Modalidades

Paulo Camacho, a esperança da natação que se cansou de treinar e fugiu

Paulo Camacho tem 47 anos e é antigo recordista nacional dos 100 metros mariposa
Paulo Camacho tem 47 anos e é antigo recordista nacional dos 100 metros mariposa
Gregório Cunha

Nadar é “sofrimento, dor e agonia”, nadar são treinos diários de quilómetros, nadar é um lugar solitário. Paulo Camacho, 47 anos, antigo recordista nacional dos 100 metros mariposa e atleta olímpico em Seul, está de volta à piscina, mas como treinador do Clube Naval do Funchal. Como atleta, decidiu dizer adeus, de um dia para o outro, e até acabou em tribunal por consumo e tráfico de haxixe: “Quis fazer o que os jovens fazem: namorar, sair à noite. Aquilo entre os 21 e 22 anos descambou um bocado”

Marta Caires

Jornalista

A natação deu-lhe quase tudo, os bons e os maus momentos. Os tais de que fala sem nunca falar abertamente. E a história do miúdo dotado da praia de calhau da Ponta Gorda começa lá atrás, no início dos anos 80, quando as férias grandes duravam três meses e não havia melhor do que mergulhar das rochas e nadar.

Paulo Camacho não entra numa piscina para treinar há anos, “não é que tenha demónios”, mas ainda não está preparado. Os treinos, as provas, os recordes, tudo isso ainda mexe com o antigo recordista nacional de 100 metros mariposa, atleta olímpico em 1988, membro da seleção portuguesa nos Mundiais de 1991 e referência de uma geração de nadadores. Hoje treina a equipa principal do Clube Naval do Funchal e leva uma vida normal, simples, mas, na Madeira, ainda é o Paulo Camacho. Não há quem não tenha ouvido falar do nadador, das suas conquistas e dos anos em que se cansou da natação, em quis ser como os outros e viver os 20 anos, namorar e sair à noite.

A história, como conta o próprio, começou muito antes de Seul. “Lembro-me muito bem, foi na praia da Ponta Gorda, aqui no Funchal, onde muitas pessoas tinham umas barracas de praia para passar férias. O meu pai construiu uma. De barraca passou a casa de cimento e nós passávamos os três meses de férias lá. O meu pai dormia lá e vinha para o Funchal trabalhar, nós ficávamos na praia”. Foi lá que uma antiga nadadora do Marítimo, a Carmo de Sousa, irmã de uma campeã nacional de natação, a Júlia de Sousa, o viu a nadar e dar mergulhos das rochas. “A Carmo de Sousa aconselhou o meu pai a inscrever-me nas escolas o golfinho de ouro do Marítimo. Eu tinha nove anos e, no fim desse Verão, ganhei as provas em que entrei no torneio de encerramento”.

O torneio foi decisivo porque o treinador principal do Marítimo viu as capacidades do miúdo da Ponta Gorda e não o largou mais. André Escórcio percebeu o talento e, em menos de um ano, estava nas competições nacionais. “Ir a Lisboa sem os pais para nadar e competir cativou-me. Eu gostava de nadar, era fácil. Era natural, não me cansava. Não era como ir a Fátima de joelhos. E fui subindo, fui tendo melhores classificações ao nível nacional”. Os treinos eram duros, as condições não eram as melhores e era complicado quando estava muita chuva e muito frio. No início dos anos 80, os atletas do Marítimo nadavam nas piscinas de água salgada do Savoy, nadavam nas piscinas disponíveis, quase todas de água fria.

Dois mil metros por dia na piscina disponível. Nesses anos, a favor, os miúdos da natação tinham o clima ameno da Madeira, mas Paulo Camacho não lamenta. Costumo responder quando me falam das condições que tive e das que existem agora que é mesmo assim. A história é feita de pessoas que, perante adversidades, avançam. Foi assim com os direitos das mulheres, dos homossexuais. As histórias que ficam são as aquelas em que se pensa que têm tudo para falhar e as pessoas conseguem. Eu vejo isto assim”. Viviam-se os anos 80, era tudo mais difícil. “É claro que não tinha piscina de 50 metros, não tinha fisioterapeutas. Antes de fazer os mínimos olímpicos era um bocado a cru: era eu, o treinador e a piscina. Treinar sozinho, estudar à noite para treinar durante o dia e ter como colegas freiras, polícias e todas aquelas pessoas que queriam concluir os estudos para subir de escalão”.

Atrás dos resultados veio mais treino e mais pressão, mais disciplina. Estudar à noite para treinar de manhã e à tarde, mas a pressão para Paulo Camacho começou cedo, aos 13, 14 anos. “Na escola, o meu treinador era também meu professor e controlava todas as vezes que jogava futebol nos intervalos com os colegas, dizia-me para ter cuidado porque me podia lesionar e porque tinha treino, competições”. A situação melhorou depois dos jogos. “O treinador, que era também o meu agente, tinha muito mais poder de negociação para pedir uma equipa multidisciplinar com uma psicóloga, tinha aulas particulares com os professores da Levada, que era a piscina onde eu treinava na altura. Eu treinava das 8 às 10, depois tinha aulas, mas só eu e o professor, não ia para uma turma para ter mais aproveitamento”.

Paulo Camacho, ex-nadador olímpico madeirense que se fartou cedo da modalidade
Gregório Cunha

A solidão desses anos “não funcionou muito bem”, mas do ponto de vista desportivo Paulo Camacho somava conquistas. A 1 de abril de 1988, com 17 anos, conseguiu os mínimos olímpicos numa prova onde estava a seleção A portuguesa. Ele, o miúdo da Madeira, foi com o clube, pois, como diz, “era uma esperança, ainda não fazia parte dos planos da seleção A”. E lá foi para Seul, para o outro lado do Mundo, ele, português baixinho (tem 1,79 cm) ali lado a lado com as estrelas da época. Com Michael Gross, a quem chamavam o albatroz, com Popov e todos aqueles nadadores altos que vinham da Austrália, da URSS, da RDA, dos Estados Unidos.

Dos Jogos Olímpicos tem memória dos restaurantes abertos 24 horas na aldeia olímpica, das máquinas automáticas de Fanta e Coca-Cola e de como se deslumbrou com tudo. “Em Macau, o selecionador nacional ficou um pouco aborrecido comigo porque comprei uma aparelhagem, eu adorava música. Então comprei uma aparelhagem stereo da Sony-, também comprei uma máquina fotográfica, gastei um dinheirão. Isto para explicar o deslumbramento que foi entrar em Macau e Hong Kong com 17 anos”.

A competição ficou em segundo plano, tinha tempo, outros jogos viriam, Barcelona estava a chegar e Paulo Camacho já não era uma esperança, fazia parte da equipa olímpica, tinha o recorde nacional dos 100 metros mariposa, estava a um passo dos jogos quando a solidão começou a pesar. “Havia a questão da insularidade. Eu fazia muitas temporadas em Lisboa a treinar, às vezes ficava sozinho no centro de estágio, o que era uma seca. Passava grandes temporadas fora, dois meses fora, 15 dias na Madeira, não estava a estudar. Num desses 15 dias que vim à Madeira – tinha vindo de um circuito do México e do Brasil - comecei a namorar com a minha mulher. Ela era jovem e os jovens saem à noite. Eu também comecei a sair à noite, estávamos loucamente apaixonados e eu decidi não regressar aos treinos”.

Fugiu para casa de um amigo para não ir aos treinos, para não regressar a Lisboa. “Os meus pais sabiam onde eu estava, eu só não queria ir, não queria voltar aos treinos, já não aguentava mais. Quis fazer aquilo que os jovens fazem: namorar, sair à noite. Aquilo entre os 21 e 22 anos descambou um bocado. Se houvesse outras estruturas, se o país fosse outro talvez sido diferente, mas a verdade é que eu é fui o grande culpado. Fui eu que tomei as decisões, não foi o clube, não foi o treinador, fui eu. Estava cansado, não aguentava mais e disse mesmo 'não aguento, quero lá saber dos jogos. Foi pena'”.

E foi aqui que a história da maior referência da natação da Madeira deu uma volta, uma volta grande que o levou a tribunal por consumo e tráfico de haxixe. No início dos anos 90, com uma lei que criminalizava o consumo, a notícia caiu como uma bomba, saiu nos jornais locais, mas desses tempos Paulo não gosta de falar. Nem da droga, do julgamento e dos três anos de pena que teve de cumprir. A vida é outra, tem dois filhos de quem se orgulha muito, um estuda engenharia mecânica, a mais nova está no 9º ano. “Ainda não falei com os meus filhos sobre isso. A minha mulher está sempre a dizer que nós temos que falar, mas eu estou a adiar para ter essa conversa”, justifica.

“Foi um período complicado”, explica, um período em que viu os amigos que tinha, em que lhe valeram os treinos duros. “A natação tem uma coisa engraçada. Tens uma pista só para ti e o teu adversário não é o que está na pista ao lado, é o relógio. Essa conquista é diária. Eu nadei nas piscinas do liceu e da Quinta Magnólia às seis da manhã com frio, era sair da cama e entrar naquela água. Nessas alturas, valeu-me esse treino. Nessas e na minha vida toda, até no casamento. Também me deu uma aversão à água fria, quando vou à praia o máximo que faço é dar um mergulho”.

Agora com 47 anos, Paulo Camacho está de volta à natação
Gregório Cunha

Em 1996, para Atlanta, ainda tentou, tinha mínimos B e não seria difícil chegar aos mínimos A, mas depois de um estágio desistiu. A oportunidade passou e há anos que Paulo Camacho não treina, mas tem saudades das provas, da competição. “De competir e ganhar. Competir e chegar em último não. E quem é que não tem saudades dos seus 20 anos? É um processo natural, é como envelhecer, quem não aceita envelhecer vai sofrer. Eu aceitei a coisa naturalmente”. Mais ou menos que, aquilo de treinar duas vezes por semana para manter a forma é difícil, “ainda não deu o clique”, diz.

“Não é que eu tenha demónios, mas ainda mexe um bocado comigo. Penso que vou entrar na piscina e vou fazer mariposa até não poder mais”, mas fez 47 este ano e a natação agora é como treinador da equipa principal do clube onde entrou aos 13 anos, mas são também os amigos e as memórias das provas. “A camaradagem da natação é como na tropa, o elo de ligação é como entre os soldados que estão em combate. É forte e é para o resto da vida. Nós sofremos juntos durante muitas horas e a natação é sofrimento, dor e agonia, isso é o treino de natação. Temos o corpo todo a doer e há um tipo a dizer os tempos de chegada, que está sempre em cima, a dizer quantos segundos fizemos a mais e nós já estamos todos rotos”.

As namoradas são da natação, os amigos são da natação e, desses, Paulo guarda uma ligação ao colega de quarto nos estágios da seleção, o Rui Borges, que fazia os 400 metros estilos. “Quando nos encontramos é como se tivesse sido tudo no dia anterior, vemos vídeos antigos, contamos as mesmas histórias. O Rui está cá para a prova de águas abertas da Taça da Europa e estivemos a lembrar dos espanhóis, a seleção com a qual tivemos mais contacto. Havia uns espanhóis simpáticos e umas espanholas também – que usavam fatos de banho em fio dental nos treinos e isso era um sucesso, mesmo para nós que víamos miúdas em fato de banho todos os dias”.

Também ficaram os resultados. “Em Perth, na Austrália, no Campeonato do Mundo, quando houve pela primeira vez a prova de 50 metros mariposa, fui a uma final. Não é fácil, não era fácil. Nós portugueses somos baixinhos. Agora, conforme vou envelhecendo, vou percebendo a importância do que fiz. Portugal não é uma grande potência em natação, mas isto vale o que vale, o que fiz vale o que vale”. E Paulo Camacho tem a música, o gosto que ficou das cassetes que ouvia no walkman para se concentrar antes das provas.

Passou do Led Zeppelin e Jim Morrison à música electrónica que toca à noite nos bares onde é DJ, os mix são dele. “À noite, quando faço de DJ, toco música electrónica, toco em vários bares, mas é hobby, toco uma ou duas vezes por mês. É um escape”.

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