Corri a São Silvestre e acabei no lugar 2.500 e qualquer coisa. E esta é a minha versão dos factos
Eram quatro mil pessoas à partida na São Silvestre do Funchal, a mais antiga de Portugal. É mesmo uma febre que traz tanta gente à rua
Eram quatro mil pessoas à partida na São Silvestre do Funchal, a mais antiga de Portugal. É mesmo uma febre que traz tanta gente à rua
Jornalista
Quatro mil pessoas esperam o tiro de partida da Volta à Cidade do Funchal. A mais antiga corrida de São Silvestre do país, vai na 59ª edição, está prestes a começar com um número recorde de inscritos, houve até quem tentasse meter uma cunha à organização a ver se dava um jeitinho para mais arranjar lugar para mais um.
É que este ano vieram os atletas convidados, os federados, o presidente do governo, o vice-presidente do governo, o líder do PS-Madeira, novos e velhos, e todos compõem a multidão que se vai juntando na marginal do Funchal.
E até eu, com os meus 46 quase 47 anos, faço parte do pelotão do povo, o último a cruzar a partida e vou com a desculpa de que a melhor reportagem é a aquela que se faz por dentro. A prova começa e Avenida do Mar adiante passam por mim centenas, homens e mulheres, ainda me calham uns empurrões, que cada um tem um objetivo e não faltam apostas. “Não imagina quantas apostas estão jogo, quantos jantares estão prometidos entre colegas de trabalho e amigos, de quem faz melhor tempo”, conta Policarpo Gouveia, da Associação de Atletismo da Madeira, a entidade organizadora.
O mal é que quem estica em terreno plano fica sem pernas para as subidas e, ali junto à porta do Mercado dos Lavradores, o entusiasmo abranda, quem ia a correr, vai a passo e começam as primeiras desistências. Subir custa, custa muito e eu penso que, se calhar, fiz poucos treinos e comi muito pelo Natal. Ai a carne de vinho e alhos, ai o Ferrero Rocher e as pernas que parece que não aguentam. A assistência aplaude quem passa e nisto oiço gritar que “vai ali o padrinho”, oiço aplausos, palavras de incentivo. Para a próxima trago claque, convoco os amigos que isto sozinha dói mais.
Os da frente, o eritreu Yemane Haileselassie e o espanhol Antonio Abadia cruzaram a meta há uma eternidade. Eu ainda aqui vou a meio da prova, vou concentrada, que ninguém fale comigo que me falta o fôlego, mas dois homens passam por mim a conversar, um queixa-se, “é que ainda não tenho sapatilhas como deve ser, é que ainda não tive tempo de comprar”. Dos ténis não me posso queixar, são novinhos em folha. E nisto passo por um posto de controlo, está no chão para controlar os que aldrabam o percurso. Ou esquecem. “Este ano, para evitar confusões, colocamos dois postos de controlo. Quem não passar por eles é desclassificado, é para evitar aqueles esquecimentos”.
Policarpo Gouveia ironiza, até compreende a história das apostas, que a prova é uma festa, mas a corrida faz parte do calendário do campeonato regional de estrada “Madeira a Correr” e não é justo para quem treina, tem de haver o mínimo de verdade desportiva. O campeonato tem 40 provas, uma média de 400 atletas participantes, já não é brincadeira. “Olhe é um acontecimento desportivo, mas também social, já houve casamentos entre atletas e na última maratona foi feito um pedido de casamento”. O homem da associação não esconde a alegria, anda há 20 anos a lutar pelo atletismo, mas nunca viu uma febre como esta. “Nunca pensei, nem nos meus melhores sonhos, ter gente a meter cunha para entrar numa prova”.
É mesmo uma febre que traz tanta gente à rua e é isso que penso quando me faço a última parte da Volta à Cidade, correr dá para pensar, é assim uma maneira de esquecer que as pernas já não vão para novas. Agora é correr como o Carlos Lopes, herói de todos os que foram adolescentes nos anos 80 e choraram a ouvir o hino naquela madrugada de Agosto lá em Los Angeles. Carlos Lopes foi um dos ilustres participantes na São Silvestre do Funchal, foi depois de ter sido campeão olímpico, fizeram a corrida com um percurso de 11 quilómetros. Agora está nos 6 quilómetros e eu estou no último e vou correr tudo o que posso, a meta está à vista e é só mais um esforço.
Quando cruzo a meta, o speaker anuncia que se está a entrar no minuto 40 e ainda há uma multidão a chegar. E há uma outra multidão a levantar a medalha, a água e mais uma t-shirt e do outro lado está ainda mais gente, parece que a Madeira veio toda fazer a Volta à Cidade. Tiram-se fotografias, selfies, amigos e conhecidos, todos querem saber os tempos. “Quantos fizeste?” é a pergunta que mais de ouve. Yemane Haileselassie, o vencedor, fez 16 minutos, Inês Monteiro, que ganhou as mulheres, ficou pelos 19, mas esse é outro campeonato. Ali, no meio dos amadores, o que se quer saber é quantos fez o colega de trabalho, a amiga do ginásio, a competição é tramada. A idade também, que as lesões doeram todas. Os joelhos, a anca. A mim são os pés, as plantas dos pés.
Entre políticos, Carlos Pereira, líder do PS-Madeira, ficou à frente de Miguel Albuquerque. O socialista, que é adepto do running, fez 27 minutos e o social-democrata ficou nos 31. “Foi uma prova feita nas calmas, se tivesse feito esforço talvez chegasse aos 28”, explica-se o presidente do Governo que fez a volta acompanhado pelo vice-presidente Pedro Calado e pelos seguranças. “Para o ano espero fazer outra vez”. E para o próximo ano o Governo já tem planos para associar a prova às celebrações dos 600 anos do achamento da Madeira. E para isso não chegam quatro mil participantes, são necessários mais, quem sabe seis mil.
A associação de atletismo orgulha-se de ter já a maior participação em termos proporcionais nas corridas de São Silvestre. Ou seja, tendo em conta a população do arquipélago. Contas feitas, quatro mil participantes representam 1,6% da população da Madeira. O outro orgulho é o nível de participação de mulheres na Volta à Cidade, que também é das maiores do país. Policarpo Gouveia explica que trazer mais mulheres para o atletismo é uma preocupação da associação que dirige, será um factor decisivo para ampliar o número de atletas. Por enquanto, as contas são de 65% de homens; 35% de mulheres.
Entre as mulheres, estou eu, que fui correr para contar como é o nervoso da partida, entre o povo, em que quase não se sente o frio por causa do nervoso e contar o que vem a seguir, o desânimo, a força, a teimosia e depois a esperança ao ver a meta, ao perceber que está acabar. Pelo caminho, ficam as imagens de amigos a apoiar amigos, homens a correr passo a passo com as mulheres, gente que desiste, gente que para e recomeça. A conversa quando acaba, os tempos, as dores, as desculpas, as fotografias, que é só uma corrida, mas tem tanto de vida. E que tempo, qual foi o meu? 38, 58, 90ª no escalão 45, 664ª nas mulheres e 2500 e qualquer coisa na geral.
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