Jogos Olímpicos de Paris 2024

“Somos bons a andar de bicicleta, para cantar esquece": o desafinado festejo de Iúri e Rui teve o alto patrocínio dos irmãos Oliveira

“Somos bons a andar de bicicleta, para cantar esquece": o desafinado festejo de Iúri e Rui teve o alto patrocínio dos irmãos Oliveira
JOSÉ SENA GOULÃO/Lusa

A celebração da medalha de ouro no Madison teve como um dos pontos altos o cantar do hino, quando o velódromo se encheu com a forma como Ivo — gémeo de Rui e também ciclista profissional — e Hélder Oliveira gritaram A Portuguesa, levando a prolongados sorrisos dos dois campeões olímpicos. Rui disse que correu para “representar” o irmão gémeo, numa dedicatória que o levou às lágrimas

Não há nada como o conforto em fazermos algo a que estamos habituados. Saber como agir em dado momento, como pisar, que movimentos realizar, conhecer os cantos da casa.

Passadas 48 horas da prata no Omnium, Iúri Leitão era, na cerimónia de entrega de medalhas do Madison, um veterano dos pódios olímpicos. Brincando com essa circunstância, o vianense diz que teve de “ensinar como se faz” a Rui Oliveira: “Disse-lhe que temos de ir com calma, com ordem, só podemos ir quando nos chamarem, que primeiro vamos para trás do pódio, enfim, aquelas cenas básicas”, graceja o sprinter.

O cenário da alegria dos campeões olímpicos pinta-se facilmente. Dois amigos que trocam piadas de medalha de ouro ao peito. Ela é pesada, bonita, reluzente.

Mas Iúri Leitão e Rui Oliveira não são os únicos ciclistas profissionais portugueses em Saint Quentin-en-Yvelines. Oliveira nem é, sequer, o único Oliveira.

Quando o triunfo foi selado, Rui foi para uma das zonas do velódromo próximas das bancadas. Aí, em lágrimas, abraçou-se a Hélder e Ivo, seus irmãos. Este último é gémeo de Rui e, os dois, foram uma espécie de pioneiros deste projeto do ciclismo de pista, alunos brilhantes da fábrica de Sangalhos, os rapazes que, com os êxitos precoces na pista, justificaram a aposta inicial numa disciplina que praticamente não existia em Portugal.


Quando as medalhas de ouro foram entregues, era o momento de se ouvir a Portuguesa. Era apenas a sexta vez em Jogos Olímpicos que o hino se escutava, depois de Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Nelson Evora e Pedro Pablo Pichardo.

Mal as primeiras estrofes soaram, ouviram-se vozes cantando a letra de forma especialmente ruidosa, especialmente desafinada. Bem, não o cantavam: gritavam, berravam, faziam a voz ecoar por todo o velódromo, talvez até chegar ao centro de Paris.

As vozes felizes e orgulhosas eram, justamente, de Ivo e Hélder Oliveira. Perante a euforia dos irmãos, Rui começou a rir-se, apontando para eles. Iúri seguiu pelo mesmo caminho.

Sem a carga solene que por vezes apresenta, o momento do hino foi mais uma dose de festa conjunta, de emoção partilhada. O primeiro ouro que Portugal ganha sem ser numa prova individual tinha de ter um festejo assim, em cooperação e sorrisos partilhados entre o pódio e a bancada.

“Somos bons a andar de bicicleta, para cantar esquece”, comenta Iúri com Rui depois da cerimónia de pódio. “Notou-se a emoção de todos no velódromo. Fizemo-nos ouvir”, diz Ivo Oliveira.

O festejo de Rui com os seus irmãos Ivo (de preto) e Hélder (de branco)
JOSÉ SENA GOULÃO

As lágrimas de felicidade saem, mais do que nunca, a Rui quando fala de Ivo. Ao apontar para ele depois de vencer, diz que “ele também devia estar aqui”. Rui relata que tanto ele como os seus irmãos passaram “alguns anos difíceis”. Houve, mesmo, momento em que o novo campeão olímpico pensou “não vir aos Jogos Olímpicos” para dar o lugar a Ivo, porque o irmão passou ocasiões “ainda mais difíceis do que ele”.

Mas a opção foi outra. Vir e “ser mais forte” para “representar” o seu gémeo “da melhor maneira”. Ele não podia vir, mas eu sabia que ele queria que eu desse o melhor de mim", relata Rui, que foi o escolhido pelo selecionador Gabriel Mendes para fazer equipa com Iúri Leitão.

Ser ciclista profissional é “mesmo isto”, diz Rui Oliveira: “Duvidas de ti imensas vezes, mas passas por um processo que toda a gente passa, pelas incertezas, pelas dúvidas. No final de contas, tens de confiar no teu trabalho”.



O sentimento expresso por Rui, de correr por Ivo e pelos outros membros da seleção de ciclismo de pista que não participaram nos Jogos, foi sentido pelo gémeo Oliveira que estava na bancada. “Eu sei que ele e o Iuri estão a correr por mim”, diz Ivo. “Não só por mim, mas também pelo [João] Matias, pelo [Diogo] Narciso, por todos os que pontuaram para esta fase olímpica. Temos de agradecer a todos. Sem terem todos treinado juntos no velódromo não era possível", explica Ivo Oliveira.

Questionado sobre se acha que os portugueses sabem o que são o Madison e o Omnium, Ivo responde que “não”. Concede que “é uma corrida muito complexa de aprender”, mas que “com um pouco de atenção” se “chega lá”.

“Espero que todos estejam orgulhosos e que olhem cada vez mais para o ciclismo de pista, aprendam a modalidade, que se entusiasmem a ir ver provas porque isto é lindíssimo de se ver e eles mostraram isso hoje”, remata Ivo, corredor da UAE-Emirates, tal como o irmão.

Num certo sentido, se Gabriel Mendes é o ideólogo do projeto do ciclismo de pista nacional, Rui e Ivo são os primeiros executores. Foram eles que confirmaram os primeiros sinais de trabalho bem feito, que ganharam títulos na formação, que ajudaram a desbravar caminho.

Hoje, no histórico 10 de agosto de 2024, um trouxe um êxito histórico ao lado de Iuri Leitão, outro gritou e chorou de fora. Quando trocaram olhares e choraram, era todo o projeto Sangalhos que se emocionava e estava de parabéns.


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