O bicampeão mundial, Pierre-Louis Costes: “O surf fez tudo para deitar abaixo o bodyboard quando percebeu que poderia ser ultrapassado”

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Já foste bicampeão mundial e também já ganhaste aqui em Sintra duas vezes. Conheces bem a Praia Grande, uma onda sem pontões e com fundo de areia. É difícil de surfá-la?
Não é fácil, porque é uma praia aberta e o mais difícil acho que é não conseguir prever como serão as ondas. Os fundos são de areia e todos os anos mudam, tem essa particularidade. O que faz este campeonato ser tão prestigiante e desafiante é o facto de termos de nos adaptar muito às condições e essa é uma capacidade que nós, atletas de alto nível, temos de ter, mas, para mim, é muito mais difícil competir aqui do que numa onda com fundo de pedra, que quebra sempre para o mesmo sítio. Se for naquele campeonato, sei sempre mais ou menos o que vai acontecer. Aqui é sempre uma surpresa. Quem se adapta mais rapidamente é quem consegue ir mais longe no campeonato.
Sentes que a onda muda muito de ano para ano?
Hum, é assim, além dos fundos, claro que tudo depende sempre das previsões. Mas sim, nunca houve um ano igual, nunca aconteceu, foi sempre diferente. É um campeonato com mais categorias e as condições favorecem mais umas, do que outras, mas é por isso que gosto tanto desta prova, o facto de ter de chegar aqui com mente aberta e depois logo se vê.
Já tinhas saudades de competir aqui?
Muito, ya. Por acaso, a minha última participação não correu assim tão bem, tenho trabalho para acabar aqui, digamos. Depois disso, veio a pandemia e ao nível do desporto profissional foi um período difícil e acho que é muito bom para a saúde mentla dos atletas estarmos aqui. Sacrificamos muito tempo e muitos anos da nossa vida a isto e, finalmente, já vemos uma luz ao fundo deste túnel. Tinha saudades de competir aqui e de competir no geral, de vestir a licra, de ver amigos e sentir este ambiente. O ano passado também houve um campeonato, mas esta prova tem mais atletas internacionais e é esta a beleza do desporto.
Vives em Portugal, portanto imagino que ainda deve ser mais frustrante não ser possível competir por cá.
Sim, sim, verdade. Como já vivo cá há algum tempo, decidi entrar no nacional no ano passado e talvez volte a participar este ano, embora possa não ter tanto tempo à medida que as coisas voltem a entrar no normal. Mas sim, como vivo cá, habituei-me a vir sempre à prova de Sintra e depois seguir para o evento nas Canárias, que é aqui ao lado. Tinha uma rotina e quando isto parou tudo foi mesmo difícil. 2020 foi um ano de transição e, sinceramente, não estava à espera de voltar a passar por isto em 2021, mas pronto, é positivo ver que pelo menos as provas europeias se vão concretizar, o que é bom sinal para o futuro.
És francês, mas começaste a surfar em Marrocos. Como é que isso aconteceu?
Pois. É assim, o meu avô tinha uma empresa lá e, quando morreu, o meu pai e basicamente toda a minha família foram para Marrocos, tentar continuar com o negócio. Fui para lá com cerca de 9 anos. Recebi uma prancha de bodyboard no Natal, acho que em 1999. Sempre gostei muito do mar e passava mesmo muito tempo dentro de água, mas antes morava no sudeste de França, perto de Nice, na parte mediterrânica onde não há ondas. O bodyboard foi uma forma de passar mais tempo dentro de água, apanhar as primerias ondas foi uma sensação incrível e ainda hoje continuo a tê-la. É uma história de amor, basicamente.
Estar em Marrocos ajudou a surfar durante o inverno, por exemplo.
Sim, porque não é assim tão rigoroso como na Europa e conseguia surfar o ano todo sem ter frio, na verdade. Foi mais quando voltei a França, após três anos. Regressámos por motivos pessoais, a situação não correu muito bem, e no primeiro ano em que estive de volta a França ainda pensei em parar por causa do frio. Não estava mesmo nada preparado. Dediquei-me um bocadinho mais ao skate, mas, depois, tive a sorte de ter patrocinador e uma entourage que acreditava no meu potencial. Comecei a viajar quando ainda era muito jovem e foram essas viagens que me ajudaram a continuar a acreditar que era possível ter uma carreira profissional. Porque o frio estava a matar-me [ri-se].
Quando começaste a competir no circuito ainda apanhaste monstros como o Mike Steward e o Guilherme Tâmega, ambos em boa forma. Não ficavas nervoso?
Sim, sim, o Tâmega ainda disputava títulos mundiais quando eu comecei, aliás, houve dois ou três anos em que estive na luta com ele até ao fim. Era um ídolo para mim, nunca me imaginei a disputar títulos com o Tâmega. Foi tudo muito rápido. Para mim, eles eram pessoas imbatíveis e eu não tinha nada a perder. Nas primeiras vezes até lhes consegui ganhar porque, lá está, arrisquei muito, não pensava em quem eram, metia na cabeça que não havia meios caminhos, tinha de dar tudo e pronto. Mas, até hoje, o Guilherme Tâmega foi o maior competidor que conheci na minha vida.
Porquê?
Para ser sincero, há pessoas tecnicamente melhores do que ele, eu cresci a tentar imitar o estilo de outras pessoas. Para mim, a geração australiana do Ryan Hardy e do Mitch Rawlins foi a que me inspirou mais, o tipo de surf que quis reproduzir. Mas, quando falamos em campeonatos, não havia ninguém como o Guilherme Tâmega. Ele não estava tão preocupado com a parte técnica e do estilo, mas era eficaz, era um animal dentro de água, e isso fez dele o melhor competidor de sempre. Até cheguei a fazer uma final aqui em Sintra com ele. É daquelas pessoas que nasceram para isto, ele era um competidor surreal. Hoje sou muito grato por ter tido a oportunidade de competir contra eles.
Forte o segundo europeu, depois do também francês Amaury Lavernhe, a ser campeão mundial (2011 e 2016). Porque não houve um seguimento desse legado?
Desde o início que sempre houve atletas europeias a desbravaram caminho, também portugueses, como o Gonçalo Faria ou o Paulo Costa, também os franceses, como o Nicolas Capdeville, mas depois o bodyboard mudou. Decidiu ter provas mais radicais, queria ser mais extremo e, se calhar, isso não ajudou assim tanto a modalidade. Depois, ao longo dos anos, acho que a primeira pessoa que até conseguiu pôr o bodyboard europeu a grande nível foi o Amaury Lavernhe, o primeiro a ganhar o título mundial. A partir daí, deu-me uma grande motivação para também concretizar os meus sonhos e conseguiu-o logo no ano seguinte. Conseguimos fazer que os europeus acreditassem que era possível. A partir daí, atletas portugueses e espanhóis (muita malta das Canárias) fizeram grandes resultados.
Assim como as mulheres.
Exatamente, a Joana Schencker ganhou [em 2017] e também faz parte desta evolução.
A organização que manda agora no bodyboard (International Bodyboarding Cooperation) é a primeira de cinco que não é australiana ou americana. É latina e tem sede no Chile. Isto pode ajudar a mudar tendências?
Acho que sim. Nota-se que há uma grande tradição no bodyboard, que basicamente sempre foi americano ou australiano, sempre foram eles a controlar. Pela primeira vez, há uma transição. Acho que eles foram ficando um bocado fechados no nível e na performance, mas, em outros lugares, também houve uma grande evolução no que é mais importante - nas escolas, na produção de atletas e na organização de campeonatos. A Europa e na América do Sul foram melhorando. Graças a isso, vamos ver muitas mudanças, vejo muito trabalho feito nesses continentes que, infelizmente, já não vejo tanto nos EUA e na Austrália. Acredito que vamos ver mais europeus a ter sucesso, tenho a certeza disso.
Como é que o bodyboard, que tem manobras aéreas em praticamente qualquer onda que seja surfada, não é mais popular no mundo?
Acho que popular, é, no sentido em que há muitas pessoas a praticá-lo. É mais no reconhecimento que nós merecemos. Toda a gente faz bodyboard e, se calhar, até pode ter mais praticantes do que o surf, mas nós não conseguimos... isto é um problema que vem desde antes de eu começar a praticar. Estava a correr tudo bem nos anos 90, as duas modalidades estavam ao mesmo nível, mas, na minha opinião e vendo as coisas hoje em dia, acho que tudo se deveu a deciões mal tomadas. Na altura pareciam que iam ajudar o bodyboard, mas não ajudaram. Amo a modalidade na mesma, não por motivos financeiros, mas, e temos de ser sinceros, o surf foi-se tornando no rei em termos de modalidades de onda, foi o que se conseguiu destacar mais. E fizeram tudo o que era possível para deitar abaixo o bodyboard, especialmente quando começaram a perceber que o bodyboard era capaz de ultrapassar o surf - e estava a ser 'perigoso' ao nível do negócio, porque havia menos gente a querer comprar pranchas. Do outro lado, o bodyboard estava a bombar e o surf sentiu a ameaça.
Mas são ambos regulados pela International Surfing Association.
Sim, mas foram mudando os patrocinadores e tentando abafar um bocadinho o bodyboard, caso contrário iria correr mal.
Depois, o surf enquanto circuito e organização é mais estável.
Sim, mas aconteceu uma coisa há uns anos que fez o surf estar hoje onde está. E acho que o bodyboard tomou muitas más decisões. Não estou a criticar, se calhar teria feito igual a achar que era o melhor para nós. Outro problema que acho que houve é que tentámos radicalizar em demasia a modalidade. Queríamos ser diferentes do surf, ok, vamos apanhar ondas mais perigosos, fazer aéreos maiores, mas isso criou uma fronteira entre os profissionais que estavam a fazer coisas para se matarem, e o resto das pessoas. E, há uns anos, pararam de organizar campeonatos em sítios como o Japão ou o Brasil, onde se calhar não havia tantas boas ondas, mas havia muita gente a praticar. Acho que isso foi um erro e, por exemplo, na altura do GOB [entidade que organizou os circuitos mundiais entre 1995 e 2002] estava a correr muito bem, a ideia até era fazer provas por todo o mundo. Depois, o que aconteceu? Os australianos e havaianos, que dominavam o bodyboard há muitos anos, perceberam que os brasileiros e os europeus estavam a começar a ganhar e decidiram parar de realizar campeonatos em ondas não tão boas. Passaram a fazê-los em Shark Island, Teahupo'o, Pipeline e pronto. O bodyboard deixou de ir a países que lhe poderiam dar uma estabilidade financeira e, por causa disso, hoje em dia a modalidade tem um problema de mediatização. Mas pronto, também é muito jovem, faz 50 anos em 2021 e por comparação com o surf ainda é um bebé. Vamos ver onde estamos daqui a outros 50 anos. As pessoas continuam a praticar, existe a mesma paixão, a modalidade está a crescer e o nível técnico dos atletas evoluiu, está muito mais forte se formos ver como era há 10 anos.
E está mais acessível?
Sim, as pessoas até podem aprender a fazer bodyboard através do telemóvel, podem comprar pranchas com o tamanho certo... está a evoluir e acredito mesmo no futuro. Mas, às vezes, é importante parar e pensarmos no que fizemos de errado. Acho que houve várias, o que é normal e há que corrigi-las. O bodyboard tem tudo, mesmo tudo, para ser uma modalidade olímpica.
Isso ia ajudar muito em termos de visibilidade.
Claro, temos de popularizá-lo mais, temos de nos juntar para pensar no que será o melhor. E temos de parar de radicalizar tanto o bodyboard, não é preciso.
Quando é que vai ser possível vermos o bodyboard nos Jogos Olímpicos? Já em 2024?
Isso não, é tarde demais. Mas é possível em 2028 [será em Los Angeles, nos EUA], desde que comecemos a trabalhar agora, falar com os organizadores e com os atletas. É um processo gigante e o facto do surf já ter entrado é um passo gigante para nós, porque abriu uma porta. Antes nem havia uma possibilidade. O facto de o ato de surfar uma onda ter entrado nos Jogos Olímpicos, o wave riding, significa que várias disciplinas podem agora entrar também. Em cada edição dos Jogos há novas modalidades e novas categorias dentro delas, os Jogos precisam de tipos de desporto mais radicais que atraiam jovens.
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