Jogos Olímpicos de Paris 2024

Ajudando à controvérsia, associação que já não regula o boxe dá prémio de €75 mil à mulher que desistiu de lutar contra outra mulher

Ajudando à controvérsia, associação que já não regula o boxe dá prémio de €75 mil à mulher que desistiu de lutar contra outra mulher
Anadolu

A entidade à qual o Comité Olímpico Internacional retirou o estatuto de reguladora da modalidade, em 2023, anunciou que vai entregar um valor equivalente ao prémio destinado a vencedores de medalhas de ouro, em Paris, à pugilista italiana que, na quinta-feira, desistiu do combate contra Imane Khelif. Sobretudo desde então, a atleta vencedora argelina tem visto políticos, comentadores e redes sociais a embarcarem numa polémica que coloca em causa o seu género

A Associação Internacional de Boxe (IAB) não tem, desde junho, qualquer propriedade sobre a modalidade que tem no seu nome porque o Comité Olímpico Internacional (COI) lhe retirou o estatuto de reguladora das competições que colocam pessoas de luvas postas a trocarem socos no interior de um ringue. Ou seja, a IAB, neste momento, não regula o boxe. Mas, este sábado, a entidade anunciou que vai dar 100 mil dólares a Angela Carini, o equivalente ao prémio que a organização tinha garantido entregar aos medalhados de ouro em Paris. Neste caso, irá para uma pugilista que desistiu do seu primeiro combate nestes Jogos Olímpicos.

Vai fazê-lo, segundo o comunicado, porque o seu presidente, Umar Kremlev, ficou sensibilizado pelo que viu. “Não sou indiferente a estas situações e posso assegurar que vamos proteger cada pugilista. Não compreendo como estão a matar o boxe feminino. Só atletas elegíveis deveriam competir no ringue para zelarmos pela segurança”, lê-se. O dirigente russo ainda acrescentou que não conseguiu “olhar nos olhos” de Angela Carini ao ver o combate em questão, realizado na quinta-feira. A entidade acrescentou, embora sem referir a quantia, que também apoiará a pugilista Sitora Turdibekova, uzbeque derrotada, em Paris, por Yang Lin, atleta de Taiwan e outra que a IAB desqualificou, o ano passado, dos Mundiais de boxe quando ainda era responsável por os organizar.

Ainda não é conhecido se Angela Carini, a italiana de 25 anos, aceitou ou vai aceitar a quantia, correspondente a cerca de 75 mil euros.

O gesto revelado ao mundo pela Associação Internacional de Boxe será, previsivelmente, mais um sopro a ajudar à ventania que elevou um combate olímpico ao estatuto de tempestade de polémica, a maior que está a afetar estes Jogos de Paris. No olho desse furacão, como a consequência mais grave, está a alegação promovida por políticos com tempo de antena nas televisões (Giorgia Meloni, primeira-ministra de Itália, à cabeça) e rapidamente propagada pelo turbilhão das redes sociais, de que a adversária de Angela Carini não pode ser considerada uma mulher, ou que este será um caso transgénero.

Porque uma polémica, por estes dias, raramente tem em conta que há pessoas reais, verdadeiras, em causa, e para o contexto não faltar, vamos resumidamente a alguns dos factos conhecidos desta história até ao momento. Estes e outros já foram explicados neste texto, mas nunca será um desperdício recordar factos.

Primeiro facto: Imane Khelif ganhou, na quinta-feira, o combate da primeira ronda do boxe olímpicos, -66 quilos, contra Angela Carini, a italiana que desistiu aos 46 segundos, recusou-se a cumprimentar a argelina e, pouco depois de abandonar o ringue, disse à BBC que “o segundo soco doeu demasiado” e “não conseguia lutar mais”, acrescentando como o seu cérebro chocalhado pelos socos pensou “naquele momento” em “preservar” a sua “vida”.

Segundo facto: constatando a proporção da polémica crescida em torno do combate, a pugilista italiana, na sexta-feira, falou à Gazzeta dello Sport para pedir desculpa à adversária argelina, lamentando a proporção e a escalada da polémica - “toda a controvérsia deixa-me triste, não era algo que eu tencionava fazer; quero pedir desculpa à minha adversária e a toda a gente, se o COI disse que ela pode lutar, respeito essa decisão; eu estava zangada por os meus Jogos se terem evaporado.”

Terceiro facto: nunca, em frase alguma proferida nestes Jogos Olímpicos, a italiana Angela Carini colocou em causa o género da argelina Imane Khelif.

Anadolu

Quarto facto: os cerca de 10,500 atletas presentes em Paris foram controlados sob a supervisão da ITA (Agência Internacional de Testagem), à qual o Comité Olímpico incumbe a responsabilidade de testar todos os participantes; a ITA, por seu turno, faz esse trabalho em parceria com a WADA (Agência Mundial de Anti-Doping), que é a maior entidade de testes no desporto; neste processo de testagem entram as aferições dos níveis de testosterona presentes no corpo de cada atleta.

Quinto facto: nos Mundiais de boxe de 2023, a pugilista da Argélia e Yang Lin, do Taiwan (estão em Paris, ambas em prova), já com a competição em curso e perto das finais, foram desqualificadas pela Associação Internacional de Boxe, organizadora da prova que justificou a decisão com “testes” realizadas a ambas meras horas antes de Khelif combater pela medalha de ouro; a IAB explicou, na altura, ambas as atletas “falharam os critérios de elegibilidade nos regulamentos [da entidade] para mulheres participarem na competição”, sublinhando que “pugilistas vão competir contra adversários do mesmo género”; a organização nunca esclareceu que teste foi feito, nem revelou os resultados ou apresentou provas, dizendo apenas tratar-se de um “teste reconhecido” e assegurando que não incidiu sobre os níveis de testosterona das mulheres em causa.

Sexto facto: quatro meses após os Mundiais, o COI retirou o estatuto de reguladora oficial do boxe à IAB por a entidade não cumprir com os requisitos impostos a todas as organizações que se prestem a governar sobre uma modalidade (como tal, é o Comité a organizar a prova olímpica, algo que era a IAB a tratar até aqui); a decisão seria confirmada pelo Tribunal Arbitral do Desporto, a última instância dos reguladores de casos de justiça desportiva, após a organização de boxe apelar contra a decisão;

O pai de Imane Khelif, na Argélia, a mostrar, com o telemóvel, uma fotografia da filha em criança.
-

Sétimo facto: uma dessas violações terá sido como, nos tais Mundiais, a IAB permitiu, ao contrário da vasta maioria das federações desportivas internacionais, que atletas russos e bielorrussos competissem com as bandeiras dos respetivos países, por oposição ao decretado pelo Comité Olímpico para estes Jogos, onde participantes oriundos dessas nações estão lá sem símbolos ou bandeiras nacionais, mas sob a bandeira da neutralidade; Umar Kremlev, presidente da IAB, é russo, tem a Gazprom, gigante empresa russa, como um dos principais patrocinadores, e já foi noticiada a sua relação próxima com Vladimir Putin.

Oitavo facto: Thomas Bach, presidente do Comité Olímpico Internacional, pronunciou-se, no sábado (e já depois de a entidade oficialmente o ter feito, acerca do caso e reforçou a postura da instituição que é responsável pelo maior evento desportivo do mundo, que representa o pináculo dos sonhos de milhares de atletas, dizendo:

“Este não é um caso transgénero. Vamos ser muito claros, estamos a falar de boxe feminino e temos duas pugilistas que nasceram mulheres, que foram criadas como mulheres, que têm ‘mulher’ escrito nos passaportes e competiram, durante muitos anos, como mulheres e isto é a definição clara de uma mulher. Nunca houve quaisquer dúvidas de que são mulheres. O que vemos agora é que algumas pessoas querem ser donas da definição do quem é mulher. Só posso convidá-los a aparecerem com uma definição, com bases científicas, do que é ser mulher. Se aparecerem com algo, estamos dispostos a ouvir e a analisar, mas não vamos fazer parte de uma luta cultural politicamente motivada - e o que se está a passar nas redes sociais, com todo este discurso de ódio, de agressão e de abuso alimentado por esta agenda, é totalmente inaceitável.”

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt