O herdeiro de Usain Bolt magoou-se (a sério) a jogar râguebi e agora o atletismo não sabe onde procurar um rei

Editor
“Os atletas têm de compreender em que estado está o desporto e o que têm de fazer. O Wayde percebe isso e tem batido recordes mundiais, tem corrido rápido, está a fazer muito pelo desporto e ainda é tão novo, só tem 24 anos. Para mim, ele vai assumir o controlo, sem dúvida. Diz que quer ser um sprinter e esperemos que, quando corra, faça bons tempos e tenha energia.”
As palavras são de quem inspira oxigénio e expira carisma, do homem cuja confiança se confunde com arrogância, o extravagante atleta que se ria, em pista, com os metros de avanço que tinha para os adversários. Do jamaicano cujo gesto, sempre o mesmo, de celebrar vitórias, virou marca registada e o celebrizou como ícone de capacidade atlética, superioridade e dose certa de trabalho para fazer render os genes que o abençoaram.
As palavras são de Usain Bolt, o protótipo de atleta quase perfeito para um tipo de exercício físico, o de correr rapidíssimo durante 100 ou 200 metros. Ser veloz nessas distâncias valeu-lhe oito medalhas de ouro olímpicas, outras onze em Mundiais e uma carreira elevada a mito, esplendor e espalhafato, que ele terminou em agosto, com 31 anos, por já não suportar os treinos que o faziam ser o desportista que se podia dar ao luxo de ser a cara de marcas, ser apanhado em discotecas, de ter uma vida de celebridade e esbanjar tudo nas redes sociais. Porque, simplesmente, ele era o melhor e, continuando a ser o melhor, podia fazê-lo.
A mistura vencedora que nele havia entre os genes, o corpo humano nascido para sprintar, o carisma, a assessoria e as relações públicas, a personalidade tranquila com tanta fama, a boa pessoa que é, tornaram Usain Bolt num fenómeno dos que há no futebol, basquetebol ou no futebol americano, meios onde se cultivam mitos que vendam por si próprios e captem atenções e imaginários. O jamaicano era no atletismo o que Muhammad Ali foi para o boxe.
Assim que ele se retirou, em agosto, o atletismo ficou sem a figura que tanta atenção atraía que parte dela se distribuía por outros atletas e outras modalidades. E dentro desta atenção cabem marcas, patrocínios, coberturas televisivas, interesse jornalístico, no fundo, cabe dinheiro.
E, saindo Usain Bolt, todos esses intervenientes quiseram ver Wayde Van Niekerk a entrar.
Ele é o sul-africano, de 25 anos, sobre quem, em agosto, o jamaicano disse as tais palavras. Falou dele como o seu herdeiro, o tipo que pode puxar pelo mediatismo do atletismo por ter algumas semelhanças humanas com ele, um extraterrestre que se locomovia como uma máquina perfeitamente afinada.
Van Niekerk, não sendo um Bolt, é dominador, melhor que quase todos os outros que correm contra ele e tem alguns tiques de sobre humanidade. Há ano e meio, tornou-se no primeiro homem a correr os 100 metros em menos de 10 segundos (9,98s), os 200 abaixo dos 20 (19,94s) e os 400 metros em menos que 44 segundos (43,03s). Começou-se a falar que poderia estar aqui um fenómeno com corpo para ganhar medalhas nas três distâncias de velocidade.
Só que ele teve um problema que nunca afligiu Bolt - esta semana, rasgou o menisco e o ligamento cruzado anterior do mesmo joelho.
Aconteceu na África do Sul, quando estava na Cidade do Cabo a jogar uma partida de touch râguebi (sem placagens) entre celebridades do país. Enquanto jogava a modalidade oval que o atraía, em miúdo, e ao mesmo tempo aborrecia, porque a posição era à ponta e a bola chegava-lhe poucas vezes às mãos para dar o tiro de partida ao que a genética lhe dera: a velocidade da qual não poderá usufruir até, pelo menos, o verão de 2018, pois “isto é desporto e estas coisas acontecem”, como disse após ser operado, na terça-feira.
Serão meses e meses sem o campeão olímpico e mundial dos 400 metros que, em agosto, não imitou por um triz o feito de Michael Johnson, em 1995. Ou por 0.02 segundos, minúsculo tempo que o separou do ouro nos 200 metros, em Londres, nos últimos Mundiais de atletismo.
Será muito tempo sem o fenómeno que se esperava vir a tentar ocupar, mais do que preencher, o vazio deixado por Usain Bolt. Porque há muitas diferenças mesmo que se queira puxar mais pelas poucas semelhanças.
É verdade que Van Niekerk, como o jamaicano, tem respostas morfológicas que o tornam uma anormalidade genial. Quando conquistou o ouro no Rio de Janeiro, as repetições e as super imagens em câmara lenta permitiram concluir que o sul-africano percorrera 236 centímetros por cada passo dado nos derradeiros 100 metros da final, que completou em 42 passos. Muito melhor do que os 214 centímetros e os 46,8 passos que Michael Johnson precisara para estabelecer o recorde que, entretanto, Wayde já batera.
Coisas genéticas que a ciência explica, como os 13% de força a mais com que a perna direita de Bolt batia no chão, ou os mais 14% de tempo que a perna esquerda ficava em contacto com a pista, em comparação com a destra, factos desnivelados que faziam de alguém tão alto, forte e pesado, como Usain Bolt, o mais rápido do mundo nos 100 metros - que lhe exigiam 41 passos a completar, como evidenciou um estudo da Southern Methodist University de Dallas, nos EUA.
Explicações anormais para a anormalidade brutal de ambos, em pista. Maior em Bolt do que em Van Niekerk, mas um e outro pulverizam recordes, o sul-africano menos que o jamaicano talvez por se dedicar a três distâncias e apreciar todas elas. Bolt odiava os 400m e apenas os corria na variante de estafetas.
Depois, eles divergem em tudo o resto.
Usain Bolt é a extravagância em pessoa que se foi podendo acentuar à medida que o seu sucesso foi crescendo. Ele era o atleta que olhava para as câmaras, ria-se e troçava dos adversários nos últimos metros das corridas; que ganhava medalhas de ouro e dizia coisas como “mais duas e posso assinar por baixo: imortal”; que usufruia ao máximo do estatuto para repetir que tinha o desejo de ser futebolista enquanto visitava os balneários do Real Madrid ou do Manchester United; que, nas redes sociais, esbanjava imagens dele próprio no ócio de celebrar vitórias com celebridades, modelos e álcool à mistura.
Wayde Van Niekerk é o contrário em tudo. Ele é o miúdo humilde e de boas maneiras, filho de mãe velocista e pai saltador em altura, que adora o desporto pelo desporto; que se licenciou em marketing, mas, citando o The Guardian, “nunca parece interessado em vender-se a ele próprio”; que responde com noções de honra, privilégio, responsabilidade e trabalho quando alguém o elogia ou amplifica os seus feitos na pista.
O sul-africano é recatado, humilde e introvertido, o contrário de tudo o que o jamaicano era: um extrovertido, de confiança mutante até mudar para convencimento e que adorava a exposição que ser o melhor lhe trazia. Basta olhar para as contas de Instagram de ambos - Van Niekerk é um repositório de imagens dos patrocinadores com poucos momentos especiais, como uma imagem do casamento, que celebrou a semana passada; Bolt é uma coleção de fotografias com celebridades, vídeos com discursos e momentos de regozijo pessoal.
Wayde é o rapaz que chorou à frente de uma câmara, ao ser entrevistado momentos após ficar com a prata nos 200 metros dos Mundiais, por tudo o que se dissera sobre a sua vitória, antes, nos 400 - ou melhor, que Isaac Makwala, do Botswana, seu maior adversário nessa distância, disse, após não ser autorizado a participar na final por estar de quarentena devido a um surto de gastroentrite nos Mundiais de atletismo.
Usain sempre foi o homem que se vangloriava na ressaca de cada vitória.
Um dos speakers do estádio nos Mundiais de Londres apresentava-o como “a nova super estrela do atletismo”. Os jornalistas perguntavam-lhe pela sensação de ser “a pessoa mais famosa da pista e da velocidade”.
O atletismo quer Wayde Van Niekerk a existir como o fenómeno que, realmente, ele é, mas querem fazer dele o rei herdeiro do reinado de Usain Bolt, a nova galinha dos ovos de ouro para o atletismo. Algo para o qual ele não tem personalidade para ser.
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