Estamos em junho de 1976. Muhammad Ali, a lenda do boxe antes conhecida como Cassius Clay, está no último fôlego da sua carreira. Meses antes, em outubro de 1975, derrotara Joe Frazier no mítico combate de Manilla, mantendo o título mundial. Agora, o plano é retirar-se do boxe até ao final do ano.
Com o espetro da reforma a aproximar-se, parece apostado em ser figura de cartaz em combates promocionais com estrelas de outras modalidades, em troca de muitos milhões. No primeiro dia do mês, interrompe um combate de wrestling e provoca um dos intervenientes, Gorilla Monsoon, dançando e desferindo alguns murros na direção deste. Acaba lançado ao tapete e retira-se da luta sem glória.
A curta aparição serve de aquecimento para o muito aguardado combate com o wrestler japonês Antonio Inoki, a 26 desse mês. Cerca de um ano antes, o campeão mundial de boxe cruzara-se numa festa com o presidente da Federação Japonesa de Wrestling Amador, Ichiro Yada, e lançara-lhe o desafio. "Há algum lutador asiático capaz de me enfrentar? Se me vencer, dou-lhe um milhão de dólares". Era uma provocação, mas a imprensa nipónica leva-a a sério e a ideia vai mesmo para a frente. Os patrocinadores de Inoki ligam ao agente de Ali com uma proposta irrecusável: seis milhões de dólares por um combate no Japão com o especialista em luta livre (que receberia metade daquele valor, três milhões de dólares).
"Não haverá outro Pearl Harbor! Muhammad Ali está aqui! Não haverá outro Pearl Harbor!", proclama o pugilista à chegada ao Aeroporto Haneda, em Tóquio, numa das suas famosas tiradas. Porém, no combate, o norte-americano é muito menos entusiástico. Em 15 assaltos, consegue acertar apenas um par de socos no adversário e, em muitos momentos, parece mesmo evitar o confronto com este. Inoki surpreende-o com a sua estratégia: permanece quase todo o tempo deitado no ringue, com as pernas erguidas, evitando os murros de Ali e acertando-lhe com pontapés nas pernas. O combate é uma nulidade e, no final, os juízes decretam um empate. Frustrados com o pobre espetáculo oferecido, os espectadores pedem o dinheiro de volta. "Money back! Money back!", gritam.
Aos jornalistas, Ali queixa-se de que não podia combater um homem que passava a vida no chão e garante que são bem verdadeiras as dores que sente na perna devido aos golpes do adversário. As botas do japonês provocaram-lhe um golpe na perna que acabaria por infetar e ainda dois coágulos. O combate pode ter parecido uma farsa, mas o caso é sério, assegura o seu médico, Ferdie Pacheco: a perna pode mesmo ter de ser amputada, o que acabaria por não acontecer.
Em setembro, dois meses depois do combate, Ali anunciava que ia pendurar as luvas para se dedicar à fé islâmica. Voltaria aos ringues no ano seguinte e, em fevereiro de 1978, tornar-se-ia o primeiro pugilista a sagrar-se campeão do mundo três vezes. Acabaria por retirar-se em definitivo em 1981.
Inoki seguiria as pisadas do pai na política: foi eleito para o Parlamento japonês e, durante a Guerra do Golfo, viajou para o Iraque e negociou com Saddam Hussein a libertação de reféns japoneses. Há um ano, deu uma entrevista à revista "Veja" a recordar o combate. "Passados 40 anos, o mundo valoriza-nos com a mais alta admiração por aquela luta épica, a maior luta do mundo das artes marciais, e a única palavra que expressa meu sentimento pela oportunidade é gratidão”.
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