Jogos Paralímpicos

Ouro em Atenas, ouro em Paris: 20 anos depois, Cristina Gonçalves é campeã paralímpica no boccia (com medições de compasso e tudo)

Ouro em Atenas, ouro em Paris: 20 anos depois, Cristina Gonçalves é campeã paralímpica no boccia (com medições de compasso e tudo)
Jeremy Lee

Em 2004, a portuguesa de Lisboa esteve em Atenas a ganhar o ouro na prova por equipas do boccia. Em 2024, à sexta participação em Jogos Paralímpicos e aos 47 anos, Cristina Gonçalves voltou a conquistar a melhor das medalhas num domingo glorioso para Portugal, que já tivera o ouro de Miguel Monteiro no lançamento do peso e o bronze de Diogo Cancela nos 200 metros estilos de natação

Cristina Gonçalves começou a festejar, uma breve celebração com ambos os punhos fechados, os braços em ângulo reta, um ligeiro solavanco na cadeira de rodas. Foi ela a começar e, incumbida de arremessar a ‘jack’, nome dado à única bola branca que guia um jogo de boccia, logo depois diligenciou que a sua primeira bola vermelha rolasse até encostar as beiças no alvo. Essa tentativa inaugural em que a portuguesa desenhou, com mestria, o seu plano, chegou para suplantar as seis bolas azuis lançadas por Soyeong Jeong, em desvantagem durante todo primeiro end da final.

O boccia é, à sua maneira, uma disputa que eleva a estratégia aos píncaros: um jogo tem quatro rondas (os tais ‘ends’), cada jogadora tem a honra de iniciar dois, decidindo onde colocar a ‘jack’ branca e lançando a sua primeira bola de cor para tentar colocá-la o mais perto possível do alvo. Cada interveniente dispõe de seis bolas para lançar, quatro minutos para o fazer e tem a vez quem for dono dos pertences que durante a contenda estiverem mais longe do alvo. As regras ditam que os pontos são calculados consoante a posição das bolas de cada jogadora em relação ao jack e às da adversária.

Na final paralímpica da categoria BC2, a caça de um prejuízo foi quase sempre da sul-coreana.

A calma de Cristina Gonçalves jamais concedeu veleidades. De olhar compenetrado, óculos a focarem-lhe a pontaria e o cabelo pintado de laranja e rapado nas têmporas, a portuguesa foi mestre a tomar conta das operações. Ganharia, também, o end 2 iniciado por Soyeong Jeong, oposta na estratégia - ao invés da portuguesa, que lançou a branca uns três metros para longe nas suas rondas, a sul-coreana preferiu ter a ‘jack’ bem mais perto dos locais de lançamento. Nos três primeiros ends, apenas a portuguesa de Lisboa pontuou (1, 2 e 1, respetivamente),

Jeremy Lee

A cada boa jogada, havia uma ovação na arena. Ouvia-se “Portugal, Portugal, Portugal, respira fundo, vai Cristina.” Há portugueses e franceses a festejarem em conjunto. Bandeiras que esvoaçam e dão cor à arena, que se pintou de verde e vermelho. Grande parte da comitiva está colada a apoiar a Cristina. Carla, David, André, Ana Oliveira, José e Ana Sofia Costa, do boccia, Beatriz Monteiro do badminton. Vários treinadores e staff, toda a gente em apoio à quarentona atleta, senhora experiência da comitiva.

Esta era um terreno conhecido para a portuguesa, familiarizada com disputas por medalhas nesta década, na anterior e também na prévia. Em Atenas, há 20 anos, Cristina saiu dos Jogos retornados às origens gregas com um ouro na prova por equipas. Paris estava a dar-lhe a oportunidade de conectar duas proezas tão afastadas na máquina do tempo.

No quarto e último end, quando a sul-coreana apostou em deixar a ‘jack’ ainda mais perto das jogadoras, um esgar de nervosismo notou-se na portuguesa, a quem a primeira bola escorregou da mão esquerda. Cristina Gonçalves atinou, depois, a pontaria, montou uma muralha de bolas vermelhas em torno da branca. Da bancada, às tantas, ouviu-se da colega Ana Correia, em sotaque nortenho, um “vai Tininha que é teu, vamos”.

Com o tempo a evadir-se, Soyeong Jeong, com uma das suas bolas azuis perto do alvo, mas a precisar de pontos como de água para a boca, teve a sua mão a fugir ao relógio - quando os seus quatro minutos já se tinham esgotado, lançou a última bola que a árbitra ainda tentou impedir que chocasse com as bolas legitimamente postas no chão.

Durante uns largos minutos, a final suspendeu-se devido a vários atos. Primeiro, a árbitra tentou explicar o erróneo do sucedido a Jeong, depois veio o chefe dos árbitros ouvir as explicações, de seguida chamou-se a treinadora sul-coreana à tertúlia e, por fim, a juíza do jogo pôs-se de cócoras, rente ao chão, a medir a distância das bolas umas das outras com um compasso, ao centímetro e milímetro. Era um VAR à moda do boccia, em formato analógico. As medições dariam um ponto a Soyeong Jeong, mas apenas um, insuficiente para contrariar os quatro já no bolso da portuguesa.

E o clímax, por fim, pôde ser acolhido por Cristina Gonçalves com os gritos efusivos de vários atletas portugueses na bancada a celebrarem com ela. Mariana Nunes, a sua técnica de vida diária, ali mesmo ao lado a acompanhar a final, deu-lhe a bandeira de Portugal que ela esticou afincadamente com os braços, abanando-a a preceito, agitando para que todos vissem a vitória dos 46 anos de uma mulher na sua sexta participação em Jogos Paralímpicos, a sorrir como uma criança que sente a adrenalina das primeiras vezes.

Não era, de todo, o caso da antiga campeã europeia de boccia, que ao ouro por equipas de Atenas juntou a prata de Pequim e o bronze do Rio de Janeiro (na segunda-feira começa a prova coletiva em Paris). Mas este 1 de setembro de 2024 permanecerá como bordado a glória na roupagem do desporto português. O país sorriu, neste domingo, com duas medalhas de ouro (a outra, de Miguel Monteiro no lançamento do peso) e uma de prata (de Diogo Cancela, nos 200 metros estilos de natação).

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