Thierry Henry está nos Jogos depois de levar “tantas negas como na escola”. Mas Henry, homem de mil facetas, parece ser inimigo de dar negas
EMMANUEL DUNAND/Getty
O melhor marcador da história do Arsenal é, simultaneamente, selecionador olímpico francês, co-proprietário do Como, que selou a subida à Serie A, comentador televisivo, defensor do fim do estigma quanto à saúde mental, ex-adjunto de Roberto Martínez e lendário ex-futebolista. Para tentar um ouro que escapa aos franceses desde 1984, Henry teve de montar uma equipa entre as muitas rejeições que recebeu de clubes, pouco amigos de cederem os seus futebolistas para os Jogos. O torneio olímpico de futebol arranca já esta quarta-feira
A história da modalidade mais popular do mundo com a competição multi-desportiva mais popular do mundo não é fácil. A relação entre futebol e Jogos Olímpicas é complexa, conflituosa, quase parecendo dois transatlânticos que não podem coabitar.
O futebol esteve presente em todas as edições dos Jogos menos a inaugural, em 1896, e a de 1932. Em 1924 e 1928, o torneio foi mesmo co-organizado com a FIFA, tornando-o uma espécie de antecessor dos Mundiais. Com efeito, os uruguaios consideram-se tetracampeões do mundo, unindo os triunfos de 1930 e 1950 aos ouros de Paris e Amsterdão.
Mas esta conexão antiga, que atravessou as décadas de transformação do movimento olímpico e do mais conhecido jogo de bola do planeta, é a crónica de uma união quase forçada, que nunca teve romance e paixão para dar em casamento. E nem ser uma lenda do futebol do país organizador dos Jogos Olímpicos permite esconder esta realidade.
Thierry Henry emana grandeza. Campeão do mundo e da Europa por França, melhor marcador da história do Arsenal, vencedor da Liga dos Campeões com o Barcelona. Ganhou a Premier League e La Liga, foi candidato à Bola de Ouro. Nada disto terá sido tão difícil como arranjar 18 futebolistas para a sua equipa olímpica.
Ao não ser uma competição organizada pela FIFA, os clubes não têm de ceder os seus jogadores para o torneio de futebol. E, por isso, as ideias que Henry foi tendo para a sua seleção foram encontrando a rejeição das equipas.
Uma dessas ideias foi Mbappé. O Real Madrid não deixou. No início de junho, Lucas Chevalier, Bafodé Diakité, Leny Yoro, Warren Zaire-Emery, Bradley Barcola e Mathys Tel foram incluídos numa pré-convocatória para os Jogos. Um a um, foram sendo excluídos, proibidos pelos clubes de competir numa competição que se imiscui pela época de clubes adentro.
STEPHANE DE SAKUTIN
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Assim, Thierry Henry, a lenda, o selecionador de França nos Jogos de França, o homem que carregou a Tocha Olímpica já em Paris, viu-se numa situação à Rui Jorge em 2016, com poucas opções para formar o seu elenco.
“A última vez que levei tantas negas estava na escola. Não houve, sequer, discussão com os clubes. Falámos, pedimos, eles negam e nós saímos. Estão no seu direito, porque estas não são datas FIFA. Acreditem, não foi fácil”, comentou Titi.
Entre rejeição e rejeição, Henry lá foi formando a equipa que começa esta quarta-feira a competir num grupo frente a Estados Unidos, Guiné-Conacri e Nova Zelândia. Mas a grande ironia é que o recetor de tantas negas é, justamente, um homem pouco habituado a negar, sempre pronto a abrir novas portas, vestir novas peles, entrar em novos projetos.
Selecionador olímpico. Antigo adjunto de Roberto Martínez. Investidor numa equipa italiana. Comentador. Tudo cabe no homem de 46 anos.
De Martínez a Fàbregas
Depois de acabar uma carreira com 411 golos, Henry passou para os bancos. Fê-lo pela mão de Roberto Martínez, atual selecionador nacional, de quem foi adjunto na Bélgica. Acompanhou o catalão nos Mundiais 2018 e 2022 e, pelo meio, orientou brevemente o Mónaco — onde teve o português João Tralhão como adjunto — e o Montreal Impact.
Adam Pretty - FIFA
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Entre as diversas experiências como treinador, Henry vai sendo, regularmente, convidado para comentador. Na televisão inglesa ou norte-americana, espalha o seu conhecimento e carisma, destacando-se pela proximidade com os jogadores e o sentido de humor. A equipa que forma na norte-americana CBS, comentando a Liga dos Campeões juntamente com Micah Richards e Jamie Carragher, tornou-se um invulgar caso de popularidade.
Desde 2022, Titi é, também, co-proprietário do Como. O emblema italiano, após cair da Serie A em 2002/03, desceu aos infernos como recorrentemente descem clubes no calcio, indo à falência e encadeando descidas de divisão.
O destino do clube que representa a zona do emblemático lago começou a mudar quando, em 2019, foi comprado por um grupo indonésio. O investimento aumentou e foi nesse quadro que Henry entrou em 2022.
Com Cesc Fàbregas, seu antigo companheiro no Arsenal, como treinador, o Como garantiu, em 2023/24, o regresso à Serie A. Henry estava nas bancadas como um dos homens do dinheiro mas, após selada a subida, quis tirar-se mérito no êxito: “Sabe muito bem, mas não joguei, portanto quem está de parabéns são os jogadores. Tenho apoiado à distância, mas os protagonistas são eles, que têm estado fantásticos”.
Na cerimónia dos festejos da subida do Como à Serie A
Jonathan Moscrop/Getty
Na vida de Henry, nas glórias de Henry, também cabem os medos, as dúvidas, a ansiedade. Problemas de saúde mental sobre os quais mentiu “durante muito tempo”, porque “a sociedade não estava preparada para o que tinha para dizer”. Assim confessou, em janeiro, ao podcast “The Diary of a CEO”, contando que chegou a haver ocasiões em que “chorava quase todos os dias sem motivo algum”.
Apelando a que se quebre o estigma quanto à conversa sobre saúde mental, também falou sobre o tema no “The Rest is Football”, onde Gary Lineker é anfitrião de Alan Shearer e Micah Richards. "Cresci com o sentimento de não ser bom o suficiente por causa do meu pai. As pessoas diziam que eu não festejava os golos, mas eu estava a pensar no que falhei antes e que era mais fácil. Durante muito tempo, a única coisa que esperava era a aprovação do meu pai. Recebi isso de biliões de pessoas. Só queria a do meu pai.”
Depois de tudo isto, o segundo melhor marcador da seleção francesa chega aos Jogos com uma meta clara. Apesar das “negas”, o objetivo “é, claramente, o ouro”, diz, perseguindo um objetivo que os gauleses não conseguem desde 1984, em Los Angeles.
Na difícil relação entre futebol e os Jogos, Titi confessa que, a certa altura, “só queria saber que 18 jogos poderiam competir”, só “queria ter certezas para preparar a equipa”, sem contratempos nem baixas de última hora. A incrível abundância de talento disponível em França leva-o a ter gente como Lacazette, o seu capitão que vem de 53 golos nas duas últimas épocas no Lyon, Jean-Philippe Mateta, autor de 19 golos na última época no Crystal Palace, ou Michael Olise, que acaba de assinar pelo Bayern Munique depois de se destacar no Palace.
E qual a inspiração para Henry na busca pelo ouro? Fiel ao espírito olímpico, Henry vai a 1996: “Marie-Jose Perec é a prestação que mais recordo. Ter conseguido o duplo ouro em Atlanta [a francesa ganhou os 400 e os 200 metros nos Jogos de 1996] foi incrível. É uma verdadeira lenda”, comenta o campeão das mil facetas.