ano e, quando corri, já não fui a tempo. Queria fazer o Europeu todo, também porque é quase certo que haverá uma etapa aqui na Vagueira. Vão ser cinco etapas. Vou competir na categoria Masters, para atletas acima dos 35 anos, mas também quero muito ganhar o Open, que é a prova principal.

E quanto dinheiro implica tudo isso?
Gasto à volta de 400 e 500 euros por cada etapa e só em Marrocos é que há prémios. Vais a França e pagas estadia, alimentação, não recebes nada e são antipáticos. Em Marrocos, recebem-te bem, dão-te alojamento, refeições e ainda tens prémios no fim. As pessoas pensam que são mais pobres, mas eles é que organizam bem a coisa. Em França, mesmo com outros recursos, porque têm patrocínios para montar as provas, dão um par de barbatanas aos quatro finalistas.

Mas porquê?
Não sei, talvez peguem no dinheiro dos patrocínios e guardem para a associação de bodysurf. Ou se, por ser um destino menos conhecido, Marrocos invista mais para o pessoal lá ir. Os franceses têm um bocado a atitude de só quererem franceses. Vais a qualquer praia e vês miúdos a entrarem no mar só com barbatanas na mão. Aqui não vês muito isso.

É verdade que estás a dar aulas de bodysurf?
Tenho aí dois miúdos, de quatro anos - um é filho de um amigo meu, outro anda na escola com ele. O rapaz já apanha ondas, a rapariga está ali no mar e quase só quer brincadeira. Estão-se a habituar à água. Quero abrir uma escolinha, gostava muito de ser treinador e ter uma equipa a competir.

Veem-se muitos bodysurfers com treinadores?
Tivemos uma prova na Nazaré, no início do ano, dois dos bodysurfers convidados eram franceses e trouxeram o treinador. Houve uma desistência e o Gonçalo Faria, que vê filmes em todo o lado, chegou lá e viu que o júri era composto por malta do bodyboard e desistiu. Então, a organização convidou o treinador desses dois franceses, ele entrou na prova e ganhou-a. Eles têm outra mentalidade, também têm 30 anos disto e nós apenas cinco ou seis. Acho que o bodysurf está a andar bem, não pode avançar muito depressa, tem de ser passo a passo, e acho que estamos no caminho certo.

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