Ana Cabecinha ficou em último, atrás de toda a gente na marcha. Mas já tinha ganhado, e ganhou outra vez ao beijar o filho na última volta
MOHAMMED BADRA
Três meses após ter sido mãe, a guerreira Ana Cabecinha, de 40 anos, terminou os 20 quilómetros da marcha no último lugar, em lágrimas nas últimas voltas ao percurso e a dar um beijinho no filho bebé antes de seguir para a meta. Antes de começar, ela já tinha vencido. Ao acabar a corrida, ganhou outra vez. Vitória Oliveira, a outra portuguesa em prova, foi 38.ª e as suas palavras servem para ambas, e para toda a gente: “Muitos nem se lembram do calvário que os atletas passam para chegarem a uns Jogos, por isso, saio daqui a de cabeça erguida, dei o meu melhor e é isso que conta.”
Logo ao sétimo quilómetro de uma das tarefas desportivas mais contranatura que se pode pedir aos humanos, a de correrem sempre com algum pé em contacto com o chão, era ultrapassada pela líder da corrida. Jiayu Yang, de ritmo imparável, dava uma volta de avanço a Ana Cabecinha quando se cumpria o terço da corrida e a portuguesa, imperturbável, mal olhou para ela, nem lhe concedendo um soslaio de atenção.
Tão matutina no tempo, esta ultrapassagem da líder chinesa da corrida à portuguesa que seguia em último lugar surpreenderia apenas quem desconhecesse o contexto da prova dos 20 quilómetros da marcha, a decorrer sob o sol matinal de Paris.
Quarentona de vida, multi titulada na carreira, Ana Cabecinha marchava, vista de fora, tranquilamente, em paz com o seu ritmo. Por dentro, talvez lidasse com dores e sacrifícios, quezílias musculares ou truculências mentais a visitarem-na uns 90 dias após ter estado deitada numa mesa de cirurgia para a cesariana que lhe deu “a grande medalha” que já tem e levou para estes Jogos Olímpicos, os quintos da sua carreira, como explicou à Renascença. Nada que lhe pudessem pendurar ao pescoço ultrapassaria esse facto.
De óculos escuros e boné, semelhante a muitas outras adversárias, de tronco integralmente tapado pelo equipamento, a ocultar a barriga como nenhuma, Ana Cabecinha cumpriu a sua corrida, a marcha só dela, a missão particular que levou a Paris. A meio da contenda, a natural de Vila Real de Santo António já via a proa da corrida a quase 10 minutos, a lidar com agruras que só ela saberá e às quais se quis submeter de bom grado desde que, há quase um ano, teve o que pretendia.
A portuguesa não competia desde agosto de 2023, quando, de plenos direitos, garantiu a qualificação para Paris a marchar nos Campeonatos do Mundo de Budapeste com um tempo de 1:28:49. Esta quinta-feira, pelas ruas da capital francesa, chegou ao destino em 1:46:30, quase mais vinte minutos da marca que lhe garantiu o bilhete para ali estar.
Ana Cabecinha terminou a prova, a 20 minutos e 36 segundos de Jiayu Yang, mas acabou-a, mãe há tão pouco tempo, o corpo a gritar-lhe a maternidade por entre todos os poros e ela, heroica e hercúlea, a levar os 20 quilómetros de marcha até ao fim e o seu filho algures ali por perto, à sua espera. Por isso Ana ganhou, venceu, sobretudo prevaleceu contra tudo e também com tudo, com o filho Lourenço a vê-la da zona de abastecimento e mãe, a sofrer em cada quilómetro, a marchar em lágrimas nas últimas voltas, a olhar para o seu bebé a cada passagem para ter “motivação extra e dar mais uma volta e mais uma volta”.
“Então, cheguei ao fim.”
MOHAMMED BADRA
MOHAMMED BADRA
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Chegou a chorar, depois de dar um beijinho rápido ao seu filho na derradeira das voltas e o pranto a inundá-la mais ainda, “a minha melhor medalha está na parte de fora deste percurso”, repetiu no final, ainda a segurar a sua emoção já parada, a recuperar o fôlego de uma marcha “muito difícil em todos os sentidos” em que Ana Cabecinha se agarrou ao seu objetivo: “O meu intuito sempre foi começar e acabar, nunca foi ficar em nenhum lugar. Foram os meus últimos 20 quilómetros de marcha, o meu último sino em grandes campeonatos, as últimas três voltas foram muito difíceis a nível emocional.”
Além de acabar, e portanto ganhar, acabou a ser aplaudida por muita gente, cada uma dessas pessoas que deram as palmas à sua passagem a unirem-se num “reconhecimento do mundo pelo trabalho e carreira” da marchadora portuguesa que fez o que é pouco provável que alguma outra venha a sujeitar-se um dia. “Como é óbvio, não me preparei, em dois meses e meio não se prepara uma prova de 20 quilómetros, muito menos depois de ter sido mãe.”
Fora as dores, as lágrimas, os músculos a darem de si, os pulmões a suplicarem que parasse, Ana Cabecinha aguentou pelo seu filho, pelo seu bebé - “estou desejando abraçá-lo agora, é o que mais quero neste momento.” Findos muitos anos “a andar na frente dos grandes campeonatos”, a guerreira algarvia, felicíssima com o seu último lugar, despediu-se em grande.
Pelo contrário, não foi um adeus para Vitória Oliveira, a outra portuguesa em prova, que terminou no 38.º lugar, a 10 minutos e 28 segundos do ouro. Tem 31 anos, muito marcha ainda terá dentro, na mesma alma que a fez lembrar, ao microfone da RTP, para que todos ouçamos: “Muitos nem se lembram do calvário que os atletas passam para chegarem a uns Jogos, por isso, saio daqui a de cabeça erguida, dei o meu melhor e é isso que conta.”