Raven Saunders representa os negros, a comunidade LGBTQ e advoga a saúde mental. No pódio, fez um X com os braços e está a ser investigada
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A extravagante lançadora do peso, com cabelo às cores e máscaras bizarras, foi uma das três atletas mais fortes que Auriol Dongmo na final e no pódio fez aquilo que o Comité Olímpico Internacional parece considerar uma violação da Regra 50 da Carta Olímpica, que não permite qualquer protesto político, racial ou religioso nos Jogos. Mas ela não pede desculpa, porque quer ser a voz das comunidades que representa e das quais conhece todas as dificuldades
Aquele era um dos pódios onde queríamos estar. O pódio do lançamento do peso feminino, onde a portuguesa Auriol Dongmo não entrou por cinco centímetros. No segundo degrau mais alto estava Raven Saunders, a extravagante norte-americana de 25 anos, mulher sem papas na língua, agora sem a sua máscara de Joker que usou durante a prova, mas sim com uma branca imaculada que todos os atletas do Team US and A usam no pódio.
Mas continua lá o seu cabelo com duas cores, verde e lilás, o verde para que todos se lembrem da sua alcunha, “Hulk”. Ela dança no pódio, mesmo sem público, aproveita o momento, a sua primeira medalha olímpica depois da estreia no Rio com um 5.º lugar, que a tornou numa estrela em casa, mas que também foi a sua cruz (mas já lá vamos). Já com a medalha ao peito, naqueles poucos segundos em que os atletas estão autorizados a retirar a máscara para a foto, ergue os braços e com eles faz um X.
E agora o Comité Olímpico Internacional (COI) está a investigá-la por uma suposta violação da Regra 50 da Carta Olímpica, que não permite protestos políticos, raciais ou religiosos nos Jogos. A regra foi de alguma forma relaxada antes de Tóquio 2020, mas nunca para protestos durante as cerimónias de pódio.
Quem olhar para a atitude de Raven antes das competições conhecerá apenas uma lado desta jovem originária da Carolina do Sul. Ela dança, olha de forma desafiadora para a câmara, é extravagante, com piercings espalhados pela cara agora parcialmente tapada por óculos tamanho XXL, que nem espelhos retrovisores, e máscaras com motivos também eles bem berrantes. Quem a vê assim, talvez não saiba o que ela passou para aqui chegar.
Depois do Rio 2016, onde competiu com apenas 20 anos, Raven tornou-se numa espécie de estrela. Apesar de não ter sido medalhada, foi recebida em festa na sua cidade natal de Charleston, os compromissos públicos eram mais que muitos e em menos de nada também teve de regressar à Universidade do Mississippi, onde competia e estudava.
Não teve tempo para parar, relaxar, colocar os pés no chão após o Rio. Rapidamente voltou à rotina de estudar, treinar, estudar e treinar. Pouco depois sofreu algumas lesões graves. E dois anos depois, tudo culminou num grave episódio depressivo, ao ponto de ter pensado no suicídio.
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Tal como contou à CNN, um dia em janeiro de 2018, quando se dirigia para a universidade, seguiu em frente quando passou os portões da escola. Na sua cabeça estava uma certeza: ia enviar uma mensagem a uma antiga terapeuta, a única pessoa com quem tinha à-vontade para falar da sua precária saúde mental. Caso ela respondesse, ia dar mais uma oportunidade à sua passagem terrena. Caso isso não acontecesse, iria lançar o carro na escarpa mais próxima.
Felizmente, a terapeuta respondeu.
Saunders contou depois com a ajuda da sua universidade para voltar a ter apoio psicológico. E meteu na cabeça que viria a Tóquio para ganhar uma medalha. Na prova, só não foi melhor que a chinesa Lijiao Gong, um nível acima de toda a gente, a única a passar os 20 metros. Talvez Raven também o tivesse feito se um erro técnico no segundo lançamento não tivesse tornado nula aquela tentativa. A prata, com 19.79m, foi no entanto efusivamente festejada. Porque ela sabe que este também é o palco que ela precisava para fazer ouvir a sua voz.
“Ser capaz de sair daqui com uma medalha e inspirar tantas pessoas da comunidade LGBTQ, tantas pessoas que lidam com saúde mental, pessoas da comunidade afro-americana, damn, eu pertenço a muitas comunidades...”, brinca a atleta na zona mista do Estádio Olímpico de Tóquio, onde falou para muitos jornalistas norte-americanos, mas também para ingleses, chineses e até portugueses, que por ali ficaram para o show de Raven Saunders depois de falarem com outras finalistas.
“Há tantas pessoas que nos têm como referência. Porque há muitas pessoas por todo o mundo que não têm uma plataforma ou uma voz que fale por elas. E nós temos de as representar”, sublinha ainda.
Para falar, Raven, que assumiu a homossexualidade ainda na adolescência, tira a máscara, os óculos. Nos pés já não tem os sapatos de competição - que estão na sua mão esquerda -, mas sim uns Air Jordan 13 brancos e verdes. Verdes, de novo, por causa de Hulk, a personagem que lhe dá a alcunha que ganhou na escola secundária, à conta da sua força e determinação.
“O Hulk é uma espécie de alter ego para mim. Houve uma altura em que tinha dificuldades em distinguir quando o Hulk estava a sair de mim ou não estava a sair. Mas nesta minha viagem, principalmente quando comecei a dar importância à minha saúde mental, aprendi a compartimentar, da mesma forma que o Bruce Banner aprendeu a controlar o Hulk, a fazer com que o Hulk saísse só nos momentos certos. Isso também lhe deu paz”, explica a atleta, com aquele seu jeito gingão, ainda a desfrutar daquela medalha, falando com a desenvoltura de quem tem todo o carisma, mas também de quem passou por muito até decidir assumir e lutar contra os seus demónios.
A sua maior fã
A paz interior é um processo. Raven diz que tem a certeza que depois de todo este remoínho de emoções no Japão que terá de voltar à terapia, porque para aqui estar teve de investir tudo o que tinha “física e mentalmente”. Ainda assim, Saunders diz que gosta de ser a sua maior fã e daí todo aquele espalhafato antes de começar a competir.
“Gosto de ser a minha maior apoiante. Mas não posso sequer repetir as coisas que estava ali a dizer na pista porque senão vocês vão ter de colocar um piiiiii na maior parte das coisas. Mas basicamente o que eu estou ali a dizer é ‘é tua, é tua, és uma campeã’. São coisas para me dar aquela confiança, aquele poderio”, explica, numa conversa em que falou também abertamente dos problemas financeiros que passou, dos sacrifícios que fez para ser uma das melhores em Tóquio: “Felizmente agora tenho alguns patrocinadores e quando voltar aos Estados Unidos não estarei mais na bancarrota, babyyyyyyy”.
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Mas nem sempre foi assim.
“Alguém um dia disse que o meu valor de mercado era entre 1 e 3 milhões de dólares. Então coloquei no Twitter uma cópia da minha conta bancária, que tinha 538 dólares negativos. Por isso quando eu digo que investi literalmente tudo nisto, neste objetivo, eu quero dizer mesmo que investi tudo”, revela ainda, antes de assumir que quer ser para outras pessoas o que Venus e Serena Williams foram para si: “Elas eram aquelas miúdas negras com contas no cabelo, sabem? Sem pedir desculpa a ninguém. Isso inspirou-me quando era criança”.
Um gesto para todos os oprimidos
O COI não parece, no entanto, compadecer-se com a história de Saunders, que poderá mesmo ser sancionada. Depois do pódio, a atleta disse que o X que representou com os braços significava o “lugar em que todos os oprimidos se encontravam”.
E na reação às ameaças do organismo, Raven respondeu da única forma que conhecemos: sem paninhos quentes e com humor à mistura.
“Eles que tentem tirar-me a medalha. Eu fujo fronteira fora, mesmo que não saiba nadar”, escreveu no Twitter.
Será improvável que a sanção chegue tão longe e nos entretantos Raven já cumpriu o seu objetivo de colocar em evidência as comunidades que representa e as dores pelas quais passou e passa, que são comuns a tanta gente sem voz e sem o seu palco.