Simone Biles voltou dois anos depois, arrasou, vive um dia de cada vez, mas deixa o aviso: “Estou em melhor forma do que estava em 2021”
KAMIL KRZACZYNSKI
Mais de 730 dias depois de Tóquio e de nos ter colocado a todos a falar de saúde mental, a genial ginasta norte-americana voltou a competir no US Classic. Bateu por larga margem toda a concorrência e deixou comentadores a assegurar que a melhor do mundo continua a ser a melhor do mundo. Aos 26 anos, o que se segue para Biles, que assegura querer dar “um passo de cada vez”, quando estamos a um ano dos Jogos Olímpicos de Paris?
Hoffman Estates é uma pequena cidade nos arredores de Chicago que no último fim de semana se viu de pernas para o ar. Foi para ali que Simone Biles marcou o regresso às barras assimétricas, ao solo, à trave, às piruetas, às visitas ao espaço sideral, exagero, claro, mas ela eleva-se tão mais alto do que as outras que por vezes parece desaparecer no ar, para depois aterrar leve e solta, como se a gravidade fosse por ela controlada e não pelas leis da física.
Há dois anos, Simone Biles deixou de manietar o tempo e o universo. Em Tóquio, no palco maior, nos Jogos Olímpicos, a mente desconectou-se do corpo enquanto quase tocava os tectos de madeira do Centro de Ginástica de Ariake. Uma perda de noção espacial em pleno voo a que os ginastas convencionaram chamar de twisties, que lhes mina a confiança e os enche de um qualquer medo. Os pequenos receios que passeiam pela cabeça tornaram-se demasiado grandes, sombras gigantes, maiores que a impulsão, a graciosidade, aquela capacidade nunca antes vista de gingar o corpo.
Biles, confessou então, estava “a lutar contra a própria cabeça” e foi desistindo de provas atrás de provas nos Jogos. Fugiu-lhe a confiança, sentiu que era “um milagre” ter aterrado sem escangalhar em pedaços o seu corpo e o medo estava lá, a perceção real de um risco que todos os ginastas enfrentam dia após dia.
“Não sei se é da idade, mas fico mais nervosa quando compito”, explicou-se em Tóquio, abrindo uma espécie de caixa de Pandora: praticamente não competindo, Simone Biles foi na mesma a grande figura daqueles Jogos Olímpicos, não pelas medalhas que ganhou mas pelo debate que abriu sobre saúde mental e a necessidade de parar quando o nosso corpo e a nossa cabeça nos pedem que paremos, mesmo que sejamos super estrelas, mesmo que de nós só se esperem feitos, resultados, metas só alcançáveis por extraterrestres. O mundo - porque ainda é nele que todos nós, mais talentosos ou menos talentos, nos movemos - aplaudiu.
Biles na trave durante o US Classic
Stacy Revere/Getty
Depois desse agosto abrasador no Japão, Simone Biles desligou-se da competição, como já havia feito após o ror de medalhas que ganhou nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. Poucos meses depois de Tóquio, outra montanha para escalar, outra demonstração de força: testemunhou perante o Senado norte-americano contra Larry Nassar e a atuação do FBI na investigação ao ex-médico da equipa nacional feminina de ginástica, que abusou de centenas de atletas. Uma delas, Simone. Em abril deste ano casou-se com um jogador de futebol americano e começou a construir uma casa. Aos 26 anos, idade geriátrica para uma ginasta, ninguém sabia se iria voltar.
Até que o seu nome apareceu, de forma discreta, sem fanfarra ou grandes anúncios nas redes sociais, como uma das participantes no US Classic, uma competição que serve habitualmente de antecâmara para os campeonatos nacionais norte-americanos.
Regresso triunfal
Voltemos então a Hoffman Estates, a cidade que recebeu a prova e que se encheu de jovens fãs de Simone Biles, de gente entusiasmada nas bancadas da NOW Arena, mais habituada a receber jogos de basquetebol.
Nessas bancadas, viram uma Simone Biles perto do seu melhor, daquele nível estratosférico, a efetuar elementos que nenhuma outra mulher na história alguma fez conseguiu tirar da cartola. Com um total de 59.100 pontos no all-around, a prova que reúne as quatro disciplinas (salto, trave, paralelas assimétricas e solo), Biles dinamitou a competição. Em termos de comparação, a Reuters refere que a atleta olímpica teria de ter caído cinco vezes durante as suas performances para a 2.ª classificada ter hipóteses de a ultrapassar. Para lá da competição geral, Biles foi a melhor no salto, trave e solo. As paralelas assimétricas continuam a ser o seu aparelho menos forte. Para o bem e para o mal, tudo está como dantes.
Cumprimentando o treinador após brilhar no salto
Stacy Revere/Getty
Mais do que uma tentativa óbvia de se qualificar para os campeonatos nacionais, que darão depois acesso à equipa que irá aos Mundiais, em outubro, a ESPN diz que Biles competiu em Hoffman Estates para se afirmar. Para marcar um ponto. Para se mostrar junto de quem, talvez, já não esperasse o seu regresso. Logo nos treinos, Biles terá conseguido fazer elementos de elevadíssima dificuldade, que confirmou depois em competição. E isto é só o início, ela que assumiu que voltou aos treinos em setembro mas que apenas em maio, depois do casamento, investiu fortemente no regresso à competição. “Biles já parece neste momento a melhor ginasta do mundo”, escreveu a ESPN.
A candidatura a um sexto título mundial no all-around, algo inédito, como também já tinha sido inédito o quinto, conquistado em 2019, parece certa, tal como um piscar de olho a uma presença na equipa olímpica para Paris 2024, onde poderá, quem sabe, ter a despedida olímpica que Tóquio não lhe deu. Ou da forma que ela merece.
“Um passo de cada vez”
Mas nada disto parece perturbar uma aparentemente impassível Simone Biles. “Sinto-me muito bem neste momento, tanto mental como fisicamente”, sublinhou no US Classic, reforçando sempre a surpresa por ter tanta gente nas bancadas a apoiá-la ou as inúmeras mensagens de força nas redes sociais. O trabalho mental, esse, continua a ser uma das prioridades da atleta, que mantém-se a fazer terapia regularmente.
“Acho que correu tudo muito bem. Tudo se encaixou. Há coisas que ainda tenho de trabalhar nos meus programas, mas para prova de regresso diria que correu muito bem”, explicou, assumindo-se algo “chocada e surpreendida”.
Face a tamanha demonstração de superioridade, perguntas sobre uma nova ida aos Jogos Olímpicos surgiram com naturalidade, mas Simone acredita que, para já, há que viver uma coisa de cada vez, “sem pensar muito para a frente”. Apenas em junho do próximo ano a federação norte-americana de ginástica vai anunciar a equipa para Paris e craques não faltam, a começar por Sunisa Lee, ouro no all-around em Tóquio, ou Gabby Douglas, primeira no all-around em Londres 2012 e que aos 27 anos está apostada num regresso. A ginástica deixou de ser assunto apenas para adolescentes.
Biles só não venceu nas paralelas assimétricas
Stacy Revere/Getty
“Quero comemorar o que aconteceu aqui. É sempre assim: quando nos casamos, as pessoas perguntam se queremos ter filhos. Quando venho ao US Classic, toda a gente me pergunta sobre Jogos Olímpicos. Estou a tentar dar um passo de cada vez. Vamos ver”, frisou Biles aos jornalistas, afastando possíveis pressões.
Mas nem por isso Simone se colocou fora de jogo. E deixou, quem sabe, um aviso logo de seguida: “Acho que estou em melhor forma do que estava em 2021. E isso serve para a parte mental e física”.
Mais de 730 dias depois, Simone Biles voltou a controlar o universo e as leis da física. Voltou a mostrar que não interessa a idade, não interessa o passado - ou se calhar interessa muito. Continua a ser uma atleta extraordinária, um talento raro. Teremos sempre Paris e a sua possível vingança.