Compreender o prodigioso Bobby Fischer continua a ser um exercício complexo e inútil: o homem a quem apenas o xadrez mantinha são
Ivan Milutinovic/Reuters
Faz esta quarta-feira 10 anos da morte de Bobby Fischer, o xadrezista norte-americano que nos anos 60 e 70 desafiou o poder soviético antes de entrar numa espiral de paranóia e perseguição que tornaram o génio num pária. Para muitos uma força da natureza, para outros um doido varrido, o certo é que há um antes e um depois de Fischer no jogo das 64 casas, tantas quantos os anos de vida
Não quis qualquer tipo de tratamento e quando os rins deixaram definitivamente de funcionar Bobby Fischer tinha apenas 64 anos. Coincidência poética: 64 anos, um ano para cada casa de um tabuleiro de xadrez, como cada um dos fragmentos da complexa personalidade daquele que será senão o melhor, pelo menos o mais icónico xadrezista de sempre.
Isto foi há 10 anos, precisamente há 10 anos. Há mais coincidências: a 17 de janeiro de 2008 o norte-americano morreu na Islândia, país que lhe entregou um passaporte quando o seu próprio país lhe acenava com um mandado de prisão. A Islândia, aquela setentrional e fria ilha que viu Bobby Fischer jogar e ganhar frente a Boris Spassky no Mundial de 1972, roubando o título ao russo e tornando-se então no primeiro campeão do mundo não-soviético em 25 anos. E primeiro norte-americano de sempre, em plena Guerra Fria. Esse Mundial, o primeiro a ter honras de transmissão televisiva em prime time e que tornou este desporto intelectual em coisa mainstream nos Estados Unidos. Foi chamado de “Duelo do Século”, porque nem só de homens de punhos cerrados vivem estes epítetos pomposos.
Bem vistas as coisas, talvez não seja coincidência nenhuma que Bobby Fischer tenha morrido na Islândia: Fischer praticamente colocou o país no mapa depois daquele Mundial e a Islândia mostraria gratidão, dando a mão ao xadrezista quando a paranóia e os ressentimentos já lhe tinham levado praticamente tudo, a família, os colegas, o respeito e até a sua própria nacionalidade.
Porque em cada génio há um louco. O miúdo que aprendeu e aperfeiçoou as regras do xadrez jogando contra ele próprio, sempre pareceu viver um pouco contra tudo e contra todos. No seu funeral - foi sepultado, por sua própria vontade, perto de Selfoss, uma pequena vila a 60 quilómetros de Reiquejavique - estiveram cinco pessoas: o seu representante e único amigo conhecido, Gardar Sverrisson, a mulher de Sverrisson, Krisín, que tratou de Fischer nos últimos dias da sua vida, os dois filhos do casal e Miyoto Watai, xadrezista japonesa com quem se tinha casado, apesar de não viverem juntos.
Não há muito mais solitário que isto.
Fischer bateu todos os recordes de precocidade no xadrez, mas morreu há uma década isolado numa ilha distante, sem ninguém chegar bem a conhecer o que se passava dentro da sua cabeça. Brilhante com um tabuleiro à frente, o xadrez era a única coisa que parecia mantê-lo são.
Sem ele por perto, era um homem de discurso de contradições, ele que era um anti-semita com mãe e pai judaicos, um anti-americano que também não gostava particularmente dos comunistas, um excêntrico errático, um vaidoso com pouco apreço pelas regras do politicamente correto. Ou do correto apenas.
E uma década depois, ainda não há consenso sobre a figura de Bobby Fischer. Era apenas um idiota? Ou apenas alguém que não foi devidamente acompanhado? Quando em 1962 Robert Byrne, outro Grande Mestre norte-americano, sugeriu que Fischer visitasse um psiquiatra, este disse-lhe o seguinte: “O psiquiatra é que devia pagar-me pelo privilégio de trabalhar com o meu cérebro”.
Menino-prodígio
Fischer foi tão solitário na morte como na infância. Filho de Regina Fischer, nascida na Suíça e que fugiu para os Estados Unidos logo após o início da II Guerra Mundial, devido às suas origens judaicas, Bobby Fischer nasceu a 9 de março de 1943, em Chicago. Durante os seis primeiros anos de vida, a família mudou 10 vezes de cidade até assentar em Brooklyn, Nova Iorque. O curso de medicina tirado por Regina em Moscovo nada lhe valeu nos Estados Unidos - aliás, valeu-lhe ser investigada pelo FBI durante anos e anos, por suspeitas de espionagem - e Regina, Bobby e Joan, irmã mais velha do xadrezista viviam em dificuldades.
Foi precisamente Joan que apresentou Bobby ao xadrez, quando lhe comprou um pequeno tabuleiro numa loja de brinquedos. Os dois irmãos aprenderam a jogar com as instruções básicas que vinham com o set.
Bobby rapidamente se tornou obsessivo com o novo hóbi ao ponto de Regina ter colocado um anúncio no jornal à procura de miúdos que pudessem jogar com o filho, que passava cada vez mais tempo sozinho. Na escola, apesar da inteligência muito acima da média, era problemático - chegou a ser expulso depois de bater num diretor e no ensino secundário abandonou definitivamente a escola, para desgosto da mãe.
No xadrez, pelo contrário, tudo corria bem. Era a sua única paixão: com apenas 12 anos, Fischer já jogava pelo Manhattan Chess Club, o mais importante do país, e a partir daí a ascensão foi meteórica. Aos 13 anos sagrou-se o mais jovem vencedor de sempre do campeonato nacional de juniores dos Estados Unidos. Era só o primeiro recorde que iria bater. Em 1958, aos 14 anos, Fischer tornou-se no mais jovem campeão norte-americano. Aos 15, o mais jovem Grande Mestre da história.
O seu estilo agressivo e imprevisível, que deixava os adversários sem chão, não deixou qualquer dúvida: estávamos perante um prodígio do xadrez.
Fischer durante uma partida com o soviético Mikhail Tal, em 1960
Kohls, Ulrich
Os primeiros sinais de instabilidade não demoraram a aparecer. Em 1967, deixou um torneio a meio depois de discutir com um dos organizadores - nos dois anos seguintes pouco jogou, juntou-se à Igreja Mundial de Deus e não era raro falar sobre o fim do mundo ou o apocalipse.
Mas em 1970 deixou a reclusão, voltou ao tabuleiro e chegou a número 1 do mundo depois de ganhar 20 jogos seguidos frente aos melhores Grandes Mestres. O Bobby Fischer são parecia estar de regresso e o próximo passo foi desafiar o campeão mundial em título, o soviético Boris Spassky.
Mundial de 72, mais do que um jogo de xadrez
Em 1972, os Estados Unidos lidavam ainda com o rescaldo do caso Watergate enquanto a Guerra do Vietname parecia cada vez mais perdida. As tensões políticas com a União Soviética estavam menos acessas, mas o confronto entre Spassky, então com 35 anos - tantos quantos o domínio soviético no Mundial -, e Fischer, de 29, nunca seria apenas um jogo de xadrez.
Durante a preparação para o Mundial, surgiu de novo o Fischer arrogante e quezilento. Queixou-se de tudo: do local (preferia Belgrado a Reiquejavique), da sala, das cadeiras, do tabuleiro, das peças. Também protestou contra o público e as câmaras de televisão que acompanharam aquele se seria então o mais mediático evento de xadrez algumas vez realizado.
Antes mesmo do Mundial arrancar, em julho desse ano, ameaçou não viajar para a Islândia enquanto o prize money não fosse revisto: passou de 125 mil dólares para o dobro, 250 mil dólares, que hoje corresponde a quase 1,2 milhões de euros. Impensável naquela época para um jogo em que dois tipos estão sentados a afinar estratégias em frente a um tabuleiro. Recusando-se a perder a oportunidade de ver um americano derrotar um soviético num desporto tradicionalmente dominado pelo inimigo, o secretário de estado Henry Kissinger chegou mesmo a telefonar a Fischer, pedindo-lhe de forma insistente para jogar.
Fischer acabaria finalmente por ceder.
Perderia, no entanto, os dois primeiros jogos: um após um erro estranho para um Grande Mestre e o 2.º por falta de comparência. O xadrezista norte-americano recusou-se a jogar até que o duelo passasse para uma sala sem público, que o incomodava. Esteve em cima da mesa a desistência, mas Spassky não queria ganhar sem jogar e cedeu às pretensões de Fischer, que a partir daí dominou o duelo, “O Duelo do Século”, mesmo quando este passou novamente para uma sala com público.
Nunca um xadrezista nascido nos Estados Unidos havia sido campeão do mundo e quando Fischer voltou a casa era um herói. Apareceu na capa da “Sports Illustrated”, na televisão, foi inundado por contratos publicitários que o tornariam milionário, uma estrela num desporto sem estrelas. Recusou quase todos. E o que parecia ser o início de uma era, de um reinado, acabou por ser também o final.
Fischer na capa da Sports Illustrated depois do título mundial de 72
Já antes do Mundial de 72 se tinham visto laivos da sua personalidade paranóica. Chegara a acusar adversários de lhe envenenarem a comida, de lhe colocarem escutas nos quartos de hotéis. Apontava o dedo aos adversários soviéticos, que na sua cabeça se juntavam em conluio para o tramar nos torneios. Começou a desenvolver fobia a andar de avião, com medo que este estivesse armadilhado pelos russos.
Depois de 1972, quando estava no auge, com apenas 29 anos, tudo piorou. Fischer voltou a entrar numa espiral de isolamento e paranóia. Começaram os comentários anti-América e tornou-se particularmente duro e ofensivo com os judeus, uma contradição para quem tinha mãe de sangue judaico.
Com a mãe Fischer cortou relações, mas Garry Kasparov tem outra explicação para este sentimento anti-semita, que poderá estar relacionada com as fricções que teve com um dos primeiros rivais, Samuel Reshevsky, um norte-americano judeu. E não só. “Acho que a mania anti-semita de Bobby Fischer, que aumentou com os anos, está também associada com o domínio dos jogadores soviéticos de origem judaica. Para ele, todos se haviam juntado contra ele com o objetivo único de evitar que se tornasse campeão do mundo”, disse ainda Kasparov numa pequena biografia que escreveu sobre aquele que é um dos seus ídolos.
Contou o próprio Samuel Reshevsky que um dia, num torneio em Palma de Maiorca, Fischer lhe disse que estava a ler “um livro muito interessante”. E quando Reshevsky lhe perguntou qual, Fischer respondeu-lhe cheio de raiva “O Mein Kampf” [em português “A minha luta”, o infame livro que Adolf Hitler escreveu na prisão].
Em 1975, ano em que devia defender o título mundial, Fischer fez exigências irrealistas à FIDE, federação internacional de xadrez, que não cedeu e entregou o título a Anatoly Karpov. Gudmundur Thorarinson, um dos organizadores do jogo do título de 72, disse ao The Guardian após a morte de Fischer que as exigências do norte-americano eram apenas uma forma de fugir ao seu verdadeiro receio, após três anos sem praticamente competir. “Fischer tinha um medo de morte de perder. O xadrez e o título mundial significavam tanto que ele nem sequer conseguia lidar com a hipótese de ser batido”.
Foi então que Fischer praticamente desapareceu no mapa, sendo notícia sempre por motivos não relacionados com xadrez. Na década de 80 chegou a ser preso na Califórnia depois de ser confundido com um assaltante de bancos. Dedicou-se ainda mais à Igreja Mundial de Deus, que deixou depois das previsões para o Dia do Julgamento Final terem falhado. Cresceu em si a certeza que era espiado pela CIA e pela Mossad.
Mas no meio da descida às catacumbas da loucura e da auto-destruição, Fischer preparava uma última jogada, que lhe deu muito dinheiro, mas o tornou um pária para o resto da sua vida.
O reencontro com Spassky em 1992
Depois de várias décadas sem jogar, Bobby Fischer fez uma última aparição em 1992, num encontro de exibição que foi também o reencontro com Boris Spassky. Tudo aconteceu na Jugoslávia, numa Jugoslávia dilacerada pela guerra civil, onde se derramava sangue ao mesmo tempo que os dois velhos jogadores, já completamente fora de ritmo ou forma, competiram por um prémio de 5 milhões de euros oferecido por um banqueiro e negociador de armas de reputação nada idónea.
Os Estados Unidos, que haviam imposto sanções à Jugoslávia, alertaram o jogador para a afronta que era jogar num país inimigo. Fischer não só não quis saber como na conferência de imprensa do duelo atirou-se ao seu país e acusou a comunidade judaica de o ter colocado numa “lista negra”, que o havia impedido de competir por mais de 20 anos. Mais chocante: cuspiu no fax enviado pelo governo do então presidente George H. W. Bush, que o aconselhava a não jogar aquela partida, por violar o embargo dos EUA à Jugoslávia.
Fischer jogou e ganhou novamente a Spassky, mas nunca mais voltou aos Estados Unidos. No seu país, arriscava uma pena de prisão de 10 anos. Passou os últimos anos na Hungria, Filipinas e no Japão.
Foi precisamente a uma rádio das Filipinas que Fischer disse uma das suas mais infames tiradas, aplaudindo o 11 de setembro de 2001. “São belíssimas notícias. Eu quero ver os Estados Unidos arrasados do mapa”, disse, criticando ainda pelo caminho o papel do seu país no conflito israelo-árabe.
Com um mandado de detenção à perna, depois da partida de exibição em 1992, Fischer acabaria por ser preso em 2004, quando tentava sair do Japão, sob a acusação de estar a utilizar um passaporte revogado.
Depois de vários meses preso, enquanto se discutia a sua extradição para os Estados Unidos, Bobby Fischer recebeu um passaporte e a cidadania islandesa. O país invocou “razões humanitárias” para o fazer.
Foi como o fechar de um ciclo: o local onde chegou ao topo, foi o local que o acolheu para viver os últimos anos da sua vida. Ainda assim, até ao fim, Fischer foi virulento e provocador. À chegada à Islândia, em 2005, voltou a criticar os Estados Unidos e falou dos “Aliados do Mal”, que colocou em igualdade com o termo “Eixo do Mal”, tão em voga na altura, em plena Guerra do Iraque.
Na Islândia viveu no mesmo bloco de apartamentos da família Sverrisson, companhia única que teve até aos dias finais, perturbado psicologicamente, mas sem nunca se deixar ajudar. O homem que era uma força da natureza com um tabuleiro de xadrez à frente, sem ele deixou-se apenas consumir pelos ressentimentos.
Ainda assim, para quem jogou e para quem apenas admirou, é inestimável o valor da figura de Bobby Fischer. Garry Kasparov diz que foi o mais “mítico dos jogadores de xadrez”. Mikhail Tal, outro dos maiores rivais disse de Fischer ser o “maior génio que alguma vez desceu dos céus do xadrez”.
Mas a sua influência foi mais vasta. Foi com Fischer, por exemplo, que os prize money dos torneios de xadrez subiram substancialmente e que chegaram os patrocinadores a um desporto pouco apetecível até à sua chegada. Antes de Fischer, era impossível a um xadrezista viver apenas do que ganhava nos torneios.
Ele que só parecia estar em paz em frente a um tabuleiro de xadrez. Ele que foi grande e morreu praticamente sozinho, numa ilha fria e distante, há precisamente 10 anos.
Ele que foi grande e podia ter sido o maior, até deixar que a loucura o consumisse.