Jogos Olímpicos de Paris 2024

O tempo já não é o mesmo para Nadal e Djokovic. Para o provar, o sérvio vergou o espanhol sem piedade

O tempo já não é o mesmo para Nadal e Djokovic. Para o provar, o sérvio vergou o espanhol sem piedade
BSR Agency
Os confettis e as purpurinas com que o 60.º jogo entre Rafael Nadal e Novak Djokovic foi antecipado, cheio de olhares fixados nas batalhas do passado em vez de atentarem aos seus estados presentes, retumbou no que se viu na 2.ª ronda do torneio olímpico de ténis que os voltou a juntar: apesar de um segundo set em que o espanhol ressuscitou com fogachos do antigamente, o sérvio foi imperial, prevalecendo (6-1, 6-4) cheio de superioridade técnica e física sobre o ocaso do velho rival

A cara séria de ambos, quase carrancudos, apropriou-se à ocasião. Também a ordem dos corpos a subirem as escadas nas entranhas do Philippe Chatrier, court central do ténis olímpico, pareceu condizente: na dianteira, a suster o saco das raquetes nas costas, Rafael Nadal emergiu primeiro, solene no olhar, no seu encalço Novak Djokovic, de boné na cabeça a prefaciar o sol do meio-dia de Paris, não vimos se propositada ou inocentemente, mas a dar passagem à história de quem se confunde com o lugar ao qual ascendiam. Uma vez iguais no plano em relação ao campo, a aguardarem só pela ordem para caminharem, não houve os saltos de joelho ao peito do espanhol, tão-pouco os alongamentos elásticos do sérvio. Até os traços do antigamente estavam em suspense.

Ao terceiro dia olímpico, o calor parisiense acolheu quase como quem não quer a coisa um duelo entre duas lendas-vivas, o confronto entre mastodontes das raquetes que o sorteio quis reservar para uma de outra forma indiferente segunda ronda do torneio de ténis. Nunca seria irrelevante, sacrilégio era se o fosse, mas, nos Jogos Olímpicos, de repente o histórico 60.º encontro entre Nadal e Djokovic era ensanduichado na panificadora das atenções de uma jornada com saltos para a piscina, natação, skate, basquetebol, ginástica artística ou pólo aquático. A agenda recheada não emagreceu as bancadas do estádio de Roland-Garros, apinhadas de gente para presenciar história.

O recinto e o court onde se reencontraram, sinónimos do pináculo da terra batida que anualmente celebra a superfície com o seu torneio do Grand Slam, eram usurpados pela agenda olímpica, ali não está-se mas não se está em Roland-Garros, é um tempo mascarado para a ocasião olímpica, usurpado pelo evento, assim como este Rafael Nadal, o que luta contra a luz que finda, não é o Nadal de outrora, coisa já sabida antes de os presentes rugirem de entusiasmo com a entrada dos tenistas em campo, mas evidência que foi toldada pela emoção exacerbada entre o momento em que este duelo tinha sido confirmado e algures nos meandros dos primeiros jogos do set inicial.

Quando os mamutes lendários começaram a bater bolas, trocando-as ferozmente, a emanarem labaredas do risco dos seus braços, cedo se percebeu o que já era óbvio e fora abafado ingenuamente pela efervescência de a fortuna olímpica dar ao mundo um reencenação de um duelo lendário.

Que Rafael Nadal, hoje, é um altar erigido a ele próprio, sinagoga andante e de portas abertas para que se contemple a personificação de um legado muito provavelmente inatingível para todo o sempre, de uma história esculpida pela melhor concentração, a mais sublime, mais excelsa, num só corpo humano de tudo o que é preciso para ser alquimista da terra batida no ténis, mas é um corpo hoje preso por finos cordéis, com a finura de fios de cabelo, frágeis porque vergastados pelo tempo e pelas lesões e pelo atrito nas articulações e a impiedade do tempo que teve eco na falta de dó mostrado por quem estava do outro lado da rede.

Mesmo que não seja recíproco, o maior rival da carreira de Novak Djokovic é Rafael Nadal, fosse neste dia, amanhã ou num qualquer ontem que o hoje faz parecer ter sido há décadas, tal são os mundos que existem entre as condições físicas de que cada um dispõe.

Se bem que com uma coxa elástica sobre o joelho operado há cerca de dois meses, o sérvio mostrou desde o arranque que no cume dos seus 37 anos ainda usufruiu, quando em ação no court, de algo muito perto dos píncaros das suas capacidades nos seus membros-plasticina: as pernas, leves e ágeis, deslizaram graciosamente na terra, foram buscar qualquer bola em qualquer azimute para depois exibir o seu manancial absurdo de pancadas magníficas. A esquerda cruzada de Djokovic pareceu um canhão guiado por GPS, não eram bolas mas balázios que lhe saíam da raquete, a sua direita na passada dava chapadas triunfais nas respostas mais difíceis, os seus amortis eram escondidos até à última e postos com pinças a sussurrarem segredos à rede. O nível de Novak foi magnífico desde o início.

O de Rafael Nadal sofrível desde a primeira vez que baixou a cabeça, encolheu-a entre os ombros e nesse sintoma de esforço cansado acorreu à primeira bola que o adversário de sempre abrandou num drop shot que lhe testou a vontade de ir à rede salvar um ponto. Agastado pelo terceiro dia seguido em court, o espanhol não escondeu a ferrugem e a erosão dos seus 38 anos que distam o tamanho de uma galáxia dos 37 de Djokovic, numa diferença exposta no primeiro set.

O 6-1 que favoreceu Novak - chegou a parecer um bagel (6-0) inevitável, tal a superioridade do sérvio, que demorou 15 minutos a chegar ao 3-0 - foi um atestado de realidade para evidenciar as coordenadas onde se encontram, de momento, as carreiras dos tenistas que outrora, a cada duelo, eram separadas apenas por detalhes avistados ao microscópio. Djokovic massacrou sem piedade Nadal, prevaleceu sem espinhas e com um jogo exuberante que vergou o rei da terra batida a sofrer no pó, a desistir de ponto à mínima mudança de direção da troca de bolas, a disparar bolas bem para fora quando era obrigado a esticar-se um pouco mais para as alcançar com a raquete.

O pescoço de Nadal, a deixar a cabeça pender a cada sintoma de atropelamento, os seus trejeitos de desânimo além dos seus tiques obsessivos que fazem parte da sua compulsão, sugeriam até uma raridade raríssima no raro desportista que ele é - parecia um homem resignado, a desistir.

A rapidez com que Djokovic inscreveu um 4-0 no segundo set teve proporções de um atropelamento a ser acentuado sem mágoa. No seu estilo mecânico, mas de uma engenharia vasta, assente na diversa maquinaria com que colecionou os 24 Grand Slams que o fazem reinar no ténis fruto de literalmente quase todos os gestos, praticamente todas as suas pancadas, tocarem no céu (o smash, ainda hoje, será a única que não provoca inveja), Novak ia terraplanando o adversário com bolas marteladas aos cantos da linha de fundo quando não se lembrava de as puxar docilmente para a rede, onde Rafael Nadal já se dispensava a ir. Só a memória de um passado distante causaria comichão nos olhos de quem estivesse a ver, porque o presente era indesmentível.

Mas, depois, algures entre o “joguei um jogo de serviço muito mau” que Djokovic confessaria, após a partida, já sorridente e de trouxa às costas, pronto a abandonar o court, e a matéria da qual Rafael Nadal é feito, houve um momentâneo raiar de luz a incidir sobre o espanhol.

Nas suas palavras de rescaldo, o sérvio também falaria com um “não lhe podes dar nada, especialmente neste campo, com o público do seu lado”, outra admissão com recheio de verdade. Quando, combalido e aparentemente resignado, Nadal farejou a mínima titubeação de Djokovic a servir, foi como se por oposição diametral o jogo lhe tivesse pegado uma energia que o rejuvenesceu, mesmo que por instantes, não lhe tirando anos às rugas, à calvície dos já raros cabelos destrambelhados, mas oleando-lhe as gastas articulações, soltando-lhe as ancas, os joelhos, os tornozelos e por consequência libertando a cabeça para o alento de se focar apenas no seu braço esquerdo.

A temível manivela de ‘Rafa’ encadeou então direitas nadalescas, carregadas de top spin a bater sobre as linhas, marradas explosivas na bola que recordaram Djokovic, o público, o juiz de cadeira ou todos os olhares que os vissem de que naquele corpo cadente ainda há ténis para ser sublimado, mesmo se limitado a doses pequenas. O espanhol até à rede acorria para disputar pontos com o elástico sérvio e ganhá-los. O 4-4 fez a arena exultar. Foram minutos de êxtase vindo das bancadas que favoreceriam sempre o homem que tem uma estátua disposta na entrada de Roland-Garros, um não-francês a quem os franceses deram a tocha olímpica na cerimónia inaugural dos Jogos, como não.

Markus Gilliar - GES Sportfoto

O ressurgimento de Rafael Nadal, mesmo entusiasmante para o público, haveria de ser efémero pela sua dependência de maior na capacidade de reação de Novak Djokovic. Sozinho, por si só, o melhor do espanhol hoje em dia já não é suficiente. Quando o sérvio despertou e reencontrou a sua resposta ao serviço, sobre a qual se refestelou, de novo, na sua potente esquerda, o esqueleto do espanhol cedeu. Ao break, Djokovic fez suceder o jogo, fechado com um ás ao qual o rival nem esboçou uma tentativa de o apanhar. Por essa altura, Nadal compreendia que a máquina do tempo era uma miragem.

Lá dentro no âmago da ‘Rafa’ ainda existe, haverá sempre, o touro todo sujo de pó de tijolo, a sacudir-se de vez em quando e para sempre para a poeira pairar por momentos no ar antes de voltar a assentar. Ninguém sabe, talvez nem ele, se esta foi a badalada última dança. A felicidade de Novak Djokovic, sem dúvidas o melhor, mais em forma e dominador tenista entre os dois na atualidade, ao dizer no final, com a passagem à 3.ª ronda garantida, que tudo fez para ganhar, concluiu o respeito que jamais o sérvio deixará de ter pelo espanhol.

Mas o tempo já não é o mesmo para eles, por mais que a natureza inquieta de Nadal grite contra a sua inclemente passagem. Restam-lhe o torneio de pares, a dividir o court com Carlos Alcaraz, o passado e o futuro do mesmo lado da rede.

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