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Um cartaz demasiado sexy, o vídeo que mostrou mais do que devia, o tipo que vai fazer o chess great again: as histórias do Mundial de xadrez

Um cartaz demasiado sexy, o vídeo que mostrou mais do que devia, o tipo que vai fazer o chess great again: as histórias do Mundial de xadrez
IVAN MUDROV/World Chess

Magnus Carlsen, campeão desde 2013, e Fabiano Caruana, o desafiador de serviço, disputam por estes dias o título mundial de xadrez, em Londres. Mas para lá dos infinitos movimentos num tabuleiro, a competição, que até está empatada, tem muito mais para oferecer: pequenos génios, milionários megalómanos, intriga mais ou menos internacional, apatia, negligência, conspiração e até uma pitada de sensualidade. Quem disse que o xadrez é chato?

Dois tipos, sentados frente a frente, um tabuleiro. Peças que se movem, não poucas vezes horas a fio, com longas pausas pelo meio para pensar a próxima jogada. Parece chato, não parece?

Talvez o xadrez não seja a mais entusiasmante das modalidades, pelo menos do ponto de vista de quem assiste, mas há todo um mundo feito de pequenos génios, milionários megalómanos, intriga mais ou menos internacional, apatia, negligência, conspiração e até sensualidade que tornam o Campeonato do Mundo, que está decorrer entre o campeão Magnus Carlsen e o challenger norte-americano Fabiano Caruana num dos mais interessantes eventos desportivos deste ano.

Já explicamos, mas antes disso uma pequena revisão da matéria dada: o Mundial de 2018 arrancou no dia 9, em Londres, e jogar-se-á à melhor de 12 rondas. De um lado está Magnus Carlsen, norueguês de 27 anos, número 1 mundial e campeão do Mundo desde 2013 (defendeu com sucesso o título em 2014 e 2016). Do outro Fabiano Caruana, norte-americano de 26 anos, número 2 mundial e o desafiador de serviço.

Agora que estamos a entrar no 4.º dia de descanso, tudo está como no início: em oito rondas, as partidas terminaram com oito empates. Mas o Mundial de xadrez é mais do que aquilo que se passa no tabuleiro, onde as forças estão, até ver, equivalentes.

Um cartaz um pouco ‘pawnographic’

Este Mundial de xadrez já era interessante antes de começar e a culpa também é de um cartaz. Sim, de um cartaz. Porque o design proposto para a imagem desta edição do Mundial provocou, desde logo, toda uma controvérsia entre a comunidade do xadrez.

A imagem da discórdia

O logo com dois corpos entrelaçados diante de um tabuleiro estilizado, numa espécie de M.C. Escher meets kamasutra, valeu, como seria de esperar, umas quantas brincadeiras. O “The Times” chamou-lhe ‘pawnographic’ (pawn significa peão em inglês) e entre o espanto e o humor, houve também quem não tenha gostado nem um bocadinho. Susan Polgar, a primeira mulher a ganhar o título de Grande Mestre segundo as regras tradicionais, usou o Twitter para pedir à federação internacional e à World Chess para encontrar algo com “mais classe, mais atrativo, inteligente, rentável e, mais importante, algo do qual toda comunidade do xadrez possa sentir orgulho”.

Ao site Chess.com, Ilya Merenzon, homem-forte da World Chess, organização responsável pelo Campeonato do Mundo, sublinhou que foi pedido ao estúdio responsável pelo design uma imagem que sugerisse "um combate entre duas figuras" e que “chamasse a atenção”.

“Algumas pessoas podem dizer que é um pouco sexual, mas acho que é bom trazer um pouco de sex appeal ao xadrez e queríamos mesmo algo que saltasse à vista”, sublinhou o responsável, defendendo a imagem arrojada do cartaz oficial do Mundial.

O desafio parece ter sido mais do que conseguido. Se as esferas mais tradicionalistas pediam algo mais comedido, o público adorou: a World Chess foi inundada de encomendas de quem queria ter um exemplar do cartaz em casa e também não faltaram aqueles que tentaram recriar, eles próprios, o polémico logo.

Carlsen no seu labirinto

Grande Mestre com 13 anos, quatro meses e 27 dias, número 1 aos 19 (o mais jovem da história), campeão do Mundo aos 22 (só Kasparov o fez mais cedo), o jogador com melhor rating da história - a lista de feitos de Magnus Carlsen impressiona mesmo quem nem sequer sabe como se move a rainha no tabuleiro.

Mas Carlsen é mais do que isso para o xadrez porque está longe de ser o típico xadrezista. O norueguês de sorriso fácil é o campeão de xadrez que já foi modelo da marca de roupa G-Star ao lado de Liv Tyler e que é patrocinado pela Porsche. É o miúdo louco por futebol que já deu o pontapé de saída num jogo do Real Madrid, que foi considerado pela revista “Cosmopolitan” como um dos homens mais sexy de 2013 e que dá entrevistas com camisolas onde versam frases como 'Swag don’t come cheap'. E que sobre o acosso das fãs diz ser, ao mesmo tempo, “uma maldição e uma benção”.

Mas como quase todos os génios, Carlsen, campeão do Mundo desde 2013, o rapaz que Kasparov não conseguiu moldar ao seu regime de treino militar - apenas conseguiram trabalhar juntos durante um ano -, aborrece-se com facilidade. Há dois anos, quando defendia o título mundial frente ao russo Sergey Karjakin, só resolveu a questão no tie-break, apesar do amplo favoritismo. E este ano, em Londres, não falta quem o acuse de apatia e de só reagir quando se sente encurralado.

Carlsen é campeão do Mundo desde 2013. Mas há quem diga que perdeu a motivação
IVAN MUDROV/World Chess

“É muito difícil motivá-lo”, disse o seu pai Henrik ao “El País”. E como é que se tenta sequer motivar alguém que aos 27 anos já ganhou tudo? “Digo-lhe que, por muito que não haja nada acima do número 1, abaixo dele faz muito frio”. E quem diz frio diz a falta de reconhecimento, o dinheiro dos patrocínios que deixa de entrar - e o xadrez está longe de ser um desporto que paga bem.

O próprio Carlsen sabe que por estes dias já não é o miúdo arrojado, o killer que em 2013 roubou o título ao indiano Vishy Anand. O tipo que parecia ter prazer em ver as dificuldades na cara do adversário. Já em Londres, quando questionado sobre que jogadores do passado mais admira, o norueguês não foi de modas: “Eu, há três ou quatro anos”.

Mesmo que saia da capital britânica com o seu título bem guardadinho debaixo do braço, Carlsen não deixará de ser um génio no seu labirinto, à espera de algo que o motive. Talvez perder, coisa que ele odeia, seja a porta de saída que procura.

O próximo Bobby Fischer chama-se Fabiano

Aquele que é para muitos o jogo do século foi também o jogo do princípio e do fim do domínio norte-americano no xadrez. Expliquemos melhor: nos anos 70, a Guerra Fria tinha tornado o mapa mundi num tabuleiro de xadrez gigante e no verdadeiro tabuleiro, a luta também era entre soviéticos e um norte-americano, um norte-americano em particular, particular e único, diga-se, que em 1972 terminou com décadas e décadas consecutivas de domínio vermelho no xadrez. Os demónios que habitavam a mente de Bobby Fischer nunca deixaram o rapaz que cresceu pobre em Brooklyn dominar a modalidade: Fischer nunca chegou a defender o título e desde aí que nenhum norte-americano esteve sequer na discussão do Mundial.

Até que surgiu um rapaz calmo, aprumadinho, bem comportado, a antítese de Fischer apesar de, tal como ele, também ter aprendido os movimentos do xadrez nas ruas de Brooklyn - mas não tão pobre, já que a família morava no afluente bairro de Park Slope.

Está nas mãos (e no cérebro) de Fabiano Caruana, de 26 anos, o regresso dos Estados Unidos ao topo do xadrez. Nas mãos de um rapaz que até há 3 anos competia por Itália, terra da sua mãe e dos antepassados do seu pai. Isto até um milionário norte-americano abrir a carteira para que o jovem nascido em Miami voltasse aos states após anos e anos de vida mais ou menos nómada pela Europa, para onde os Caruanas se mudaram para dar ao filho as melhores oportunidades no xadrez - e sobre este regresso às origens há toda uma história à parte, mas já lá vamos.

Caruana não só é a antítese de Fischer, uma personagem que tinha tanto de génio como de louco, como até de Carlsen. Será, digamos, um xadrezista mais tradicional, menos social, apesar de gostar de rock e ser um fã do rapper Kendrick Lamar, como qualquer jovem moderno que se preze. Leontxo García, especialista do “El País” em xadrez, diz que Carlsen é “um génio” e Caruana “um portento”: como se o norueguês fosse Messi e o norte-americano Cristiano Ronaldo. E todos sabemos que o portento pode muito bem ultrapassar o génio.

A sua dedicação é total. Desde os 12 anos, dois anos antes de se tornar Grande Mestre, que Caruana vive entregue quase em exclusivo ao xadrez: foi educado em casa e numa entrevista ao “The New York Times” admitiu que não se lembra de ter amigos em miúdo.

Na mesma conversa, podemos atestar o espírito de monge do ítalo-americano: para lá do treino mental, Caruana joga ténis, passa horas no ginásio e corre. Nos últimos tempos também se dedicou ao yoga - uma mente sã precisa de um corpo são e os novos xadrezistas já incorporaram essa ideia.

A obsessão de estar focado neste duelo com Carlsen é tal que Caruana admite que 2018 foi ano interdito a encontros amorosos: a dor de uma separação é algo incompatível com as exigências da competição e Caruana não quis sequer arriscar.

O milionário Rex

Há razões para Fabiano Caruana ter abdicado de competir por Itália em 2015 para voltar aos Estados Unidos e começar a jogar pela bandeira do seu país de nascimento. Para o jogador, poderá muito bem ser apenas uma questão de dinheiro. Na cabeça de Rex Sinquefield, essa razão é política, cultural, vinda de uma vontade indómita de fazer dos Estados Unidos a maior potência mundial do xadrez, de voltar a ver a modalidade na primeira página dos jornais, na capa das revistas, como nos dias que se seguiram à vitória de Bobby Fischer frente a Boris Spassky, no tal mítico duelo para o título mundial de 1972.

Mas o que faz aqui o nome de um norte-americano de 74 anos, que cresceu num orfanato e acabou multimilionário devido a acertados investimentos em fundos? Bem, tudo, porque Rex Sinquefield é um homem com um plano: make american chess great again.

Há muito que Sinquefield, nascido e criado em St. Louis, deixou de trabalhar: ficou tão rico que às tantas deixou de ter piada. E como dinheiro não lhe falta, nada como investir nas suas duas paixões: o conservadorismo e o xadrez. Para o partido republicano local seguem milhões de doações que fazem com que os seus desejos sejam ordens na agenda política do Missouri. Para o xadrez, o investimento é mais pessoal, mas não menos ambicioso: Sinquefield quer que St. Louis se torne numa espécie de Meca do xadrez a nível mundial, o jogo de tabuleiro que ele descobriu enquanto via filmes no orfanato e no qual se baseou para calcular a melhor forma de ganhar dinheiro nos fundos de investimento.

Para isso começou por construir em St. Louis o maior clube de xadrez do mundo e também o World Chess Hall of Fame. Quer conhecer a maior peça de xadrez do planeta? É nas ruas de St. Louis que ela está.

Mas isso, per se, não chega. Também é preciso os cérebros e se for preciso paga-se para ter os cérebros: foi Sinquefield que financiou o regresso de Fabiano Caruana aos Estados Unidos, pagando para que o italiano jogasse pelo país. “Não posso falar do lado financeiro da mudança, mas tive o apoio para voltar aos EUA”, admitiu Caruana numa entrevista ao programa Real Sports da HBO. A imprensa local fala de uma “transferência” na casa das várias centenas de milhares de dólares. Quase nada se compararmos com os 50 milhões de euros que se diz já terem saído do bolso de Sinquefield apenas para fazer o xadrez grande outra vez e tirar o poderio à Rússia e China, cada vez mais forte no setor feminino.

Antes disso, já o filipino Wesley So havia tomado o mesmo caminho, leia-se, optar pelo passaporte norte-americano. Ambos vivem e treinam em St. Louis tal como cerca de um quarto dos Grandes Mestres norte-americano. E ambos fizeram parte da equipa dos EUA que se sagrou campeã das Olimpíadas de 2016, em Baku.

Agora, a estocada final do plano pode estar a um pequeno passo: no final do mês os Estados Unidos podem ter o seu primeiro campeão do Mundo em mais de 40 anos.

O ecrã de computador indiscreto

Parece claro que Rex Sinquefield não olha a fundos para que o título mundial do xadrez volte aos Estados Unidos. E para o seu menino de ouro, todos os luxos. Foi por isso numa das casas de férias do magnata que Fabiano Caruana terminou a preparação para o Mundial, rodeado da sua equipa de analistas e dos mais diversos materiais tecnológicos para melhor se treinar e concentrar.

Sinquefield é um homem de olho e sabe que para uma modalidade se difundir é preciso torná-la mediática. E é por isso que para lá dos milhões investidos em jogadores e infraestruturas, tem também uma verdadeira máquina de transmissão digital em St. Louis: o canal oficial de YouTube do Saint Louis Chess Club produz a ritmo diário entrevistas, vídeos explicativos e transmite em direto todas as competições que se realizam na cidade.

E com uma estrutura tão grande, surgiu a ideia: porque não fazer um pequeno documentário sobre a preparação de Caruana, para ser disponibilizado após o Mundial? Até aqui, tudo bem. O problema é que em plena competição foi publicado um pequeno excerto do filme. Pior: nesse pequeno excerto surgia uma imagem do ecrã do computador de Caruana e nele podia ler-se uma série de informações secretas sobre a estratégia do ítalo-americano para o duelo com Carlsen. Nomeadamente, todo o repertório de aberturas e defesas (com as quais se inicia a partida).

O erro foi rapidamente notado e o vídeo tirado do canal do Saint Louis Chess Club. Mas por essa altura já Magnus Carlsen poderia ter informação privilegiada contra Caruana.

Acontece que, como bom jogo de estratégia que é, o xadrez também é dado às mais diversas teorias da conspiração e rapidamente começou a correr nos corredores do The College, local onde se realiza a final, que tudo não passava de uma encenação da equipa de Caruana, uma ratoeira para que Carlsen, acreditando ter os segredos do rival na mão, preparasse as partidas com base no vídeo.

A teoria da conspiração, por oposição à da simples negligência de alguém que não reparou que estava a divulgar segredos de estado, acabou por perder força nos dias seguintes. Não só porque as partidas continuaram muito renhidas, com nenhum dos jogadores a aproveitar o (suposto) descuido, mas também pela imagem de bom rapaz que Caruana tem nos meandros do xadrez. E a reconhecida sinceridade de Carlsen.

A rivalidade Carlsen-Caruana, dizem os especialistas, está longe de ter os mesmos ingredientes que em tempos teve, por exemplo, o duelo Karpov-Kasparov, cada um deles a representar uma fação daquilo que era uma URSS em pleno colapso: Karpov era o passado, Kasparov um reformador.

Karpov e Kasparov não gostavam um do outro, odiavam-se mesmo. Já Carlsen e Caruana são dois campeões dos tempos modernos: duas máquinas de alta competição, mas também apenas dois rapazes que vivem para o xadrez.

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