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Tristan Roberts, o campeão mundial de bodyboard que ficou preso em Portugal: “Estamos à espera de quem faça um duplo mortal para trás”

Tristan Roberts, o campeão mundial de bodyboard que ficou preso em Portugal: “Estamos à espera de quem faça um duplo mortal para trás”
JOÃO PAULO ARAÚJO
Tristan Roberts é o campeão mundial de bodyboard, só que já conquistou esse título em 2019 e só o poderá defender, na melhor das hipóteses, em 2022. O sul-africano, já um pouco aborrecido com a falta de competição, ficará durante quase três anos com esse prémio na cabeça e, na Praia Grande, onde até domingo decorre o Sintra Pro, conversou com a Tribuna Expresso sobre "o trabalho nos bastidores" para o corpo aguentar tantas aterragens de aéreos, a parte mental de estar tanto tempo sem competição e os quase cinco meses que acabou por ficar em Portugal, durante o primeiro confinamento

A maré cheia na Praia Grande inunda as intenções com afastamento. Os pés de quem cruzou mundo estão na areia, à espera que a água salgada vaze e as ondas se simpatiquizem para quem calça barbatanas de anfíbio e se deita sobre pranchas de meio corpo. Tristan Roberts está de boné, calções, chinelos e boné coberto pela máscara no palanque do Sintra Pro, ele afável e bem-disposto no trato perante a antipatia do oceano que não se põe a jeito para que o sul-africano e outros possam tomar-lhe as vagas na tarde desta quarta-feira. Mas Tristan, ao menos, não é novo a estas terras.

O ano passado, por acaso, estava em Portugal com a então namorada, a usufruir das bendições da costa com praias e ondas viradas para todos os pontos cardeais quando a virulenta pandemia a que nos habituámos confinou o mundo pela primeira vez. O que era para ser uma estadia de um mês virou uma permanência de quase cinco. O campeão mundial de bodyboard ficou preso no país, não se importando por aí além de viver cada dia consoante o vento e a ondulação, estes direcionavam-no entre Ericeira ou Peniche e fala desse tempo que passou cá amarrado com a mesma naturalidade que pausa os efeitos da gravidade a cada onde que usa como rampa de lançamento.

Tristan Roberts é novo, tem 23 anos e há dois conquistou o título mundial de bodyboard com esse seu estilo voador e brutal, em que estica a modalidade com piruetas aéreas e fustiga a sua anatomia com o impacto de aterragens desumanas. "O meu estilo é super explosivo e tive um despertar bruto quando cheguei aos meus vintes e reparei que algumas coisas me começaram a doer", admite, antes de rir com o espanto de as circunstâncias irem fazer do sul-africano um campeão com vigência de quase três anos.

Não houve circuito em 2020, também não haverá em 2021 e esta prova na Praia Grande, onde conversamos, é apenas isso, um evento para raspar a ferrugem competitiva dos ossos e não quebrar as figas figuradas de que, no próximo ano, voltará a haver um world tour de bodyboard - o primeiro organizado pela International Boardboarding Corporation, a quinta entidade que gere a modalidade em 40 anos, sintoma de instabilidade do qual Tristan também fala quando o tema é o que tem separado o bodyboard do surf em matéria de fama e evolução.

Li algures que passaste o teu primeiro confinamento aqui em Portugal.
[Ri-se] É verdade. Bom, fiquei preso em Portugal, sem voos de regresso para a África do Sul, portanto foi uma espécie de espera misturado com tentar perceber como poderia voltar para casa, mas, ao mesmo tempo, sem me preocupar muito por estar aqui preso, porque o confinamento estava muito pior na África do Sul, devido a todas as regras. O surf nem sequer era permitido lá. Por isso, pronto, pensei em ir ficando, ir surfando. Consegui acostumar-me à cultura portuguesa, foi uma grande experiência para mim e agora, ao voltar aqui, levo com muitas boas sensações.

Mas, em Portugal, o Governo também começou por proibir o surf durante algum tempo.
Sim, mas em África do Sul a proibição manteve-se durante quase quatro meses, então pensei que, enquanto pudesse surfar aqui, mais valia continuar cá preso. Planeei ficar um mês e acabaram por ser quase cinco. Fiz muitos amigos fixes, encontrei uma comunidade muito acolhedora que me ajudou bastante, com tudo. Andava sobretudo à volta de Peniche e Nazaré, Ericeira também, é fácil uma pessoa deslocar-se entre esses lugares e decidia onde ir com base no que as previsões [de ondulação e vento] diziam, a deslizar um pouco por todo o lado.

O que ficaste a achar das ondas?
São incriveís, man. A vossa costa... Por acaso, acho que, a cada inverno dos últimos quatro anos, antes do tour mundial começar, vinha sempre para cá para começar o meu treino. Adoro as ondas, a comida é incrível, os custos são suportáveis e todo o contexto é bom para te preparares para o circuito. Normalmente, começava pelo Brasil, onde há muitos beach breaks [fundo de areia] como aqui, portanto é uma boa rotina para mim e vou respeitá-la sempre que puder. Um bilhete de ida e volta entre a África do Sul e Lisboa também é bastante barato, por comparação com o Havai, por exemplo.

Como é que começaste a fazer bodyboard?
Acho que tinha à volta de 7 anos e o meu irmão, que é oito anos mais velho que eu, já fazia com os amigos e eu meio que imitei-o, porque queres sempre fazer o que o teu irmão já faz. Ia atrás dele até à praia e enturmei-me com os amigos dele, que se tornaram numa grande influência para mim. Continuei a praticar e assim que comecei a ficar melhor do que o meu irmão, ele simplesmente desistiu [ri-se] e começou a filmar-me, o que acaba por ser uma grande ajuda. Há um grupo onde vivo que está sempre a puxar por mim, para que eu evolua.

Tendo a África do Sul tanta tradição de surf, como te mantiveste no bodyboard ao longo dos anos?
Para ser honesto, de onde venho e cresci, as ondas são mais apropriadas para bodyboard, são bastante pesadas. Habituei-me a ter bodyboarders sempre à minha volta e não muitos surfistas. O surf nem sequer era uma opção no sítio onde vivo, sabes? Ainda hoje, a cena do bodyboard é muito forte por lá e isso foi-me mantendo na modalidade. Acho que só passados uns dois anos de praticar é que me apercebi de que o surf sequer existia. Já gostava tanto do que fazia que nem sequer pus a hipótese de mudar.

Não digo de popularidade, mas por que razão ainda existem diferenças tão grandes em termos de exposição, patrocínios e dinheiro entre as duas modalidades?
Penso que é uma questão de o circuito mundial ter tido várias fases de instabilidade ao longo dos anos — más gestões, pessoas a desaparecerem com dinheiro e a deixarem o bodyboard em mau estado. Houve sempre o problema cíclico de se ter de reconstruir o circuito. Começar do zero constantemente. E isso foi tornando difícil que qualquer empresa investisse no bodyboard, porque é assustar alguém meter dinheiro quando não se sabe o que vai acontecer ou onde é que esses fundos vão ser utilizados. Penso que esse foi o maior problema do bodyboard quando o comparamos com o surf. Porque, fora isso, acho que a modalidade evoluiu massivamente. As manobras que as pessoas fazem agora, e até no surf, estão muitos passos à frente do que se via antigamente, por isso acho que é uma questão de tempo até que as pessoas captem o que estamos a fazer e aquilo a que realmente nos estamos a submeter. Só podemos esperar que as empresas vejam o verdadeiro potencial do bodyboard, tal e qual nós o vemos.

Em termos de manobras aéreas, o bodyboard ganha na luta que vai dando à gravidade?
Sim, acho que a diferença está no potencial de fazermos aéreos em ondas grandes, por comparação com o surf. Não me interpretes mal, os surfistas estão a fazer coisas de loucos nos dias que correm, mas penso que tudo é quase como que desenvolvido a partir do bodyboard, os surfistas parece que começaram a tentar manobras parecidas às que nós já estávamos a fazer, mas as pranchas de bodyboard terão sempre a vantagem de as poder executar em ondas muito maiores e isso ajuda muito.

Como é que consegues manter o corpo intacto com tanto voo e impacto na aterragem?
Por acaso, pergunto-me isso bastantes vezes. Quando era mais novo, nem sequer me apercebia daquilo a que estava a submeter o meu corpo. O meu estilo é super explosivo e tive um despertar bruto quando cheguei aos meus 20s e reparei que algumas coisas me começaram a doer. Tipo, o que está a acontecer? Agora, tenho uma equipa na África do Sul que me ajuda a preparar o corpo, algo a que nunca fui introduzido quando era miúdo, mas, à medida que o bodyboard for evoluindo, acho que é algo que será mais reconhecido — teres fisioterapeutas e especialistas que consigam preparar-te para seres capares de manter a carga à qual submetes o corpo. Fico feliz por ter o privilégio de poder ter uma equipa à minha volta, porque sem dúvida que está a salvar a minha carreira.

Há dias, vi que publicaste uma foto essas três pessoas que te acompanham e não vemos muita gente no bodyboard ou no surf a reconhecer esse contributo.
Penso que muita gente nem se apercebe da quantidade de trabalho nos bastidores que temos de fazer. Não nos limitamos a ir surfar ondas todos os dias e pronto, já chega para conseguirmos competir a um nível alto. Preciso de estar confiante de que o meu corpo vai ser capaz de suportar aquilo a que o estou a submeter. Fazer todas essas coisas, como trabalhar na minha biomecânica ou ter sessões de fisioterapia, ajuda-te mentalmente para saberes que estás preparado para fazeres o que quer que queiras fazer numa onda. São pequenas vantagens mentais que podes ter e que viram enormes quando pensar em bater numa secção e fazer um grande aéreo numa onda.

Nos anos 80 e 90, talvez toda a gente se limitasse a surfar, mas hoje perdes o comboio se te quiseres manter competitivo?
Porque temos puxado tanto por nós e, por arrasto, pela modalidade. Os aéreos que fazemos agora, comparados com as manobras desse tempo, são de um nível completamente diferente. Acho que só agora se tornou necessário que façamos esse tipo de preparação. A minha geração, ou a geração logo antes da minha, será o degrau para que quem começa a praticar bodyboard em criança tenha noção das bases nas quais precisa de trabalhar desde essa idade, se quiserem puxar por eles próprios. Antes, pensava que me bastava surfar, o que poderia haver melhor do que estar na água a toda a hora se o meu desporto é o bodyboard? Era o treino que precisava. Mas, com o tempo, vais encontrado desequilíbrios no teu corpo por grupos musculares estarem a trabalhar mais do que outros e aí é que podes ficar suscetível a lesões. Quanto mais cedo conseguires lidar com isso e tentar formar o teu corpo a controlar o seu desempenho, acho que é a chave para teres uma longa carreira. Especialmente, se quiseres empurrar-te até ao limite.

Com a pandemia e os adiamentos do circuito, basicamente vais ficar como campeão mundial de bodyboard durante quase três anos, o que é estranho.
[Risos] É bastante estranho, nem sequer me vejo como campeão do Mundo durante esse tempo todo, vejo-me como vencedor de um título mundial em 2019 e acho que o único benefício é ter mais tempo para me preparar mais para quando, de facto, tiver que defender o título. Fora isso, é tudo normal. O mundo pôs um travão a tudo e é o que é, penso que tudo vai ficar mais evidente quando as coisas começarem a correr outra vez normalmente, veremos quem usou o tempo sabiamente e quem, digamos, meio que perdeu interesse e começou a fazer outras coisas. Porque isso é o mais difícil: manteres-te motivado durante estes anos sem eventos e continuares a preparar-te, a fazer todo o trabalho de bastidores com a esperança de que tudo vai ter a sua recompensa. Acho que isso tem sido uma enorme tarefa mental para muitos atletas.

Ouvíamos muitos profissionais dizerem que gostavam de ter mais tempo para o free surf, mas, de repente, tudo o que fazem é isso. É difícil lidar com esta mudança?
Claro. Além de que tivemos de alterar a dinâmica com os nossos patrocinadores. Tivemos que empurrar a área das vendas para outras direções e começar a criar mais conteúdo, ou seja, já nem sequer o podes chamar de free surfing, porque estamos sempre à procura de novas imagens e a trabalhar. Embora seja visto como tal, temos sempre a pressão de uma câmara sobre nós. É uma questão de encontrar um equilíbrio e permaneceres produtivo, essa é a coisa mais difícil de dominar.

Quantas saudades tens de passar um ano inteiro a competir no circuito mundial?
O ano passado até estive ok com tudo, estava exausto depois de 2019 e todo o trabalho para conquistar o título, estava desfeito mental e fisicamente. Submeti-me a muito stress. Demorei um par de meses a recuperar e, para ser honesto, até estava entusiasmado com o facto de ter um ano fora para reagrupar e encontrar toda a motivação para recomeçar, ir atrás de títulos outra vez. Mas, agora, tornou-se demasiado longo e estou feliz por estar aqui a competir.

Aborrece-te estares tanto tempo sem te medires contra alguém na água?
Tento não pensar demasiado nisso, tento desafiar-me a mim próprio porque todos temos as nossas falhas e coisas em que não somos assim tão fortes. Estou a tentar trabalhar nelas para que, quando estiveres em competição, veja algumas melhorias em facetas nas quais me faltava algo. Agora, essa é a minha motivação — regressar e ser notório para as pessoas que continuei a trabalhar nas minhas fraquezas e que sou um competidor ainda melhor quando voltarmos a ter um circuito mundial completo.

Que fraquezas são essas?
Muitas tinham a ver com surfar esquerdas, porque onde cresci fez de mim um bodyboarder sobretudo de direitas. Toda a região onde vivo na África do Sul tem, sobretudo, ondas que quebram para a direita e muito do trabalho focou-se em surfar esquerdas, tentar que se aproximassem do nível que tenho a surfar direitas. Tem sido um desafio maluco e entusiasmante. Sempre que sentes que estás a chegar lá ficas com uma grande sensação dentro de ti, apercebes-te que melhoraste as tuas possibilidades de conquistar outro título mundial. Sempre confiei nas minhas fortalezas, mas agora posso começar a confiar também nas minhas fraquezas passadas.

Em miúdo, a que bodyboarders foste tentando moldar o teu estilo?
Enquanto cresci na África do Sul, havia muitos tipos locais que me influenciaram muito e ajudaram-me a cimentar os fundamentos, mas, quando era miúdo, a Austrália dominava tudo, estávamos sempre a olhar para o Ryan Hardy ou o Ben Player, por exemplo. Quando fiquei mais velho, o Pierre-Louis [Costes] tornou-se meu companheiro de equipa e aprendi muito com ele, representamos a mesma marca e, aos meus olhos, é um dos melhores de sempre em todas as condições. Estudei-me muito enquanto crescia e agora tenho o privilégio de fazer viagens de equipa com ele. Desafia-me bastante. Há três semanas, gravámos outro filme na África do Sul e é muito bom estarmos a puxar uns pelos outros, enquanto damos uma risadas e construímos uma amizade que vai durar para a vida. Essa tem sido a ajuda mais pessoal que tenho tido e sou grato por surfar pela Pride, tem sido um empurrão gigante na minha carreira.

Tens 23 anos, és muito novo. Planeias continuar a voar e a puxar pelo corpo durante quanto tempo?
Sempre disse a mim próprio que assim que sinta que o meu corpo não aguente aquilo a que o quero submeter, ou sinta que não há muito mais que possa alcançar, ou que já não vou alcançar os meus objetivos pessoais, será quando direi que já chega. Estou a tentar trabalhar no duro para permanecer competitivo durante o maior tempo possível. Não consigo colocar um limite para quando vou parar, mas o dia em que fizer será quando sentir que já não há hipótese de ganhar um título mundial devido a lesões, a não ser capaz de acompanhar o nível das novas gerações ou outro motivo qualquer. Até lá, acho que vai ser manter a cabeça em baixo e focar-me em conquistar o maior número de títulos mundiais que consiga.

Em que manobras, áreas ou dimensões é que o bodyboarder ainda pode evoluir?
Acho que o único lado no qual ainda pode evoluir é na combinação de manobras, por exemplo, um invert com um air reverse, ou dois air reverses, acho que o futuro está aí.

Partindo a coluna vertebral pelo caminho.
[Ri-se] Sim. Talvez cheguemos ao ponto de estarmos à espera de quem será a primeira pessoa a fazer um duplo backflip, sabes? As possibilidades estão todas aí e acho que vai ser uma questão de quem estará disposto a arriscar nesse aspeto. Trouxémos este tipo de manobras para o bodyboard e, no futuro próximo, acho que é isso que podemos esperar das competições. O nível chegará a algo estúpido. Vai ser incrível assistir a isso e espero estar cá para ainda conseguir puxar por mim nesse sentido. Acho que já o fazemos, mas ainda não vamos estar a arriscar esse tipo de manobras em competição. Já existe, mas não é algo em que já estejamos plenamente confiantes.

Quanto tempo achas que teremos de esperar até vermos o bodyboard nos Jogos Olímpicos?
Penso que 2028 é um cenário realista. Podemos, sem dúvida, levar essa questão à International Surfing Association para começarmos a colocar a bola a rolar. É algo sobre o qual até já falei com o Pierre e ele acha que está tudo no sítio. Ele é o tipo que está sempre a estudar os factos e os detalhes do que tem de acontecer, eu simplesmente me limito a surfar e a ouvir o que ele diz, portanto, sim, é sem dúvida a pessoa com quem falar sobre este assunto.

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