Liga dos Campeões

Nada temam, chegou Carlo Ancelotti, o treinador sem estilo. E ele está calmo, como sempre

Nada temam, chegou Carlo Ancelotti, o treinador sem estilo. E ele está calmo, como sempre
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Impassível e fleumático, o italiano a quem não se identifica uma forma de jogar, vai para a sua sexta final da Liga dos Campeões (este sábado, às 20h, TVI) como treinador. Ancelotti não grita com os jogadores nem acredita em chicotes, pede-lhes a opinião a meio das partidas sobre quem deve substituir e prima por ter conversas à mesa, à boleia de comida. ‘Carletto’ adapta-se às circunstâncias e cedo aprendeu, com Roberto Baggio, a não forçar a suas crenças sobre elas. É o treinador com mais jogos e sucesso na maior prova de clubes da Europa e o segredo, diz ele, é ter o futebol como paixão, não como uma obsessão

O autocarro da Juventus tinha o motor já a ronronar, porém, as rodas imóveis. Lá dentro, os jogadores aguardavam e o treinador, mais do que impaciente, sobretudo desgostado por todos estarem à espera do atraso de um homem só. Carlo Ancelotti acercou-se do condutor e disse-lhe “acabou, vamos embora”, havia limites, mas o responsável pelo volante ficou parado, receoso em obedecer. Paolo Montero, defesa central uruguaio, foi então falar com o treinador para lhe dizer, face à sua insistência em arrancar com a viagem, que ele não estava “a perceber” a delicadeza do berbicacho: “Sem o Zidane, não vamos a lado algum.”

O italiano parou por um momento, a sua inopinada sobrancelha esquerda por certo se ergueu na testa e ele pensou que talvez fosse sensato, realmente, escutar o aviso.

A decisão não é estranha. ‘Carletto’ é hoje um homem ponderado e aberto a sugestões, o tempo abastou-o de paciência e o italiano ganhou em fleuma o que foi perdendo em celeumas. Nem sempre foi assim e a versão atual do treinador, ele próprio narrador do episódio na Juventus, está longe de quem o italiano era então.

Uma ou duas épocas antes, em finais dos anos 90, o bem-parecido técnico do olho azul, semblante rechonchudo, tinha firmes vigas de betão nos ideais. No Parma, onde se aventurou na primeira experiência a treinar na Série A, torceu o nariz à contratação de Roberto Baggio pela mesma razão que abriu a porta a Gianfranco Zola para o pequeno criativo sair do clube: no ideário de Ancelotti, a equipa haveria de jogar em 4-4-2, com dois avançados e sem um número 10 declarado. “Eu tinha um sistema”, contou, já sexagenário, ao “The Times”, sobre o dia em que achou por bem dizer a um dos “melhores jogadores do mundo” que “não havia espaço” para ele.

Não era uma questão de haver, antes da disposição do ‘Carletto’ do século passado em arranjar forma de encaixar Baggio na equipa. E o rabo de cavalo de ouro do futebolista-budista foi marcar 23 golos para Bolonha. Cheio de noções calejadas na cabeça de quando fora treinado por Arrigo Sacchi no AC Milan, transformados, depois, quase em dogmas aquando do Mundial de 1994, onde aceitou ser adjunto do mestre da defesa à zona, Ancelotti era inamovível nas convicções futebolísticas. Em retrospetiva, era ingénuo também, não demorando a remoer-se nas culpas de se ter guiado nos primeiros tempos de treinador pela sua visão afunilada.

As histórias de Carlo Ancelotti a lidar com génios cujas camisolas tinham um ‘10’ estampado nas costas durante o tempo de moldagem do italiano enquanto treinador, no que seria uma génese sem sucessos de maior, definiram a figura que se lhe reconhece hoje.

Ele ainda misturava a camisa e a gravata com o ocasional boné, porventura vestido com um casaco de fato de treino por cima, mas sempre já munido de pastilha para mastigar mecanicamente no banco, quando a renúncia a ver o que tinham diante dos olhos e ir além das suas convicções o tramou. “Para mim, não há estilo. Não há uma ‘forma de jogar Ancelotti’. O meu estilo não é reconhecido, porque eu mudo”, disse Carlo Ancelotti, esta semana, na mesma entrevista, ao explicar-se em moldes que seria impensável ouvi-lo confessar há quase 30 anos.

Assim que se predispôs a mudar, ‘Carletto’ começou realmente a evoluir rumo ao treinador que escolheu “Liderança Silenciosa” para título da sua autobiografia e vai, este sábado, sentar-se no banco da sua sexta final da Liga dos Campeões, a segunda com o Real Madrid.

Nenhuma dessas finais surgiu durante a estada na Juventus, onde Zidane o fez ver a luz. A primeira apareceu no AC Milan, onde cedeu às valias que vislumbrou em Andrea Pirlo se o puxasse para trás no relvado, um ‘10’ adaptado à base do meio-campo com dois devoradores de quilómetros ao lado, um par de criativos à frente e um avançado por diante. Com a célebre tática ‘Árvore de Natal’ - quatro defesas, três médios, dois criativos e um avançado - ganhou uma Champions e perdeu outra, formou uma equipa lendária nos rossoneri onde, já hospitaleiro da cedência aos talentos dos jogadores, aprendeu a ter a leveza na cintura para jogar com as vontades de presidentes-Sol, levados pelos seus egos e manias.

Em Milão moldou o Ancelotti que abria a porta do balneário a Silvio Berlusconi e não fez frente com delongas, mais tarde, a Roman Abramovich, o milionário sem fundo do Chelsea que exultou com a dobradinha conseguida pelo italiano, à primeira época, mas apressou-se a despedi-lo ainda no último jogo da segunda temporada, ainda no corredor do estádio - o oligarca russo, mais tarde, catalogou essa decisão como o seu maior arrependimento. Em Turim, nos primórdios da carreira, a família Agnelli, dona da Juventus e da Fiat, já o despedira literalmente durante o intervalo de um jogo.

Trocou Londres por Paris, onde questionou Nasser Al-Khelaïfi, hoje um quase patrão do futebol europeu, como era possível o PSG não ter, em 2011, uma cantina montada para os jogadores partilharem refeições. Porque ele, vindo ao mundo na pacatez de Reggiolo, filho de agricultores que criavam porcos e produziam queijo, cresceu com as pequenas cimeiras tidas à mesa quando a família humilde se juntava para refeições. Nos últimos tempos, cada entrevista que dá a um jornal parece vir com uma condição descrita cuidadosamente por quem vai ao seu encontro para lhe fazer perguntas: a conversa fluir à mesa, num restaurante escolhido pelo treinador, onde se fale no idioma da comida e da bebida.

Carlo Ancelotti terá apreciado a tradição do repasto após os jogos em Munique, onde sucedeu a Pep Guardiola no Bayern, já depois da tranquilidade que se conta existir em Valdebebas, o centro de treinos do Real Madrid que treinou um par de épocas no pós-José Mourinho e causou boa impressão em Cristiano Ronaldo, que o temera ao primeiro vislumbre: há a história de o português, ao saber que o italiano seria o seu próximo treinador, ter ido ao Google pesquisar fotografias dele e, vendo a saliente barriga, a postura professoral e os trajes cavalheirescos, julgou que vinha aí um treinador autoritário, para mandar.

OLI SCARFF

O engano de Ronaldo foi redondo que nem a barriga de Ancelotti. Em Madrid e Munique colecionou elogios ternos, juntou alguns em Nápoles e outros tantos no lado azul de Liverpool, já refastelado nele próprio, a ser como é, fleumático até com explosões emotivas a rodeá-lo. Por exemplo, quando o Everton marcou o 5-4 para vencer o Tottenham, em casa, num entusiasmante jogo da Taça de Inglaterra, a reação de ‘Carletto’ foi apenas soprar para o copo de chá escaldado que tinha na mão enquanto um pandemónio festivo acontecia à sua volta. “Estava calmo e tranquilo porque tinha o copo de chá na mão, mas, sobretudo, estava cheio de frio”, justificou, com o ar mais natural do mundo.

Com esse estado de graça, a existir perante todos nós com a serenidade de um monge ancião, regressaria a Madrid, em 2021, para completar no Real a última camada do treinador que é hoje: amigo dos jogadores, sem que um ápice futebolístico o pareça perturbar, mestre a encontrar uma maneira de atinar os jogadores numa equipa que funcione.

E calmo, sempre calmo.

O por demais visto e conhecido cenário de Carlo Ancelotti, ele com camisa, fato, gravata e um colete a suster elegantemente a barriga, é a peça de mobília central na sala do Santiago Bernabéu. Já campeão nos cinco países que guardam os melhores campeonatos na Europa, vencedor de quatro edições da Champions, o italiano retorna no sábado, a Londres, para tentar a sua sétima Liga dos Campeões - porque ainda tem as duas ganhas enquanto jogador.

Era um operário do meio-campo, de pé certeiro, com a fineza justa, mas sem artifícios. E magro, daí o ‘Carletto’, antes apropriado e mantido ao longo da sua carreira pela ternura que parece emanar em qualquer pessoa que o mencione.

Durante a sua escalada no futebol conquistou corações e limou, em Madrid, o apogeu da sua rendição à utilidade. Ancelotti vive completamente maleável nas crenças futebolísticas, sem uma pegada digital sua, de treinador, imediatamente reconhecível em campo nesta era que tem o rock and roll das transições de Jürgen Klopp, o tiki-taka que Pep Guardiola não gosta que chamem ao seu jogo de muitos passes, as marcações ao homem a campo inteiro de Gian Piero Gasperini ou as inegociáveis saídas curtas da área, a cortejar de perto o risco com o guarda-redes, da nova vaga de técnicos como Roberto de Zerbi. Nestes treinadores há uma impressão digital flagrante, as suas equipas são facilmente reconhecíveis enquanto nos passam à frente dos olhos.

No futebol de ‘Carletto’, nem por isso.

A discreta mão do italiano vê-se no efeitos que tem nos outros. Em Toni Kroos, o alemão que o treinador brilhantemente protegeu esta época, devolvendo-lhe as rédeas da bola com dois cavalos de corrida (Camavinga e Valverde) a escudá-lo, que desvendou, em 2022, como Ancelotti “pediu aos jogadores veteranos” então no banco da meia-final da Champions, contra o Manchester City, por conselhos. O treinador estava indeciso quanto às substituições a fazer no prolongamento e despiu-se de pruridos: “No final, é ele quem decide, mas claro que está interessado na nossa opinião. Isto descreve perfeitamente o treinador que é e porque trabalha tão bem com esta equipa.”

John Terry, o capitão de Ancelotti no Chelsea, disse em tempos que o italiano foi o único técnico que apanhou a “perguntar coisas aos jogadores e a dar-lhes alguma responsabilidade”. Robert Lewandowski, com quem coincidiu no Bayern de Munique, descreveu-o “quase como um tio”. Já desfeito em admiração depois de o recear pelas aparências, Cristiano Ronaldo chegou a elogiar “a pessoa sensível” que ‘Carletto’ é, desejando que “todos os jogadores [tenham] oportunidade de trabalhar com ele”. Vinícius Júnior, o craque que hoje estima e lima no Real Madrid, gaba como evoluiu “mais” desde esta primavera do que em toda a época anterior, porque Ancelotti o convenceu, à sua maneira, a jogar “mais por dentro”, enquanto avançado sem poiso fixo em vez de extremo colado à linha.

Carlo Ancelotti explicou como o faz ao “The Times”, paciente e desenvolto a narrar sobre artimanhas que são comuns os treinadores quererem esconder por verem espionagem em todo o lado: “Adaptamo-nos sem tornar os jogadores desconfortáveis. O Vinícius não gosta de jogar por dentro, então não o vou forçar. Tenho de lhe dar liberdade. Sempre foi fantástico no um para um, mas ensinei-o a ser mais efetivo ao centro. Ele é rápido, é muito talentoso, mas tem de ultrapassar duas pessoas na faixa para ter um remate. Com esse movimento, no centro do campo, com um toque pode marcar um golo.”

No seu estilo professoral, a adaptar-se não para sobreviver, mas para que tudo funcione em harmonia em seu redor, o italiano, aos 64 anos, vai estar na sua 9.ª final da Liga dos Campeões, prova na qual nenhum treinador tem mais jogos ou títulos do que ele. Pode ser que Carlo Ancelotti, em Wembley, se levante do banco, masque a pastilha, ponha uma mão na cintura e gesticule algo, calmamente. Vai certamente franzir a testa e enrugar a pele com o empurrão da sobrancelha levantada (apenas essa). Este sábado, antes da final, só quer “desfrutar de brócolos, salmão, massa e uma sesta”. As ânsias e os “suores frios”, disse ele, só depois, já no estádio.

Assim é ‘Carletto’, um apaixonado por futebol que não é obcecado por futebol, receita, garante, que o livra de nervos maiores. No balneário, vai focar-se em “instruções táticas”, mais defensivas certamente, porque, a atacar, gosta de dar “pouca informação” e fica-se por aí - afinal, “o que lhes [pode] dizer?” Muita coisa, mas Ancelotti prefere o necessário para, mais tarde, tirar uma fotografia, a fumar um charuto, com os miúdos que treina, ou desafiar um deles (Camavinga), ao microfone, diante de milhares de adeptos, para um baile durante as celebrações da conquista da liga espanhola.

Esperem tudo do ‘tio’ Ancelotti, à exceção de berros e desvarios com os jogadores. “Quanto mais gritares, menos eles ouvem”, assegura. A razão está do seu lado.

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