Sir Andy Murray vive e vai lutar mais um dia

Editor
Há um tenista efusivo, caldeirão de emoções, acabou de tirar o boné e arremessá-lo para onde ele sabe lá, não interessa, que está a pular no court. Uma, duas e três vezes, são aqueles pulos sem nexo em que os braços abanam descontroladamente enquanto o corpo está em suspensão e não era, de todo, expectável que um dos corpos neste tipo de comportamento fosse o do tipo com 37 anos, que têm peças sobressalentes, ligado por remendos que escondem o desgaste causado pelo tempo e que o próprio oculta quando está em campo com o seu estilo sempre austero.
Como criança ingénua sobre o que é a vida e genuína nas ações por nada saber, Andy Murray está aos saltos junto à rede, aos berros, abraça com força Daniel Evans e aproveita os gritos para lhe dizer, repetidamente, vários “thank you”. A erupção de emoções destapa, no final de uma montanha-russa, mais uma, da dupla Evans/Murray, o caldeirão que por estes dias deve habitar em lume intenso no interior do multi laureado escocês, cujo peso no ténis e no desporto é comprovado pela emoção que começou a provocar naquela arena de Paris um par de horas antes.
No início de tudo, um mero “Andy Murray representing Great Britain do serve” dito, calmamente, pelo árbitro de cadeira, ser motivo suficiente para no estádio que não estava cheio, talvez nem a meia-casa, ecoar um vozeirão de entusiasmo era sinal que algo de especial sucedia num dos estádios de Roland-Garros com o dia a cerrar a pestana. Banal e protocolar, a frase suscitou um rugido das bancadas quando foi ouvida de estreia, provando que um encontro da segunda ronda do ténis de pares superava por largo esse estatuto, pelo menos no simbolismo.
No campo alaranjado, em pleno curso no seu último hurrah, estava Andy Murray, o cavalheiro e cavaleiro escocês. Sir Andy, um dos jogadores que durante tempos largos não foi tido pela generalidade do público como um dos que definiu esta era que finda do ténis, mas, sem dúvida, um dos escultores desta galáxia assim reconhecido por cada uma das estrelas que mais iluminaram o último par de décadas. Se Roger, Rafael e Novak se fartaram de louvar o quanto Murray batalhou com eles, nunca desistindo ou vergando perante as lendas até ser o seu corpo delapidado a empurrá-lo para mesas de cirurgia, por que haveria o seu derradeiro público de não seguir a deixa?
A cada bola que o obrigou a esticar-se todo para chegar, as que lhe fugiam um pouco mais do alcance, Andy Murray ia lá quase sempre em esforço, o material das suas peças e roldanas e parafusos a esfregarem-se a custo nos seus 37 anos e na sua anca de titânio. E ele sereno como lhe é costume, a levantar o braço num ângulo de 90 graus e a cerrar o pinho, gesto hipnótico de tão característico na sua vulgaridade enquanto essa calma contrastava com o volátil Daniel Evans dos berros, abanões de corpo e raquete atirada contra a terra batida à mínima adversidade no jogo provocada pela dupla do outro lado da rede.
Os belgas Sander Gillé e Joran Vliegen foram invadidos pelo ímpeto dos britânicos no primeiro set (6-3), vulgarizados pelo jogo ora de lobs precisos quando ousavam sondar a rede, ora com aranhiços ataques de Murray na divisória para martelar a bola logo ali contra a terra, fazendo-a ressaltar para longe. Aquando dos silêncios no estádio antes dos serviços a favor, era a voz grave e monocórdica do escocês que se ouvia: Sir Andy elogiava o intempestivo Evans quando se notava o inglês a ir abaixo, perguntava-lhe para onde ir servir, dizia-lhe onde ele ia estar de acordo com a resposta. A sintonia entre ambos era estimada pelo veterano.
Vinham de salvar heroicamente cinco match points no encontro da ronda inaugural, logo tinham o embalo de uma fuga a um desfecho que parecia certo. O segundo parcial provou-se, contudo, mais desafiante. A dupla belga acordou para a intempérie, o jogo de serviço melhorou, especialmente o de Vliegen, canhoto que massacrou a ferrugem e o emperro de Murray que ao lado não tinha a vizinhança de um Evans sólido, com auto-controlo para evitar as oscilações entre pancadas estrondosas e erros de palmatória, sem a possibilidade de um meio-termo.
Renhido e dividido, o set prolongou-se até ser necessário um tie-break que nos primórdios parecia encaminhado para os britânicos, mas, à vez, Evans e Murray cometeram uma dupla falta, depois impedirem um ponto para os belgas levarem o parcial, tiveram dois deles que lhes dariam a vitória, porém hesitaram, erraram e duvidaram, os tremores notaram-se, chegaram a refilar com o árbitro por uma suposta bola fora que ele validou num serviço e acabariam por baquear. O jogo foi, então, à inovação olímpica que é não haver terceiros parciais em caso de empate. Os tira-teimas são um match tie-break onde ganha quem chegar primeiro aos 10 pontos.
Novamente se viu uma travessia solavancada no campo, cheia de vantagens de dois pontos seguidas de igualdades, pontos para fechar o encontro salvos por Evans e Murray à beira de uma falésia e o público, também volátil, a encher o estádio de tiradas a puxar pelo único tenista para quem uma derrota seria o fim de tudo.
Um smash triunfante do inglês que jamais terá um terço do ténis que Andy Murray teve no seu auge resgatou a vitória para a dupla do Reino Unido, as bancadas vieram abaixo porque não com elas, mas antes delas, um cavaleiro da ordem britânica desfez-se num descontrolo festivo quiçá nunca avisto no homem que têm três Grand Slams, um trio de medalhas olímpicas e incontáveis batalhas gloriosas nos palcos mais resplandecentes da modalidade.
O escocês desmantelou-se, por momentos, numa celebração épica e quase transcendente, um quase quarentão a virar criança antes de sentar-se no banco, assentar a cabeça nas mãos e serenar os ânimos. Algures naquela carapaça surgiu o pensamento de que se calhar era desta, talvez o fechar da luz fosse assim.
Mas não, Sir Andy Murray sobreviveu para lutar mais um dia.
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