Mais um regresso adiado do extraordinário talento de Wayne Van Niekerk, homem que ia ser mais Bolt que o próprio Bolt
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O recordista mundial dos 400 metros, tempo arrebatado na final olímpica do Rio, em 2016, estava a ter um 2023 de sonho, um regresso à forma que deixou o mundo do atletismo a questionar se não estava ali o novo dominador da velocidade do pós-Bolt. Mas então veio uma lesão feia no joelho e anos e anos de recuperação. Este ano, parecia o ano. Mas Van Niekerk passou anónimo pela final nos Mundiais de Budapeste e não consegue explicar o que se passou
O olhar está vazio, o peito ainda vai e vem, no movimento sincopado, acelerado de quem acabou de esgotar toda e qualquer força concentrada no corpo. Os 400 metros são assim, dizem que é a mais dura prova do atletismo porque entra-se a matar e acaba-se a morrer. Wayne Van Niekerk justifica-se assim à imprensa sul-africana, é tudo “muito frustrante”, está “desiludido”, o que eles viram “não foi um bom desempenho, de todo”.
Sete anos depois daquela corrida perfeita nos 400 metros, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em que bateu um recorde mundial com 17 anos de Michael Johnson, parando o relógio nuns incríveis 43.03, a correr na anónima pista 8, Wayne Van Niekerk não é o que esperávamos que ele fosse. Ou se tornasse.
Antes dos Jogos brasileiros, o sul-africano já era campeão mundial dos 400 metros, título conquistado no ano anterior, no Ninho de Pássaro de Pequim, e em 2017 confirmaria novo título mundial repetindo o ouro nos Mundiais de Londres. Era também o primeiro homem capaz de correr os 100, os 200 e os 400 metros em menos de 10, 20 e 44 segundos, respetivamente - com o adeus de Usain Bolt, Van Niekerk soava a thenext big thing, uma next big thing talvez mais capaz que a last thing, porque os seus resultados e índices físicos permitiam-lhe sonhar com medalhas nas três distâncias da velocidade, algo verdadeiramente sobrehumano.
Mas então aconteceu aquele jogo. Um inócuo e simples jogo de râguebi para celebridades, poucos meses depois do título mundial de 2017 (e da prata nos 200 metros), rebentou-lhe o joelho direito com que planava suave e depois velozmente nas pistas de atletismo. Rompeu o ligamento cruzado anterior, o menisco cedeu. O primeiro diagnóstico falava de alguns meses de recuperação, mas esses meses tornaram-se anos. A lesão era catastrófica.
Van Niekerk e o seu recorde do mundo conquistado no Rio de Janeiro
Cameron Spencer
O natural de Kraaifontein, um subúrbio pobre da Cidade do Cabo, teve dias de não se conseguir levantar. Em 2018 não competiu, entre horas solitárias de reabilitação e um sentimento de culpa pungente. “Não posso culpar ninguém pela lesão. Fui eu que decidi jogar aquele encontro de râguebi, coloquei-me naquela posição”, confessaria numa conversa com os meios da federação internacional de atletismo, em 2020. No ano anterior, as tentativas de regresso não resultaram e outra lesão no joelho, desta vez no osso, precipitou a desistência dos Mundiais de Doha. Começou então a entrar em provas na sua África do Sul natal. Os tempos pareciam decentes, o talento ainda lá estava.
Mas chegou a pandemia, que tudo voltou a travar.
Em 2021, meses antes dos adiados Jogos de Tóquio, Van Niekerk via-se bem. Numa entrevista ao “The Guardian” dizia acreditar que podia ainda ser mais rápido do que nos anos áureos dos títulos e das comparações atléticas com Bolt - porque em termos de personalidade, não podiam ser mais distintos. “Mostrei sinais positivos nos treinos de que posso estar mais rápido do que antes e estou mais forte mentalmente. Mas uma coisa é fazê-lo nos treinos, outra completamente diferente é em competição”, continuou. Por essa altura, o sul-africano, que tinha acabado de deixar de trabalhar com a lendária Ans Botha, hoje já bem para lá dos 80 anos, para se mudar para os Estados Unidos, onde encontrou um novo grupo de treino, parecia antever o que acabou por acontecer: no Estádio Olímpico da capital nipónica, nem sequer passou das meias-finais.
O regresso ao topo. Mas não quando interessava
Em 2022, depois da desilusão olímpica, Van Niekerk correu pouco. Chegou aos Mundiais de Eugene praticamente sem competição e na final foi 5.º, um resultado ainda assim animador. Seguiram-se alguns bons resultados em meetings na Suíça, mas sem nunca cheirar sequer uma entrada nos 43 segundos.
Mas chegou então 2023. E aí Wayde Van Niekerk parecia o atleta de 2017, forte, confiante, sem qualquer fantasma de dúvida ou culpa, como se aqueles anos de recuperação tivessem sido uma via-sacra incapaz de quebrar o rapaz humilde, auto-crítico, bem-educado, discreto e despojado, o contrário de Usain Bolt, que um dia pareceu ser capaz de ultrapassar.
Até ao Mundial de Budapeste, o sul-africano, agora com 31 anos - e como aquele joelho lhe roubou o tempo -, ganhou tudo por onde passou, inclusive três etapas da Liga Diamante, em Oslo, Silésia e Londres, com uma aposta integral nos 400 metros, esquecendo, para já, outros projetos mais ambiciosos de ainda ir aos 100 e 200 metros.
FABRIZIO BENSCH/Reuters
Wayde aterrou na capital húngara com o melhor tempo do ano, 44.08, conseguido na Silésia, já a piscar o olho a uma nova entrada de rompante nos 43 segundos, registo desconhecido para si há tantos anos. Mas depois de umas meias-finais em que já havia deixado sobrancelhas levantadas de dúvida (chegou à corrida decisiva apenas pela repescagem por tempos), a final foi ainda mais desapontante: Van Niekerk passeou-se anónimo naquela volta ao estádio, foi 7.º e último, com 45.11 segundos, mais de dois segundos mais lento que o seu recorde mundial. E vendo ao longe um jovem, o jamaicano Antonio Watson, que diz ter no sul-africano o seu maior ídolo, a levar o ouro.
Minutos depois de cruzar a meta, indefeso junto aos jornalistas que o questionavam, Van Niekerk não fugiu às responsabilidades, que diz serem suas por mais um regresso adiado do atleta que tinha a velocidade literalmente a seus pés, que soava pronto para a dominância, para feitos inéditos, tudo naquela passada de quem parecia estar apenas ludicamente a fazer um jogging, solto e leve mas mortífero no ataque nos últimos metros.
“Tenho de processar o que aconteceu e ver o que se segue”, atirou, com o mesmo olhar longínquo, confessando que mentalmente todo o processo até à final de Budapeste foi duro. Os próximos dias serão “para desligar”, depois segue-se mais uma caminhada de recuperação, física e mental, para um atleta a quem o tempo parece, a cada oportunidade, fugir-lhe das mãos.