
Fernando Pimenta pode tornar-se, em Paris, no primeiro português com três medalhas olímpicas. Mas, se tal não acontecer, permanecerá “de consciência tranquila”. Um dia a olhar para o método e força de vontade de um vencedor em série
Fernando Pimenta pode tornar-se, em Paris, no primeiro português com três medalhas olímpicas. Mas, se tal não acontecer, permanecerá “de consciência tranquila”. Um dia a olhar para o método e força de vontade de um vencedor em série
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É quase como se houvesse dois Fernandos Pimenta. Um conhecido de todos, a lenda da canoagem, o homem das 145 medalhas internacionais, da prata no K2 de Londres, juntamente com Emanuel Silva, e do bronze no K1 de Tóquio, o múltiplo campeão europeu e mundial. E há o outro, mais oculto, longe da maioria dos olhares, que trabalha envolto em privacidade para que o Pimenta conhecido de todos, o Pimenta lendário, possa brilhar.
A melhor forma de conhecer o outro Fernando Pimenta é numa manhã no Centro de Alto Rendimento de Montemor-o-Velho. O dia acaba de raiar, o sol projeta uma luz clara sobre a água, e o canoísta de 34 anos chega a um hangar cheio de embarcações. A contar com este, faltam 14 dias de treino para participar no K1 1000 metros dos Jogos Olímpicos de Paris.
Duas semanas de afinações antes da possibilidade de tocar num feito inédito: tornar-se no primeiro português com três medalhas olímpicas. Se ganhar o ouro, tornar-se-á no primeiro campeão olímpico nacional fora do atletismo.
Paradoxalmente, esse pano de fundo que está ao virar da esquina, essa proximidade temporal, parece não influenciar o outro Fernando Pimenta. O cidadão preocupado que, enquanto se equipa, lamenta que Montemor-o-Velho seja, cada vez mais, uma “vila abandonada”, com menos gente, mais casas vazias. O campeão atento a todos os detalhes que, quanto nota que uma pequena máquina que faz terapia de águas frias — um daqueles aparelhos nos quais os atletas entram e ajudam à recuperação — está ligeiramente ao sol, vai fechar mais uns centímetros as portas do hangar. Não há acasos quando se ganham 145 medalhas.
Não há poupanças quando se quer ganhar a 146ª. Os pormenores do dia de treinos são afinados em conversa com Hélio Lucas, o inseparável treinador, num diálogo a dois pontuado pelo cantar dos pássaros madrugadores. O técnico, de Ponte de Lima como Fernando, diz que “o viu crescer” e o tratou “quase como se fosse um filho”. Teve propostas financeiramente mais apelativas para ir treinar outros canoístas, mas “isso não é tudo” e, portanto, foi-se mantendo com o conterrâneo.
Depois de aquecer, Fernando Pimenta entra na canoa, pega nas pagaias e começa a fazer séries de percursos de dimensão variável. Ver um treino do canoísta estando na água é como observar um predador no topo da cadeia alimentar no seu ambiente natural, todo ele determinação e voracidade, concentração e fome. Enquanto parece deslizar pela água, Hélio Lucas acompanha na margem, de bicicleta.
“Saída mais limpa”, “mais rápido”, “atenção às costas”. As indicações do técnico ecoam pela manhã de Montemor. Um pouco depois de Pimenta, entra na água um canoísta argentino e uma dupla polaca, todos com presença garantida em Paris. Fora do treino, Agustín Vernice, o argentino, oitavo no K1 1000 metros de Tóquio, é felicitado pelos companheiros pelo recente triunfo da sua seleção de futebol na Copa América.
“O grande desafio é psicológico, é ter este foco durante tanto tempo. Sei o que dói”, diz Pimenta, que andou “mais em baixo” no começo da época
No final do treino na água, depois de vários quilómetros percorridos, depois do aquecimento prévio, antes de ir correr mais oito quilómetros, de ir fazer trabalho de ginásio, de ir fazer exercícios de flexibilidade e prevenção, a meio do seu dia de treino intenso, tão intenso quanto é possível ser intenso, Fernando Pimenta vira-se para Hélio Lucas e diz: “Se for preciso fazer mais, eu faço.”
Se for preciso perder mais um quilo para chegar perfeito a Paris, como Hélio acha que devia, então Pimenta acrescenta uma corrida matinal à sua rotina. Se for preciso passar parte do ano fora de casa, longe da mulher e dos dois filhos, então Pimenta passa. Se for para continuar além de Paris, como Pimenta acha que vai acontecer, então Pimenta continua. “Há quem acredite que me deveria retirar depois de Paris, mas isso, para já, está fora de questão. Ainda tenho um caminho para fazer e mais coisas para conquistar. Acredito que, com trabalho, resiliência e disciplina, posso conquistar mais coisas.” Se for preciso um novo horizonte para pagaiar, Pimenta vai atrás dele.
Para Fernando Pimenta, o último inverno não foi fácil. “Ao estar tantos anos na alta competição”, diz, cria-se “um desgaste maior”, a “parte mental mexe connosco”. As coisas “não fluíam” até abril.
“O grande desafio é psicológico, é ter este foco durante tanto tempo. Sei o que dói. No começo da época, sabia que tinha de sofrer muito, passar pelo inverno, pelo frio, depois passar pelo calor. Andei mais em baixo por causa disso”, confessa o canoísta. Ajudado “pela família, pelo treinador e pelos amigos”, Pimenta conseguiu “dar a volta”. “Eu sabia o que tinha de fazer, era só voltar a esse caminho”.
Nos três meses antes dos Jogos, os resultados reapareceram. Os pódios nos Europeus de junho — ouro no K1 5000 metros, prata no K1 500 metros e bronze no K1 1000 metros — permitiram perceber que estavam “a fazer bem o trabalho”, explica.
Fernando Pimenta viaja para Paris no dia da cerimónia de abertura, onde fará, juntamente com Ana Cabecinha, de porta-estandarte. Diz que não é “pessoa de se enervar”, mas confessa que é “uma das coisas mais bonitas” que lhe poderiam suceder.
No dia seguinte ao desfile no Sena, regressa a Portugal, voltando a vestir o fato do outro Pimenta, retomando o treino duro, austero, silencioso. Regressará a Paris dia 4 de agosto, instalando-se fora da aldeia olímpica, fora da confusão, no recato, sendo o outro Pimenta até chegar o momento de vestir o traje do super-herói, da lenda. As eliminatórias e os quartos de final são a 7 de agosto, as meias-finais e a final três dias depois.
Num intervalo do treino, entre exercícios e exercícios, esforço e mais esforço, o limiano senta-se para discutir as perspetivas para os seus quartos Jogos. Fala com serenidade e admirável maturidade, um ganho de “experiência e conhecimento” destacado por Hélio Lucas, como se tudo isto fosse mais um bocado de rotina, de quotidiano, um acontecimento cosmicamente natural. Ou “normal”.
Ganhar uma terceira medalha olímpica seria um feito brutal, certo, Fernando? “Não, é uma coisa normal. Se conquistar agora uma medalha, vejo-me a lutar por outra no futuro.”. Mais, mais, mais.
Antevendo Paris, Hélio Lucas sublinha as diferenças face a Tóquio, acreditando que “os muitos portugueses presentes” irão ser “um fator mais a ajudar” a comitiva nacional. O técnico orienta também Teresa Portela, outra veterana, 36 anos e a caminho dos quintos Jogos, mulher que já conta com três diplomas olímpicos no palmarés. Competirá no K1 500 metros.
Pondo água na fervura da expectativa por um possível acontecimento histórico, Hélio avisa que, na prova de Pimenta, “do primeiro ao quinto ou sexto, qualquer um poderá ganhar, o nível é muito elevado. O primeiro objetivo é chegar à final. Na final, lutaremos pelo melhor resultado. Se vier uma carica associada, ficaremos muito contentes, o Fernando fará história. Mas ele foi sempre fazendo história ao longo dos anos”, recorda o treinador.
A mesma linha de raciocínio é aplicada pelo homem habituado a morder as “caricas”. “Se, a três dias dos Jogos, decidisse acabar a carreira, o brilho do meu currículo não seria apagado. Os Jogos não são uma prova em que tenha de me mostrar, são para desfrutar, divertir-me e dar o máximo. Claro que ambiciono o melhor, mas, se tal não acontecer, estarei de consciência tranquila”, garante Pimenta.
“Se o Fernando é muito exigente e teimoso, então eu sou ao quadrado”, diz Hélio Lucas. A fasquia permanentemente alta colocada pelo treinador é apontada por Pimenta como uma “grande motivação” para continuar.
Mas há outro segredo. No centro do outro Fernando, na face menos visível da face menos visível do campeão, estão Margarida e Santiago, os filhos. Antes de uma sessão de flexibilidade, os dois juntam-se ao pai, brincando, rindo. São “uma grande fonte de energia”, tal como a mulher, que “segura o barco”, descreve Pimenta.
Se for preciso fazer mais, Fernando fará. Mais estágios, mais treinos, menos tempo de Margarida e Santiago. Mas fazer mais traz “responsabilidades”, diz, porque se está “a abdicar de estar com eles, então é para aproveitar ao máximo, para dar tudo”. “Quando terminar este ciclo, que saiba que fiz tudo para que tudo corresse bem e, se não correr, que eles se sintam orgulhosos do pai”, diz Fernando, vendo como Margarida e Santiago vão brincando.
Na casa dos Pimenta, há um espaço reservado às medalhas do pai. A Margarida gosta de brincar com elas, grita pelo “papá campeão”, talvez tenha mais uma com que brincar em breve, juntando-se a outras duas que pertencem a um grupo especial. Mas, para Fernando, toda esta história, toda esta glória, é inferior aos seres pequeninos que estão ali, à sua frente. “São as minhas maiores medalhas, mais do que as 145”, diz antes de se voltar a despedir da família para concluir o dia de treino.
No dia seguinte, quando a madrugada raiar, a rotina recomeça. Hélio gritará da beira de água, os pássaros cantarão, Fernando dirá que, se for preciso fazer mais, ele fará.
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