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Um país sem pavilhões e uma equipa de refugiados: estar no basquetebol dos Jogos Olímpicos é um milagre para o Sudão do Sul

Um país sem pavilhões e uma equipa de refugiados: estar no basquetebol dos Jogos Olímpicos é um milagre para o Sudão do Sul
SAMEER AL-DOUMY

Nuni Omot nasceu num campo de refugiados e Wenyen Gabriel perdeu a irmã enquanto fugia com a família de um país em conflito. Histórias como estas repetem-se na equipa do Sudão do Sul que está nos Jogos Olímpicos a competir no torneio de basquetebol. Em 2019, Luol Deng, antigo jogador da NBA, financiou o desenvolvimento da modalidade e criou a equipa que agora chegou a Paris contra todas as expectativas

O momento de fugir não escolhe circunstâncias. Instantes de demora podem significar fazer parte do alvo que as balas escolhem para se espetarem em corpos aos quais não fazem questões sobre inocência.

Pillow sentia-se um resto. Praticamente toda a sua família tinha morrido na Guerra Civil do Sudão. Sobrava ela, que não era apreciadora da melodia, para ouvir o som dos tiros. O risco iminente de morrer também não a agradava. A ter que resvalar deste mundo, que fosse a tentar manter-se por cá.

Só que não existia plano de evacuação. O caminho era incerto e entregue aos trapaceiros que vendem pacotes de viagem falsos para o paraíso e roubam tudo o que podem. Mas a pérola preciosa ninguém lhe podia tirar. Além do marido e do filho mais velho que a acompanhavam, Pillow carregava consigo o nascituro Nuni Omot.

Só entre a Etiópia e o Quénia, Pillow fez mais de 700 quilómetros a pé. Aquele grupo de três pessoas e meia foi detido na fronteira entre os dois países, antes de ser deslocado para um campo de refugiados em Nairóbi. Foi lá que nasceu Nuni Omot, uma criança que sofria de asma e que tinha as carências gerais das vidas em espera que o rodeavam.

Vinte e nove anos depois, Nuni Omot cresceu até aos 2,06m e foi de um cenário de miséria generalizada até aos Jogos Olímpicos, onde está a representar a seleção de basquetebol do Sudão do Sul.

Quando se tornou independente, em 2011, o número representativo da probabilidade do Sudão do Sul estar nos Jogos Olímpicos era ainda mais baixo do que o do Índice de Desenvolvimento Humano do país. E é difícil. Aquele pedaço de território deitado de barriga para cima no nordeste do continente africano é uma das nações mais recentes e também mais pobres do mundo.

Ter condições para jogar basquetebol é o último problema a resolver. A violência não deixou o Sudão do Sul após a independência. Conflitos étnicos e lutas de poder continuam a causar vítimas. Além disso, a fome senta-se à mesa no lugar da comida. Não é uma grande ajuda que as alterações climáticas tenham alagado plantações agrícolas e, por arrasto, destruído habitações. O acesso à água potável é um luxo.

O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estima que 2,4 milhões de pessoas tenham deixado o país até junho de 2023. Nuni Omot passou a ter acesso a serviços de saúde e a educação a partir do momento em que se estabeleceu em Minnesota, nos Estados Unidos. Foi um dos sortudos que conseguiu escapar ao labirinto entre a guerra e a paz.

O hino errado, a equipa de amputados e a falta de infraestruturas

Há uma década, teria sido despropositado mencionar a estreia do Sudão do Sul no torneio de basquetebol dos Jogos Olímpicos. Se alguém ousasse referir tal possibilidade seria diagnosticado com loucura. Mas as boas histórias também têm uma parte desse ingrediente. As Bright Stars, como foi apelidada a equipa, realizou o primeiro encontro em Paris contra Porto Rico e logo na estreia arrecadou o primeiro triunfo (90-79), mas nem tudo correu dentro da normalidade.

A cerimónia protocolar antes do jogo ficou marcada por aquilo que foi explicado pela organização como um “erro técnico”. No momento que devia ter começado a tocar o hino do Sudão do Sul, começou a tocar o hino do Sudão. Passados alguns segundos, começou a tocar a melodia correta. A intermitência foi suficiente para que Wenyen Gabriel não o pudesse escutar, porque recolheu aos balneários para ir à casa de banho antes do lapso ter sido corrigido e da bola ter sido lançada ao ar.

Wenyen Gabriel é o jogador mais mediático do Sudão do Sul. Alcançou a NBA e viveu nos LA Lakers os momentos de maior protagonismo. Na época passada, chegou a juntar-se aos Boston Celtics, acabando por ser dispensado depois de perder a vaga no plantel para um certo português, chamado Neemias Queta.

Ao contrário de outros jogadores que nasceram após os pais terem fugido, Wenyen Gabriel veio ao mundo em Khartoum, há 27 anos, quando os progenitores, provenientes do território que é hoje o Sudão do Sul, estavam a rumar ao Egito. Aos três anos, mudou-se para os Estados Unidos. Pelo caminho, perdeu a irmã que não teve acesso aos cuidados de saúde que necessitava antes da família chegar a território americano.

Em 2022, Wenyen Gabriel deslocou-se a Juba, a capital do Sudão do Sul. Foi a primeira vez que esteve no país desde a independência. A população recebeu-o como se de um chefe de Estado se tratasse. Ficou surpreendido por pessoas sem acesso à Internet saberem quem ele era. A visita teve paragem no Juba Basketball Stadium. Cumprimentou uma a uma as pessoas que o esperavam. Tentou demorar-se o mais que conseguiu em cada aperto de mão, como se estivesse envolvido numa vontade de estabelecer em meros segundos amizades para a vida.

Juba Basketball Stadium é um nome pomposo. Não há na designação nada que o desmereça em comparação com o Pierre Mauroy Stadium, onde decorrem os jogos da fase de grupos dos Jogos Olímpicos. As condições de ambas as infraestruturas é que são antagónicas. O Juba Basketball Stadium tem vista para o céu. As redes prendem-se com dificuldade no aro das tabelas. Qualquer visita da chuva intromete-se nas atividades que estejam ali a decorrer. Apesar de tudo, é mais fácil driblar num pavimento liso, ainda que com a pintura a descascar-se, do que na terra batida das ruas (e há quem o faça).

Aquele é o ponto central para muitos descobrirem o interesse pela modalidade. Há inclusivamente uma equipa de basquetebol em cadeira de rodas que tem o sonho de atingir os Jogos Paralímpicos. É ali que treina o conjunto de jogadores composto por vítimas de ferimentos de balas e explosões de minas que acabaram amputadas. Quando o projeto começou, eram mais os interessados em participar nele do que as cadeiras de rodas adaptadas existentes para lhes serem oferecidas.

“Estamos muito felizes por representar o nosso país. Muitas pessoas pelo mundo fora não sabem o que é o Sudão do Sul”, disse Wenyen Gabriel após um jogo de preparação para o torneio olímpico em que as Bright Stars ficaram a apenas um cesto de ganhar aos Estados Unidos. “Não temos nenhum campo de basquetebol indoor no nosso país”, lamentou. “Somos apenas um bando de refugiados que se junta durante algumas semanas ao longo do ano para tentar defrontar os melhores jogadores de sempre.”

O arquiteto do sonho

Antes dos Jogos Olímpicos, o grande logro do Sudão do Sul foi apurar-se para o Mundial, onde terminou no 17.º lugar (à frente de França, por exemplo) entre os 32 participantes. Era o primeiro fruto de Luol Deng, o homem que semeou tudo isto.

Em 2011, um jogador dos Chicago Bulls usou parte do seu salário de cerca de 12 milhões de dólares por ano para organizar uma frota de autocarros que permitisse à comunidade sudanesa nos Estados Unidos dirigir-se às urnas e votar no referendo que ditou a independência do Sudão do Sul. Nessa altura, Luol Deng estava no auge da carreira de dez anos que teve na NBA com direito a duas eleições para o All-Star, jogo que reúne os melhores jogadores da liga norte-americana.

Luol Deng-erous, como chegou a ser conhecido, nasceu no Sudão, fugiu para o Egito e refugiou-se no Reino Unido (representou o país nos Jogos Olímpicos de Londres). Em 2019, tornou-se presidente da federação de basquetebol do Sudão do Sul. A partir de uma estrutura inexistente, usou a experiência para convencer jogadores a representarem o país e criou condições para competirem ao mais alto nível. “O Luol Deng financia-nos há quatro anos do seu próprio bolso. Ele paga pavilhões, hotéis, voos, tudo. Não teríamos conseguido montar esta equipa sem ele”, enalteceu Royal Ivey, o primeiro treinador a comandar o Sudão do Sul nos Jogos Olímpicos.

O antigo jogador cresceu a ouvir falar de problemas e quis mudar a narrativa, oferecendo, literalmente, algo de positivo sobre o qual as pessoas pudessem falar. Neste momento, não é apenas no Sudão do Sul que se fala do basquetebol das Bright Stars. Há um mundo inteiro atento.

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