Jogos Olímpicos de Paris 2024

A “gratidão” de Irina Rodrigues, a médica finalista olímpica para quem Paris 2024 foi um “sonho” depois dos pesadelos de 2012 e 2016

A “gratidão” de Irina Rodrigues, a médica finalista olímpica para quem Paris 2024 foi um “sonho” depois dos pesadelos de 2012 e 2016
JOSÉ SENA GOULÃO/Lusa

A portuguesa foi 9.ª na final do lançamento do disco, ficando a 18 centímetros de obter um diploma. Aos 33 anos, e depois de ir para a Terceira para treinar com Júlio Cirino, histórico técnico de Teresa Machado, a médica teve nestes Jogos a sua melhor memória olímpica, o culminar de uma jornada em que passou por uma depressão e por uma perna partida que, a cinco dias do Rio, a tirou da hipótese de competir em 2016

O barulho. O ruído. Os gritos sempre que alguém vai lançar o disco. Os flashes, as câmaras apontadas, os “ohhh” quando há uma marca acima das outras. O entusiasmo. A excitação. A pressão.

Estar num estádio olímpico cheio, numa noite de finais de atletismo nos Jogos Olímpicos, é imponente. No serão em que Mondo Duplantis fez história, o Stade de France estava esgotado, povoado por mais de 80.000 almas.

Tudo isto foi, em tempos, fonte de desconforto para Irina Rodrigues. A cabeça ia para lugares negros, pouco simpáticos. Mas já não é assim, já “começa a ser confortável”, já “não há o impacto negativo que antes tinha”. “Agora, até é bom saber que há tanta gente que gosta de atletismo”, confessa a leiriense após a final do lançamento do disco.

Na verdade, em Paris 2024 não há muitos dos ingredientes de sofrimento do passado recente. Foi “um sonho” que ela viveu aqui. Primeira final de sempre nuns Jogos Olímpicos, melhor resultado de sempre numa final de nível mundial.

Na competição vencida pela norte-americana Valarie Allman, com um arremesso a 69,50 metros, com a chinesa Bin Feng a ficar com a prata (67,51 metros) e a croata Sandra Elkasevic a ser bronze (também com 67,51 metros), Irina Rodrigues foi 9.ª. Mas, além do resultado, o que ficará mais presente naquela cabeça será o orgulho de ter dado a volta, a quase história de redenção que esta participação olímpica encerra.

Na época de 2011/2012, antes dos Jogos de Londres, Irina teve uma depressão. Foi o desporto que a salvou, contou numa entrevista ao “Sete Margens”. “Era o compromisso com o atletismo que me fazia sair da cama”, confessa.

Naqueles dias negros, nos locais cinzentos para os quais ia a sua cabeça, ter o objetivo de estar em Londres foi o que a mantinha a andar. Foi 30.º nos Jogos de 2012, mas aqueles não foram tempos alegres.

Tomava a medicação — não podemos esquecer que a depressão é uma doença — mas, ao mesmo tempo que os medicamentos me ajudavam a recuperar, também aumentavam o meu apetite. Lembro-me perfeitamente de que nesse ano engordei 25 quilos e havia colegas que comentavam: “Está tão gorda… De certeza que está dopada..”. Mal eles sabiam aquilo que eu estava a passar. Estava literalmente a lutar pela minha vida”, contou na referida entrevista.

A lançadora terminou a estreia olímpica em 30.ª e, em Tóquio, foi 25.ª, sempre longe deste 9.º lugar. No entanto, pelo meio houve outro pesadelo com os Jogos envolvidos.

A cinco dias de entrar em prova no Rio 2016, Irina partiu uma perna. Profundamente católica, diz que perguntou “muitas vezes a deus”, o “porquê” daquele azar. E chorou, chorou muito, chorou por temer o fim da carreira desportiva.

A ida para os Açores

Entretanto licenciada em medicina, Irina teve, este ano, uma profunda mudança de vida. Foi para a Terceira, nos Açores. Lá trabalha como médica e treina, num semi-profissionalismo que está longe de ser caso único nesta comitiva nacional em Paris.

Mas há uma razão pela escolha pela Terceira. Na ilha treina com Júlio Cirino, histórico técnico de Teresa Machado, durante muito tempo detentora do recorde nacional do disco que, agora, é de Irina (66,60 metros).

Rodrigues, que tem sempre deus no seu discurso, chama “mestre” a Cirino, quase como se fosse uma relação mais própria das artes marciais. Neste ano de mudança, entre esta conciliação dos lançamentos com a medicina, ela conseguiu um fantástico 4.º lugar nos Europeus de Roma.

JOSÉ SENA GOULÃO/Lusa

Nesta redenção em Paris, Irina ficou perto de fazer ainda melhor. Após três lançamentos, as oito melhores seguiam para os três ensaios finais, discutindo as medalhas e assegurando, desde logo, um diploma olímpico. A portuguesa ficou a escassos 18 centímetros da marca que lhe valeria a passagem.

Na sua derradeira tentativa, quando já sabia do que precisava para ter o desejado diploma, ela arriscou. O lançamento saiu-lhe mal por isso, porque, quando se quer “em demasia”, o disco foge “um bocadinho em excesso em termos técnicos”, explica. Ainda assim, há uma palavra que Irina repete para classificar esta participação: “Gratidão”.

Aos 33 anos, depois da depressão e da lesão, a lançadora já pode dizer que, para ela, Jogos Olímpicos não são sinal de dor, de sofrimento. Podem ser motivo de orgulho.

Terá sido um momento de glória final antes do fim de uma carreira e uma dedicação plena à medicina? Talvez. “Agora tenho de pensar um pouco e pensar como vai ser o meu futuro. É incrível estar nos Jogos Olímpicos, mas temos de preparar um futuro e, acima de tudo, perceber até que ponto é viável continuar”.

Prosseguindo ou não, o que é certo é que, no Stade de France, nesta colossal arena cheia de pessoas, a cabeça de Irina Rodrigues não foi para cantos escuros. Ela parece leve e contente. Há trajetórias pessoais que são a maior das medalhas.

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