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Embarquei num caçador de tempestades: é duro, físico, atarefado e recomendo um comprimido para o enjoo

Embarquei num caçador de tempestades: é duro, físico, atarefado e recomendo um comprimido para o enjoo

O Expresso embarcou num dos treinos da equipa do VOR65 português Racing for the Planet, que vai competir na Ocean Race em 2022. Esta é a experiência de um confesso curioso de barcos que conviveu durante umas horas com os profissionais do mar

Embarquei num caçador de tempestades: é duro, físico, atarefado e recomendo um comprimido para o enjoo

Jaime Figueiredo

Infográfico

Passaram 20 anos desde que George Clooney e Mark Wahlberg foram para o mar alto enfrentado uma aterradora aventura na “Tempestade Perfeita”. O filme, baseado no livro de Sebastian Junger, que conta a história verídica do Andrea Gail, que zarpou de Gloucester, Massachusetts, EUA, na costa leste dos Estados Unidos, no outono de 1991 e rumou para os pesqueiros do Atlântico Norte onde foram apanhados pela maior tempestade do século.

Aqui, em 2020, a equipa do VOR65 português Mirpuri Foundation Race Team, faz constantemente sessões de treinos que são um desafio à resistência física e mental necessária para aguentar meses nas condições mais adversas com ventos fortes e ondas intimidantes que são tão grandes que engolem os barcos de 20 metros inteiros - apenas cuspindo-os do outro lado.

O Expresso embarcou num dos treinos destes caçadores de tempestades, que vão competir na Ocean Race em 2022. Nesta regata, o clima é tudo - estar do lado direito de uma tempestade significa uma grande vitória ou derrota para uma equipa, já que as equipas são catapultadas para a frente ou deixadas na calmaria atrás da tempestade. O mau tempo traz consigo muito vento o que faz com que estes velejadores tenham de fazer escolhas constantes, entre navegar mais depressa ou pôr a própria vida em risco. Entre poderem embater em algo dentro de água ou correrem o risco de algum equipamento ou o próprio barco se partir pela velocidade que atingem.

A tecnologia a bordo tem um papel muito importante ao monitorizar, em tempo real, cerca de 50 parâmetros como a velocidade a que o barco vai, a amplitude da sua oscilação devido à altura das ondas ou o ângulo do vento. É desta forma que os navegadores estão sempre informados de tudo o que se passa à sua volta de modo a garantirem a maior velocidade possível podendo atingir mais de 40 nós (75 kms/hora) o que dentro de água equivale à condução de um Fórmula 1 em alta velocidade. “Por vezes a velocidade do veleiro chega a ser superior à do vento”, explicou a atleta olímpica Mariana Lobato, que entrou para a escola de vela aos 8 anos onde começou a fazer competição nos Optimist.

Para além desta atleta, a equipa do VO65 Racing For The Planet conta ainda com os velejadores olímpicos portugueses Frederico Pinheiro de Melo, Bernardo Freitas, que integraram a equipa ‘Turn the Tide on Plastic’, patrocinada pela Fundação Mirpuri, na última competição à vela à volta do mundo, o skipper francês Yoann Richomme, com uma larga experiência em regatas oceânicas, tendo vencido algumas das principais provas internacionais, como a Rota do Rhum, em 2018, e La Solitaire du Fígaro, em 2019, os vencedores da última edição da Ocean Race, a bordo do barco chinês da Dongfeng Race Team, o estratega belgo-canadiano Bruno Dubois, o australiano Jack Bouttell e o também gaulês Fabien Delahaye.

Eu decidi experimentar. E foi assim que aconteceu:

Controlar um barco de 12,5 toneladas não é tão fácil como parece: a cada minuto há cabos para enrolar e molinetes para dar à manivela, de forma a içar, arrear, caçar e folgar as enormes velas do veleiro. A tarefa é tão exigente que, para ser realizada nos poucos segundos que duram uma mudança de bordo, são precisas seis pessoas a dar ferozmente à manivela, que funciona com seis mudanças diferentes, mas mesmo na mais leve confirmei que não é tarefa fácil. Sob o comando do skipper Yoann Richomme “vamos cambar” - e todos corremos para os moinhos pedais que controlam todos os sistemas hidráulicos e os grandes molinetes que controlam as velas da proa de forma a ajustar as velas para a mudança de bordo.

De seguida aventurei-me na escorregadia proa, a parte mais perigosa do barco, que é onde as velas da proa são içadas; quando está muito vento, vai sempre debaixo de água. Uma zona a evitar passar muito tempo até pelos velejadores; para curiosos como eu, recomendo um comprimido para o enjoo. Já numa zona mais segura, atrás da cabina está o chamado “piano”, que é uma consola central que controla todas as adriças para subir e descer as velas e patilhões. Todas as teclas estão identificadas com etiquetas que brilham no escuro para os velejadores as verem. Mesmo ao lado fica a entrada para a zona fechada do barco.

A dureza

Se está a imaginar um quarto de um navio de cruzeiros com todas as comodidades, isto não é para si. As condições em que vivem a bordo são duras: fazerem turnos de quatro horas - durante quatro horas estão no convés e nas outras quatro têm de comer, dormir, cuidar de si num espaço minúsculo.

Construídos para serem o mais leves e rápidos possível, os barcos são feitos de fibra de carbono que aliados às mais recentes resinas conferem maior leveza e resistência, mas o carbono é muito barulhento e atrai tanto o calor como o frio. Não há nenhum isolamento térmico ou acústico, o único conforto é a água potável que a tripulação produz a partir de água do mar com recurso a um dessalinizador. Nem sequer existe duche, há uma sanita no fundo do barco de difícil acesso e sem porta, as seis camas são “quentes”, o que quer dizer que são usadas em sistema rotativo, as refeições fazem-se maioritariamente de comida liofilizada à qual se junta água aquecida por um “Campingaz”.

A comida, a roupa e as peças soltas, tudo é movido quando muda o vento de um lado para o outro do barco para uma melhor performance. Existe ainda um pequeno espaço para o navegador que passa a maior parte do tempo dentro do barco sentado num banco suspenso em frente a dois computadores, e que vai comunicando com que está ao leme através de um microfone.

A minha última aventura a bordo foi precisamente ao leme, uma das partes mais importantes do barco que controla a direção do barco e é tão leve que faz parecer a direção do meu carro com um trator. Junto à roda do leme tem uma serie de controlos com a velocidade, intensidade do vento, angulo de inclinação e controlos da quilha que se move de um lado para o outro para manter o barco direito. Quem vai ao leme tem ainda de controlar os tanques de água com 800 litros que servem de lastro, tudo tem de ser decidido com muita rapidez e em condições adversas.

Conviver entre 20 metros quadrados durante vários meses no mar, num barco que está sempre inclinado e a levar com vagas permanentes pode levar a um cansaço extremo, mas mesmo assim Yoann Richomme não trocaria esta aventura por nada, confessando já estar a programar o desafio da Ocean Race, que inicia em Alicante no outono de 2022 e previsto terminar a grande aventura no verão do ano seguinte em Génova, Itália sem ter um desfecho à Clooney que em “A Tempestade Perfeita” não terminou bem para os protagonistas, que foram vencidos pelas forças da natureza.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: jdfigueiredo@expresso.impresa.pt