Ingebrigtsen, o norueguês que já se habituou a fazer história nos 1.500m e acredita que os Jogos de Paris vão ser “um passeio no parque”
Michael Steele
Jakob Ingebrigtsen é campeão olímpico dos 1.500 m e recordista europeu. Cresceu numa família de atletas e há um ano denunciou publicamente, com dois irmãos, as agressões de que foram vítimas por parte de um pai autoritário, que também era o seu treinador e assume estar pronto para ser o mais rápido nas quase quatro voltas à pista do Stade de France
Jakob Ingebrigtsen chega aos Jogos de Paris como favorito no domínio das apostas para repetir a medalha de ouro nos 1500m. A razão deste avanço na corrida das probabilidades não é difícil de explicar e entender, ainda que o caminho que o norueguês de 23 anos pisou para chegar até aqui tenha contornos nebulosos e tortuosos, que se esconderam durante anos atrás dos vários sucessos da família e de uma intensa vida pública.
Nascido em 19 de setembro de 2000, Jakob cresceu no seio de um clã com sete irmãos e uma notável tradição na corrida, liderada pelo pai, Gjert, o seu treinador e dos irmãos mais velhos, Filip e Henrik, que também têm carreiras destacadas no atletismo. Filip conquistou a medalha de bronze nos 1500 metros nos Mundiais de 2017 e Henrik foi campeão europeu em 2012, na mesma prova.
Nos Campeonatos Europeus de 2018, Jakob chocou o mundo da pista ao conquistar dois títulos, com 17 anos. Num dia, destronou o seu irmão Filip como campeão dos 1500 metros e, no seguinte, venceu os 5000 metros, estabelecendo um novo recorde europeu de juniores. Desde então tem construído um palmarés invejável, sendo o mais novo mas também o mais bem-sucedido dos três irmãos atletas. No total já soma 27 medalhas de ouro, sete de prata e duas de bronze nas mais diversas competições.
Mas neste mar de rosas há muitos espinhos. Os sucessos desportivos da família, transformaram-na numa celebridade, com direito a série documental na televisão norueguesa, ao estilo Kardashians, intitulada “Equipe Ingebrigtsen”. O público conheceu a vida de Jakob e familiares durante quase uma década, através de centenas de horas que mostravam as tensões e alegrias vividas em família, às vezes com direito a discussões em direto. Num país com cinco milhões de habitantes, alguns episódios chegaram a ser vistos por um quinto da população.
Ou seja, Jakob cresceu numa semiclausura, por causa da exposição pública a que foi sujeito. Sair à rua tornou-se um pesadelo e a série, que teve cinco temporadas, só terminou quando ele conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Tóquio, realizados em 2021. Esse foi o último episódio da série, mas não o fim dos problemas dos Ingebrigtsen. Em 2022, os três irmãos mudaram de treinador, o que provocou a uma série de especulações que duraram um ano, altura em que decidiram falar publicamente sobre a verdadeira razão que os levou a cortar relações com o pai. “Quando rompemos com Gjert, pensámos que seríamos capazes de lidar com a situação de forma ordeira, sem mencionar as circunstâncias subjacentes. Agora apercebemo-nos de que isso não é possível”, assumiram numa carta enviada ao jornal norueguês “VG”.
Os irmãos Henrik, Jakob e Filip Ingebrigtsen
Alexander Hassenstein
Jakob, Henrik e Filip revelaram que cresceram com “um pai muito agressivo e autoritário, que usou violência física e ameaças” como parte da sua educação. “Ainda sentimos uma sensação de desconforto e medo que sentimos desde a infância. De alguma forma, aceitámos isso. Vivemos com isso e, na idade adulta, seguimos em frente. Pelo menos, pensámos que sim. Em retrospetiva, apercebemo-nos de que foi ingénuo. Mas há dois anos, a mesma agressão e o mesmo castigo físico voltaram a acontecer. Foi a gota que fez transbordar o copo”, confessaram, para concluir: “Agora a situação é insuportável. A pressão que sentimos é, por vezes, desumana”.
Gjert não esteve presente no casamento de Jakob e já negou as acusações de que é alvo, afirmando: “Estou longe de ser perfeito como pai e marido, mas não sou violento”. Entretanto, começou a treinar outro corredor norueguês, Narve Gilje Nordas, que melhorou os seus resultados e atribui esse facto ao “sistema norueguês” de treino que Gjert utilizou com os seus filhos e que envolve quilometragem elevada, “sessões de duplo limite” e sprints semanais em colinas para manter a velocidade.
Debaixo de investigação, a polícia decidiu indiciar Gjert Ingebrigtsen por um caso de maus-tratos a um dos seus familiares, mas segundo a imprensa norueguesa, o episódio em questão não diz respeito ao trio de atletas, mas sim a outro irmão mais novo. Durante um período de quatro anos, de 2018 a 2022, Gjert terá alegadamente insultado, ameaçado e batido no rosto, com a mão ou com uma toalha, o filho.
Um passeio no parque
Além do ouro olímpico nos 1500m, Jakob tem dois ouros mundiais nos 5.000m (2022 e 2023) e duas medalhas de prata mundiais nos 1.500m (também 2022 e 2023). Nos Europeus ao ar livre coleciona seis títulos - é o atleta europeu masculino com mais medalhas na história da competição -, e conquistou a dobradinha, 1.500m e 5.000m, por três vezes, em 2018, 2022 e 2024.
Há três semanas, este norueguês tatuado nos braços e nas pernas e que levanta o indicador bem no ar assim que corta a meta, voltou a bater o recorde da Europa dos 1.500 metros, com o tempo de 3:26.73 minutos demonstrando no meeting do Mónaco, da Liga Diamante, que chega a estes Jogos no pico de forma. Não é de espantar que nestes JO o prodígio norueguês seja capaz de derrubar o mítico máximo mundial do marroquino Hicham el Guerrouj (3:26.00m), que perdura desde 1998, e que procure também tornar-se no primeiro europeu a conseguir uma dobradinha (1.500m e 5.000m), em 40 anos, feito que não acontece desde 1980 e 1984, altura em que Sir Sebastian Coe, britânico que é o atual presidente da World Athletics, a federação internacional da modalidade, dominava as distâncias.
Se dúvidas há sobre as suas intenções, as declarações que fez ao podcast "Ignite" da European Athletics, são claras: “Se não me lesionar e não ficar doente, acho que vai ser um passeio no parque”.
Um “passeio” a que certamente o português Isaac Nader vai querer assistir de perto, isto é, na pista, na final dos 1.500m. Nader tem o 7.º melhor tempo mundial do ano e foi 4.º na prova dos Mundiais de atletismo de pista coberta. Nos Europeus de Roma deste ano, em que o norueguês se sagrou tricampeão, o português terminou no 10.º lugar, com o tempo de 3.34,22 m.