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Com a tecnologia certa, o xadrez sobreviveria num mundo eternamente confinado. Mas perdia-se a magia e o nervo – e por isso “não, por favor”

Com a tecnologia certa, o xadrez sobreviveria num mundo eternamente confinado. Mas perdia-se a magia e o nervo – e por isso “não, por favor”
picture alliance/Getty

Com o desporto parado por todo o lado, oito dos melhores xadrezistas do planeta passaram as duas últimas semanas de abril num torneio online que foi visto por mais de 10 milhões de pessoas e distribuiu 250 mil dólares em prémios. Mas isso não quer dizer que o xadrez não tenha sido também ele afetado pela pandemia da covid-19. O xadrez está mais preparado que outros desportos para um estado de exceção, mas aos jogadores não agrada um futuro em que não possam jogar frente a frente a um adversário

Primeiro foram os campeonatos a parar, um a um. Depois os lay-offs, os cortes nos salários. Os jogadores de férias. Os cancelamentos de ligas e de torneios. A pandemia da covid-19 deixou o desporto no limbo da incerteza, os melhores do Mundo parados, confinados às suas casas, sem poderem fazer o seu trabalho, entrar num campo de futebol, num court de ténis, num pavilhão.

Bem, quase todos os melhores do Mundo.

Porque enquanto Cristiano Ronaldo se enclausurava na Madeira e Roger Federer fazia uns truques com a raqueta na Suíça para seguidor do Instagram ver, o melhor jogador do Mundo de xadrez, Magnus Carlsen, organizava o torneio online mais bem pago de sempre, com oito dos melhores jogadores do planeta, onde se incluíam o campeão mundial em título (o próprio Carlsen), o homem derrotado nessa final, o norte-americano Fabiano Caruana, e aquele que é visto como o maior prodígio da atualidade, o iraniano Alireza Firouzja, de 16 anos. Todos nas suas casas, a jogar online por um prize money que distribuiu um total de 250 mil dólares (cerca de €230 mil).

"O xadrez é único porque os movimentos são os mesmos, quer joguemos num tabuleiro de madeira ou num ecrã de computador", disse Carlsen, norueguês de 29 anos, líder do ranking desde 2011 e o mais próximo que o xadrez teve de uma superestrela na última década. Afinal de contas, o único músculo essencial para se jogar xadrez chama-se cérebro e aquilo que nos tem ligado nestas semanas de confinamento chama-se internet.

Carlsen tratou de juntar os dois.

O apropriadamente chamado Magnus Carlsen Invitational estendeu-se por duas semanas, entre 18 de abril e 3 de maio, através da plataforma chess24.com, com comentários de Grandes Mestres em nove línguas e com cada participante a utilizar duas câmaras, uma apontada para o jogo e outra para a cara. Tudo jogado na variante rápida, mais tensa, imprevisível e à flor da pele que a variante tradicional, em que os jogos se podem prolongar por horas e horas.

No final, ganhou o criador: Carlsen bateu o norte-americano Hikaru Nakamura e levou para casa, figurativamente, claro está, já que em casa estava ele, um prémio de 70 mil dólares, um valor interessante quando estamos a falar de desporto em plena maior pandemia das nossas vidas.

De acordo com o chess24.com, mais de 10 milhões de pessoas acompanharam o torneio. E apesar de não se tratar de uma prova oficial, Carlsen congratulou-se com o sucesso do formato, colocando a vitória em termos que só utilizamos quando queremos falar de um qualquer panteão: "Única".

"Única" terá sido com certeza, quanto mais não seja pelas circunstâncias: com o mundo em confinamento, o xadrez foi uma espécie de bóia de salvação, por não estar absolutamente dependente de uma sala, de um encontro, de um tabuleiro físico.

Mas será isto o futuro? Not so fast.

"Para quem segue minimamente o xadrez, o que se notou no torneio é que eles não estavam a jogar nem de perto nem de longe ao nível que poderiam jogar". Camila Avelino tem 15 anos e é número 9 do ranking feminino em Portugal.

Tal como tantos outros milhares de estudantes, está em casa desde que a pandemia nos tolheu os movimentos. No dia 28 e 29 de março deveria ter participado num estágio da Seleção Nacional feminina, que não chegou a acontecer. Bem, pelo menos presencialmente.

A exemplo da generalidade das federações nacionais, a Federação Portuguesa de Xadrez suspendeu todas as atividades e competições devido ao surto da covid-19. A 12 de março, mais de uma dezena de provas ou eliminatórias marcadas para março, abril e maio foram adiadas. São eventos que juntam dezenas, centenas de pessoas, em salas fechadas. "Há quem me diga: 'Jogas xadrez e o xadrez está igual'", conta-nos Camila.

Mas não, o xadrez não está igual, embora as novas tecnologias mitiguem, provavelmente muito mais do que em qualquer outro desporto, os prejuízos de estarmos todos separados. Por exemplo, o estágio que juntaria Camila e outras 12 xadrezistas portuguesas acabou por acontecer em abril, por videoconferência, via Zoom.

"Há obviamente diferenças entre fazer um estágio presencial ou por videoconferência, mas acho que não são muitas. O xadrez é um desporto em que é relativamente fácil treinar online", continua Camila. No estágio, as jogadoras fizeram vários exercícios. E, quando coincidia, viam o torneio de Magnus Carlsen.

Antes da pandemia, Camila já tinha treinos via Skype - "duas horas por semana" - mas um estágio tão intensivo, com várias horas por dia, foi uma estreia. Mas, apesar disso, Camila tem jogado muito menos. "Não gosto de jogar online, nunca gostei e a quarentena não me fez gostar mais", diz-nos.

Porque, verdade seja dita, entre o xadrez jogado frente a frente a um rival e o xadrez jogado frente a frente a um ecrã de computador ainda vai uma diferença.

O FACTOR PSICOLÓGICO

"Quando estamos frente a frente com os nosso adversário, tudo tem impacto. A respiração, a concentração, o estado corporal da pessoa, para onde é que ela está a olhar, o que é que ela está a pensar. Há jogadores que fazem contacto visual, uns sem se aperceberem, outros de propósito. Tudo isso tem impacto". Sara Monteiro tem 36 anos, já representou a Seleção Nacional em Europeus, Mundiais e Olimpíadas de xadrez e é também treinadora. Garante-nos que já viu muito boa gente "a perder partidas ganhas por causa da parte psicológica".

E essa é uma das diferenças incontornáveis entre o xadrez presencial e o jogado nas plataformas tecnológicas.

"Regra geral, o confronto é muito intenso e bastante desagradável. E no online isso não existe. Num jogo online eu posso fazer asneira e estou em casa a pensar 'espero que não vejas, espero que não vejas' e a fazer tudo que me possa permitir relaxar para depois estar bem na próxima jogada. No presencial tenho de conter tudo isso, é um turbilhão de coisas. Não posso denunciar-me, nem quero. É a chamada poker face, que temos que fazer no presencial e que no online não temos que fazer", explica-nos a informática, que neste momento tem em mãos um projeto impulsionado pela pandemia.

Após um convite da federação alemã da juventude para um match online com Portugal, conseguiu reunir 45 xadrezistas portuguesas - "muitas no ativo, mas também algumas que já se consideravam reformadas e que neste momento estão em casa" - para o confronto. Que, entretanto, teve tal adesão que já deixou de ser um Portugal - Alemanha para se tornar num torneio entre 10 países. Coisas que, neste momento, só o online permite.

"Há uma tentativa de não deixar morrer a atividade porque ainda por cima esta é uma daquelas que requer prática, senão enferrujamos", explica Sara.

Mas voltemos às diferenças. "O nível de concentração é diferente", garante-nos Camila Avelino. "O online é menos competitivo, não dá tanta pica. Quando estou a jogar online, normalmente estou deitada no sofá, se ganhar ganhei, se perder perdi, não tenho a mesma motivação", explica. "E depois há sempre a possibilidade de alguém estar a fazer batota".

E aqui chega um ponto fundamental para a discussão: "Poderá um dia o xadrez online substituir o xadrez presencial?".

"Se já existe a tentativa de fazer batota mesmo no xadrez físico, porque eu já vi, então no online isso está muito mais facilitado. Como é que eu sei se estou a jogar contra aquela pessoa ou se aquela pessoa do outro lado não tem um computador para pesquisar?", questiona Sara Monteiro.

A questão do chamado "doping tecnológico" é mesmo, para já, o grande entrave para que o xadrez online seja equiparado ao presencial. É impossível controlar totalmente o que um jogador, escondido por detrás de um ecrã, poderá estar a consultar.

"Nas provas presenciais há um controlo muito mais apertado. No online há sempre a possibilidade de consulta de informação através de um telemóvel ou de um computador, o que pode fazer alguém jogar quase melhor do que um Grande Mestre", diz-nos Dominic Cross, presidente da Federação Portuguesa de Xadrez, que explica que, por esse facto, o online pode servir "para provas de cariz mais lúdico, mas nunca numa ótica oficial".

No entanto, o dirigente lembra que o torneio organizado por Magnus Carlsen trouxe algumas particularidades que podem mostrar um caminho. "Os jogadores utilizaram as suas próprias câmaras, duas câmaras até, uma que mostrava o computador e outra o jogador. Isso permitirá reduzir algumas 'falcatruas'".

Sara Monteiro acredita que o online pode desvirtuar a justiça de um resultado. "Porque a vontade humana de ganhar já é tão grande. Felizmente existem pessoas boas no xadrez e somos educados a isso, mas há sempre aqueles para quem o ganhar é mais forte do que qualquer coisa e usam a tecnologia a seu favor. O facto de termos um computador à frente só vai fazer com que isso aumente, é mais fácil", diz. "O xadrez é, por si só, computorizar a nossa própria mente para tentar fazer as melhores jogadas. Se depois descobres uma maneira em que nem para isso te tens de esforçar, porque tens a tecnologia, então deixa de ser o bonito que é".

O INSUBSTITUÍVEL

Sara Monteiro diz ser "difícil perceber até onde se pode ir com isto". E por "isto" leia-se a cavalgada do xadrez online e a preponderância que poderá vir a ter ou não num futuro cada vez mais virtual, numa altura em que a FIDE, a federação internacional de xadrez, investe muito nesta vertente. "É um fenómeno recente. Vai haver agora o primeiro Europeu de xadrez online e para todos os efeitos é oficial, porque é uma parceria em que está a União Europeia de Xadrez. Mas os prémios são coisas muito simbólicas: participação no próximo Europeu não-online, subscrições em plataformas de xadrez online, coisas assim. Porque de facto não temos a garantia que a atribuição da vitória vá ser justa, que o vencedor seja um justo vencedor".

Contudo, a xadrezista, que é professora de jovens desde os 16 anos, sublinha o papel das novas tecnologias para o treino, ainda mais nesta fase em que o trabalho presencial não é possível. "Porque num curto espaço de tempo é possível fazer muitas partidas, por exemplo. Eu vejo pelos menos alunos, que vão jogando entre eles ou até comigo. Eu vejo os erros que eles fazem, aponto-os, digo-lhes para voltarem a pensar a jogada. Acho que acelera o processo de aprendizagem".

Sara tem organizado todos os dias torneios de xadrez online para os alunos. "Acho que eles estão a treinar mais agora do que antes. Porque antes alguns deles só tinham disponibilidade uma ou duas vezes por semana. Agora quem tem participado os cinco dias por semana está muito mais à frente". O seu clube, o Mata de Benfica, também participa em provas online com outros clubes do país, uma tendência que foi crescendo com o confinamento e o cancelamento de provas presenciais.

Mas tanto para Camila como para Sara talvez só numa distopia completa o xadrez online poderia substituir o tradicional, o tabuleiro de madeira, o confronto de mentes com o adversário que está à frente.

"Numa situação em que tivéssemos de viver confinados durante muito tempo, se o xadrez passasse a ser só online eu deixava de jogar", diz, decidida, Camila Avelino. Mas logo emenda: "Bem, é melhor do que não ter a possibilidade de jogar de todo, como acontece com alguns desportos neste momento". Apesar de ser de uma geração que já nasceu e cresceu completamente dentro do mundo tecnológico, Camila ainda treina, digamos, à antiga. "Faço muitos exercícios. Uso as plataformas, mas normalmente mais livros. E sou capaz de passar cinco horas por dia a ver vídeos de xadrez no YouTube".

Para lá da concentração, que não é tanta quando joga nas plataformas virtuais, Camila também não gosta de não saber quem está do outro lado. Conhecer o adversário, lidar com ele é, afinal, uma das magias do xadrez. Voltando à questão psicológica da jogo, Sara Monteiro diz-nos o porquê de continuar a preferir o xadrez presencial: "Não sou sadomasoquista, mas gosto desse sofrimento, de sentir que consegui lutar contra os meus nervos, contra as minhas angústias. Ou mesmo quando perco, de sentir que consegui controlar-me na derrota. E isso hoje em dia é muito difícil, vejo pelos meus alunos. São raras as pessoas que joguem xadrez que não se importem com o resultado".

O REGRESSO AINDA SEM DATA

O xadrez não é exatamente um desporto de contacto, mas ele existe. E o facto de, geralmente, se praticar em recintos fechados, torna o horizonte temporal de um regresso ainda imprevisível, mesmo numa altura em que Portugal já avança para as primeiras fases do desconfinamento.

"Estamos a preparar as coisas para regressar", revela Dominic Cross. "Normalmente temos 120 dias de competição, um calendário muito completo, vamos tentar retomar o que nos for possível", continua o líder federativo, frisando que um regresso das provas terá de ser feito com "medidas especiais, nomeadamente ao nível da higienizarão de salas, utilização de viseiras e máscaras".

"Jogar dentro de sala para já é perigoso, mas já nos lembrámos de tentar perceber se existia a possibilidade de jogar ao ar livre", diz o presidente da FPX.

Uma das questões do xadrez é que a distância de segurança entre os dois jogadores não dá para ser mantida. Mas há mais possibilidades de potencial contágio. "Nós tocamos nas nossas peças, tocamos nas peças dos adversários quando as capturamos, apertamos a mão", explica Sara Monteiro. "Eu gostava de acreditar que vamos voltar brevemente", diz ainda, "mas com as regras que temos atualmente é difícil".

Até lá, os computadores ajudarão a suprir aquilo que a covid-19 não deixa os xadrezistas fazer em carne e osso. A FPX está a preparar a organização de torneios online e no dia 22 de maio vai lançar um campeonato de xadrez online no âmbito do desporto escolar, com alunos de todo o país. Um projeto que já existia e que a pandemia acabou por acelerar. O xadrez não parou nem vai parar.

"Não parou no sentido em que, desde que haja internet, vai sempre haver xadrez", diz Sara Monteiro. "Tenho alunos que me aparecem no clube que já sabem jogar, sabem jogar há muitos anos e que até aí nunca tinham tocado num tabuleiro físico. E jogam bem. Agora daí a isto passar a ser uma cultura, um hábito, não sei. Com a tecnologia certa, é possível. Sou informática, por isso acredito [risos]", sublinha.

E Sara remata. "Acho que o xadrez está muito mais bem preparado para uma situação destas do que outros desportos. Se eu quero que o xadrez passe a ser online? Não, por favor. Agora, se tivéssemos de ir para um mundo online por necessidade, todos os outros desportos acabariam mas o xadrez não, garantidamente".

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