Há máximas que valem para todos os desportos, como aquela que diz que “os recordes existem para serem batidos”. À medida que avançam, e avançam cada vez mais e mais depressa, parecem desafiar a lógica e as fronteiras do que somos capazes de fazer. Mas talvez sejam apenas um sinal de que estamos a “limar as imperfeições” do ser humano, sempre “tão imperfeito em tudo” o que faz
No desporto como na vida, o tempo nunca corre da mesma forma. Um minuto nunca é “só” um minuto, e um minuto e oito segundos, numa corrida, é quase uma eternidade. Eliud Kipchoge ali estava para a desafiar, a 27 de setembro de 2015, na Maratona de Berlim, tentando bater a distância que o separava do recordista, o também queniano Dennis Kimetto. Só que há algo mais que é preciso saber sobre estas provas: nenhuma começa no quilómetro zero.
Kipchoge corria elegante para uma previsível vitória, com a segurança de quem havia ganho quatro das últimas cinco maratonas, e com a humildade de quem diz que “só os disciplinados são livres na vida” — os outros “são escravos das emoções”. Os ténis brancos seguiam discretos, não fosse um amarelo quase verde, muito fluorescente, muito néon, começar a gritar alto, ainda a corrida não ia a meio. Para espanto de quem aplaudia, Kipchoge tinha as palmilhas soltas, a balançar para fora do ténis, tanto num como noutro, numa valsa que parecia estar sempre perto de o fazer cair. Não fez, e o homem ultrapassou a palmilha, que nunca tirou, porque o faria perder tempo e um minuto nunca é “só” um minuto. Naquele dia, Kipchoge bateu o recorde pessoal e só não foi mais longe por culpa da marca, apontaram os críticos, que o deixou a 1 minuto e 3 segundos do melhor de sempre. Quase uma eternidade. O queniano admitiria depois que o objetivo era ter ultrapassado o compatriota, mas que o que ficava era a vontade de “voltar à Maratona de Berlim e correr ainda mais rápido”.
Em setembro de 2018, depois de nova vitória no ano anterior, Kipchoge voltaria a Berlim, já com as palmilhas no sítio, mas com o resultado do costume: primeiro lugar. Só que desta vez, aquele que é considerado o melhor maratonista da era moderna, para não gastar a expressão “de sempre”, tornou-se também o mais rápido — agora sim — de sempre, ao completar os 42,195 quilómetros em 2 horas, 1 minuto e 39 segundos. Significa isto que o queniano fez toda a corrida a praticamente 21 km/h e que, se contarmos a segunda metade da prova, que completou em 60 minutos e 33 segundos, temos que Kipchoge demorou 2 minutos e 53 segundos por quilómetro. “É uma performance tão superior a qualquer coisa que já tenhamos visto que compará-la a outra maratona soa inadequado”, escreveu o site “Let’s Run”.
É nestes tempos e nestes casos que se torna difícil não ceder à tentação da hipérbole ou de adjetivos fáceis. A revista “The Atlantic” resume assim o feito deste homem de 33 anos: “Um lendário maratonista queniano redefiniu de novo aquilo de que os humanos são capazes.” A prová-lo estão mais alguns números: desde 2003, o recorde mundial tem sido sempre batido por diferenças inferiores a 30 segundos; em 2018, Kipchoge tirou-lhe 1 minuto e 18 segundos. Quase uma eternidade.
Ténis, treino, tecnologia: o que os faz correr?
O episódio das palmilhas cabe em várias listas da história das maratonas. Pode estar na de “superação”, perto da de “insólitos”, “imprevistos” ou “incompetências”. A marca responsável, a Nike, desculpou-se dizendo que se tratava de um protótipo, que o atleta até já tinha testado. Como em tudo, “alguns elementos podem correr mal”. E correram, quase tanto como o próprio Kipchoge. Porém, a discussão sobre o que calçam os atletas pode levar-nos, literalmente, mais longe.
Grandes marcas de calçado desportivo, com a própria Nike à cabeça, vêm prometendo ténis capazes de melhorar tempos. Em julho, o “The New York Times” (NYT) usou um desses modelos para fazer um estudo comparativo que não desmente a ideia de que aqueles ténis são 4% mais eficiente do que todos os outros. A percentagem mede a economia de energia e, a comprovar-se, significaria que um amador que demore o dobro do tempo de um profissional a completar uma maratona (perto de 4 horas), ganharia oito minutos. Os mais rápidos, que a fazem em três horas, poupariam seis. O próprio “NYT” aponta brechas ao estudo, mas o caminho parece aberto para que o pormenor e a tecnologia continuem a desafiar limites.
João Paulo Vilas-Boas, professor responsável pelo Laboratório de Biomecânica da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, conhece algumas dessas ambições e, apesar de “estar por demonstrar que o que dizem é verdade”, não tem dúvidas do potencial de cada uma delas. “Hoje os têxteis para competição aumentam a capacidade de circulação térmica, há componentes bacteriológicas que permitem reduzir odores, os calções desenham-se de forma a minimizar a fricção em zonas críticas”, enumera o investigador. “Há um bocadinho de tecnologia e know-how para tudo”, o que fará com que, à medida que nos aproximamos do ideal, ele se vá afastando. É por isso que o tempo de Eliud Kipchoge, “impressionante”, deve ser visto à luz de uma série de “condições que convergem para as vitórias”, entre as quais a natureza do próprio corredor. “Os quenianos de fundo são corredores de ante-pé, ou seja, apoiam a parte anterior do pé numa trajetória da frente para trás, como que empurrando” o corpo, o que é exatamente o contrário do que faz a maioria dos “corredores de fim de semana, especialmente desde que foi inventado o jogging”, explica Vilas-Boas. Quando é o calcanhar o primeiro a tocar o chão, “há ali um pico de frenagem, que obriga a despender mais energia”.
Rita Terruta, responsável técnica da Fhit Unit, aponta as grandes altitudes de países como Quénia e Etiópia, onde “as pessoas vivem em hipóxia, com baixo teor de oxigénio”, a que o corpo se vai adaptando. “Quando correm a uma altitude normal, já têm uma capacidade de transporte de oxigénio superior à da maioria das pessoas”, comenta. Fatores genéticos como a “menor circunferência dos gémeos, as pernas compridas e o tronco pequeno” ajudam a formar esta espécie de salada de fazer campeões. A treinadora não tem dúvidas de que o mito à volta da maratona, que diz que seria impossível fazê-la em menos de duas horas, “está para acabar”.
Vilas-Boas concorda que há uma “evolução vertiginosa das ciências do desporto” e usa o exemplo de Usain Bolt para colocar a vitória de Kipchoge em perspetiva: numa corrida de duas horas, um minuto representa 1/120 avos do total, o que corresponde a um centésimo de segundo numa corrida de 100 metros. “Se transpusermos isto para outras distâncias, percebemos que é especial, mas não é sobre-humano”, porque as condições da Maratona de Berlim, com temperaturas amenas e baixa humidade, também são especiais e porque a tradição cultural no Quénia é muito forte, existindo “um orgulho patriótico nos corredores de fundo”. Inevitavelmente solitária, a maratona é um desafio mental, que obriga ao chamado steady state, um ritmo fixo, até monótono, só ao alcance dos mais disciplinados, ou “mais livres”, como lhes chama Kipchoge. “O ser humano é tão imperfeito em tudo que o que fazemos é ir limando essas imperfeições”, completa o professor.
“O desporto não dá saúde”
É fácil esquecer, mas os especialistas estão cá para o repetir. A frase acima, dita por Rita Terruta, não anda longe da de João Paulo Vilas-Boas: “O desporto é, por natureza, uma agressão.” Para o investigador, “a ligação entre saúde e desporto que hoje fazemos é absolutamente abusiva”, o que pode não só ser paradoxal — procurar ser mais saudável não o sendo —, como preocupante. “As pessoas conhecem os limites do corpo até caírem para o lado”, alerta Vilas-Boas, para quem o desporto “é uma coisa muito séria, tão ou mais do que os antibióticos, e provavelmente mais letal”.
Rita Terruta aponta o acompanhamento profissional como indispensável, não só na área do treino, como na da saúde. “É preciso uma preparação consciente e progressiva”, que vá melhorando a prática e a resistência, porque “tudo altera a técnica de corrida, a economia de energia e a performance”. Numa frase, diz Terruta, “correr não é só correr” e é isso que explica resultados tão díspares entre amadores. A treinadora conhece vários que participam em corridas de longa distância e afirma que é impossível traçar um padrão. “Há quem vá por motivos estéticos, por questões de saúde, psicológicas, de libertação (…); há também as pessoas megacompetitivas, não com os outros, mas com elas próprias”, enumera. E se os riscos estão lá, as oportunidades também. “Correr é um desafio de desenvolvimento pessoal”, transponível para outras áreas da vida. Por isso, conta a técnica da Fhit Unit, “o que queremos é mais pessoas a correr, se gostarem, e com uma relação cada vez mais estável entre corpo e mente”.