Para quem gosta de futebol - vou repetir, só para ficar bem claro: onde se lê "futebol", não deve ler-se "clubes" -, poucas coisas são tão gratificantes como ouvir os protagonistas falar sobre o mais importante de tudo: o jogo. Kevin De Bruyne fê-lo recentemente lá fora, no "The Players' Tribune", e Bruno Fernandes fê-lo cá dentro, segunda-feira à noite, na SportTV.
Entre outros pormenores deliciosos, o capitão do Sporting contou uma conversa que teve com Luiz Phellype, antes do jogo frente ao Aves, sobre o espaço que o avançado deveria atacar para marcar golo. Ora Bruno queria que Luiz se antecipasse ao defesa adversário, na zona do primeiro poste, mas Luiz dizia a Bruno que não queria sair do meio para não se desenquadrar com a baliza. Foi então que Bruno mostrou Ayoze, do Newcastle, a marcar assim ao Leicester e, curiosamente, acabou por ser mesmo assim que Luiz marcou ao Aves.
Vem isto tudo a propósito de, claro, Cristiano Ronaldo. É certo que o golo não foi ao primeiro poste, mas a forma como o avançado português sabe identificar e atacar os espaços disponíveis na área é verdadeiramente sublime. Fê-lo na Holanda, quando arrastou Blind para fora da posição e depois acelerou para ir aproveitar o espaço que ele próprio criou, marcando o 1-0 de cabeça; e fê-lo esta noite, em Itália, quando aproveitou um canto muito mal defendido pelo Ajax para fazer o 1-0 para a Juventus.
Aos 28 minutos do Juventus-Ajax, parecíamos estar perante mais uma daquelas noites europeias de sonho para Ronaldo e de hábito para a Juventus, que costuma marcar presença frequentemente nas meias e nas finais da Liga dos Campeões.
É que, como dizia anteriormente, o Ajax tem muitas dificuldades defensivas, mais lá atrás, particularmente pelas referências individuais que prefere assumir no controlo dos lances, tanto em bola corrida como em bola parada - foi assim que sofreu na Holanda e foi assim que sofreu em Itália.
E, mesmo lá à frente, a equipa de Erik ten Hag foca-se frequentemente nas referências individuais, ainda que esse seja um objetivo ulterior de um princípio anterior: pressionar o adversário na sua construção para não lhe permitir conforto no jogo.
E se há coisa que a Juventus não esteve, esta noite, em Turim, foi confortável - mesmo quando esteve em vantagem no marcador, à conta do goleador do costume (já são 126 golos na Champions).
É que os holandeses têm algo que os distingue - tão bem explicado, esta semana, por Jordi Cruyff, filho de Johan, em texto publicado no "El País": "Na formação do Ajax, há uma máxima que te metem na cabeça desde o primeiro dia: 'Se és tímido, aqui vai ser complicado para ti'. Cultivam uma arrogância futebolística, no bom sentido: somos o Ajax e este é o nosso estilo. Tens de ser corajoso. E essa premissa deu frutos: gerações de jovens atrevidos, atléticos e dinâmicos".
Coragem.
No fundo, é só isso: coragem para querer assumir o jogo, coragem para ter a bola sob pressão, coragem para construir desde trás, coragem para se associarem aos colegas (mesmo nos espaços mais reduzidos), coragem para... jogar.
Há quem lhes chame românticos, há quem lhes chame parvos - mas esta é, claramente, a filosofia que tem permitido ao clube ser o que é no panorama do futebol mundial. Depois de um período de algum desvario, o Ajax voltou às raízes, cortesia de uma série de ex-jogadores que pegaram no clube e que, claro está, se inspiraram em Cruyff para não só corrigir o que não andava a ser bem feito na formação, como ainda adicionar-lhe mais uns toques de experiência (Blind) e qualidade exterior (Tadic ou Neres).
Voltando ao essencial: contra o Bayern, contra o Real Madrid, contra a Juventus, o Ajax teve sempre aquilo que marca a sua filosofia.
Coragem.
O descaro com que estes miúdos encaram os adversários não só cai bem entre os adeptos, como caiu bem com os deuses do futebol, porque, aos 34', depois de um ressalto num remate de Ziyech, de Beek viu-se sozinho perante Szczesny... e fez o 1-1, contando também com a preciosa ajuda de Bernardeschi, que demorou demasiado tempo a encurtar o espaço após um passe para trás e acabou por ser o único a colocar o adversário em jogo.
À entrada para a 2ª parte, o Ajax abalava a experiência da "senhora", que já não parecia assim tão segura de si quanto isso. Já com Kean no lugar de Dybala, que foi titular, no lugar do lesionado Mandzukic (mas foi o lesionado Chiellini a fazer mais falta lá atrás...), mas saiu por lesão, a Juventus de Allegri nunca pareceu por cima do jogo, bem ao contrário do que aconteceu perante o Atlético de Madrid, na eliminatória anterior.
Aliás, com exceção para um remate de Kean, após passe de Ronaldo, a 2ª parte foi totalmente holandesa - e a Juventus só não se viu em desvantagem mais cedo porque Szczesny fez um par de grandíssimas defesas, impedindo os golos de Tadic e de Beek.
Só que, aos 67', nem Szczesny, que bem se atirou, nem Rugani nem Alex Sandro, que bem saltaram, conseguiram impedir a cabeçada impiedosa do jovem Matthijs de Ligt para o 2-1 que dava uma vantagem dupla aos holandeses, devido aos golos marcados fora.
Já com João Cancelo em campo, por troca com De Sciglio, a Juventus nunca pareceu particularmente perto de conseguir sequer empatar o jogo, com o Ajax a aparecer bem mais frequentemente na área adversária - Neres até chegou a marcar, mas o golo foi invalidado por fora de jogo.
Dois anos depois de ter chegado à final da Liga Europa (perdeu com o Manchester United de José Mourinho), o mesmo Ajax que não é campeão holandês desde 2014 mas mantém a mesma filosofia de sempre, volta a aproximar-se das grandes decisões, e com "repetentes" no onze: Onana, De Ligt, Veltman, Schone e Ziyech.
E, 22 anos depois, volta às meias-finais da Liga dos Campeões, apostando na formação e em ideias que encantam qualquer adepto cansado do futebol milionário. Já Cristiano Ronaldo, impotente e até injustiçado, terminou o jogo a 'varrer' Veltman e a ver um cartão amarelo. Roubaram-lhe o trono. Para o ano há mais.
Agora deixem lá os miúdos - e os românticos - sonhar.